O Chaquí

“Eis aqui o molde cheio de fragmentos do destino

O molde da vingança

Com suas frases iracundas desatando-se dos lábios”

-Vicente Huidobro

Quando em Tuntum, cