Banheira de Sangue

O barulho dos saltos-altos era a única coisa audível. Ela deu a volta no carro; virou-se e notou o grande jardim da entrada. Era lindo e imenso, com topiarias e arbustos elegantes, envolvidos por diversos tipos de plantas e flores silvestres que ganhava um brilho lindo com o fim da tarde. Um enorme cacto ambientava o centro do jardim, que sempre despertou a dúvida nos familiares do grande Mestre Leandro, o Severo. Em Camila, no entanto, sempre despertou desprezo e nojo daquela criação horrível e perigosa da natureza.

Camila rodou nos calcanhares e caminhou sobre a passagem de cimento cru, o qual odiava, pois sempre era acometida de tropeços ou os seus saltos prendiam-se em algum buraco da passagem. Desta vez, não poderia ser diferente; Camila tropeçou apoiando-se na gárgula próxima, com rosto de infinita observação, dentes grandes e afiados; quando percebeu que segurava os chifres da gárgula, a mulher se equilibrou rapidamente e resmungou xingos e insultos à imóvel construção de concreto, bem polida e brilhante.

Adentrou a porta e o rangido a assustou em súbito. “Grande demais para uma porta”, pensava a mulher todas as vezes que ia a grande mansão dos Severos. E seu pensamento de grandeza não parava na porta, considerava a casa grande demais até mesmo se fosse habitada por toda sua família. Tirou o casaco e abriu o closet de entrada para guardá-lo, pulou para trás num berro quando avistou as baratas que foram despertas pela abertura da porta. Camila suspirou enraivecida e colocou seu casaco no braço.

O som de seu salto-alto chamou à atenção do estranho mordomo, Cristian Smierci. Um polonês alto, alourado e com aparência pálida. Camila o julgava o velho dos velhos, pois desde sua infância o homem mantinha a mesma aparência, detalhe que levava a mulher a reflexão por diversas vezes. Seus sapatos sociais brilhantes jamais fizeram barulho, era como o se o mordomo flutuasse ao invés de andar, suas roupas sempre bem engomadas e impecáveis.

– Ah, Cristian! Que bom que é você. – suspirou respirando fundo.

– Posso ajudá-la senhora Camila? – sua voz soava como ruído de túmulo, opaca e profunda, sinistra e gélida.

– Por favor, eu acabo de vir de São Paulo e os ares da Amazônia não me agradam. – suspirou e continuou. – Poderia, por gentileza, pedir a preparação de um banho e que o jantar fosse mais adequado ao meu paladar?

– Absolutamente, senhora.

O mordomo saiu do recinto e Camila subiu as escadas, que rangiam em cada degrau pisado. A sala era enorme e muito requintada, com obras de arte de todos os gestos e gostos, quadros famosos, estatuetas, e até mesmo um busto próximo ao piano. Busto do próprio Mestre Leandro. O busto fora observado pela mulher durante todo o tempo, ela sentia calafrios sempre que o observava atentamente, sentia que o busto a seguia com o olhar.

O corredor do andar de cima era tão sombrio com suas paredes enfeitadas com papéis de parede escuros e, por vezes, homenageando plantas locais. Candelabros tortos espalhados, móveis velhos enegrecidos. A porta de seu quarto estava decadente; pensou que durante os dez anos que passara fora dessa mansão assombrada ninguém se preocupou com sua manutenção. Havia uma grande vitória-régia desenhada na porta, descascada em vários pontos e o fim da porta toda comida por cupins.

O barulho ao abri-la foi ensurdecedor; ela xingou um palavrão em alto som. O quarto estava impecavelmente arrumado da mesma maneira que deixara uma década atrás. Sentou em sua cama e o pó emergiu fazendo-a tossir e reclamar. Foi direto ao closet e, embora o cheiro do mofo, não encontrou nenhuma barata ou inseto nos armários, pousou ali seu casaco e sua bolsa de grife. Ao virar-se gritou ao notar Cristian prostrado atrás de si a encarando morbidamente.

– Por que chega sempre sem fazer barulho? – colocou a mão ao peito e respirou fundo.

– Perdoe-me senhora. O costume já me é condicionado. O grande Mestre Leandro não deveria ser incomodado, nem mesmo por barulhos humanamente básicos.

– Pois o grande mestre Leandro... – disse com sarcasmo. – Morreu, há três anos e já é hora de se condicionar a novos costumes.

– Perfeitamente senhora. – Cristian não esboçava qualquer reação. Seu semblante mórbido e imutável chegava a ser aterrorizante. – Yolanda cuidará de seu banho, em verdade acredito que o está fazendo agora mesmo, e logo após, tratará seu jantar. Cuidei de encontrar as receitas paulistas, porém somente encontrei receitas de arroz e bife com batatas.

– Está ótimo para mim. Agora saia, por favor. E ao menos tussa quando se aproximar, para que eu não me assuste sempre com sua presença.

O mordomo balançou a cabeça afirmativamente e saiu silenciosamente. Camila só percebeu a presença de Yolanda quando escutou a água caindo na banheira e segundos depois pela presença da velha e gorda saindo do toalete. A mulher sequer olhou para a patroa e saiu do quarto com olhar de desagrado. Aparentemente o desgosto que Camila tinha para com aquela mansão e tudo que havia ali era recíproco a ela.

Resolveu banhar-se e esquecer-se de tudo aquilo, afinal, no próximo dia mesmo iria negociar a venda da mansão e sumir daquele lugar horrível, já havia roubado tudo o que pode, iria finalizar o roubo vendendo as obras de arte para um mau-caráter do mercado negro e esquecer que aquele lugar existiu. Fechou seus olhos e relaxou. Passados minutos, Camila abriu os olhos e seu espanto assombrou os pássaros que dormiam tranquilamente na janela a fora.

A água virara sangue e a presença de Mestre Leandro, o Severo lhe causou arrepios; o morto estava ali para assombrá-la, pensou ela. Seus olhos eram opacos e sem vida, seu corpo ainda era igual a que ela conseguia se lembrar, magro e alto. Os cabelos estavam estranhamente arrumados e aprumados como sempre fora em vida. O sorriso que outrora era grande e despojado, agora inexistia. Camila olhou para o lado assombrada ao escutar o barulho angustiante do vidro que ganhava letras do além. “Ladra” “Meu tesouro não será roubado”. Camila levantou-se assustada da banheira toda banhada por sangue, seus gritos eram sufocados pelo mormaço da noite.

A mulher tentou correr, porém fora impedida por Yolanda. Que a segurou firme e exclamava algo parecido com “os mortos estão a toda parte, eles buscam a justiça injustiçada em vida”. Camila pode notar dois pequenos furos em sua jugular, próximos e, aparentemente, velhos. Perturbada com o que estava presenciando, ela empurrou a empregada na direção da cama, porém suas mãos escorregaram, haja vista, estavam banhadas em sangue. A mulher ensanguentada desequilibrou-se e caiu próxima a porta do quarto, esbugalhou os olhos quando notou Cristian flutuando em sua direção.

Gritou desesperadamente e ao voltar seu olhar para dentro do recinto, Mestre Leandro e Yolanda estavam próximos, com os olhos vermelhos, dentes afiados à mostra. Serpenteou para fora do cômodo, porém foi barrada pelos olhos avermelhados e esbugalhados de Cristian que abriu a boca exibindo seus longos caninos afiados. Sua jugular fora penetrada pelos dentes do mordomo, seu corpo recebeu perfurações criadas por Yolanda e Mestre Leandro. Os gritos de Camila foram perdendo o tom gradativamente, até sumir junto com o último pingo de sangue que lhe restava.

Conto criado a partir do desafio dos amigos recantistas, Leandro Severo II e Cristian Canto.

Batista Andrade
Enviado por Batista Andrade em 28/05/2020
Reeditado em 01/06/2020
Código do texto: T6960516
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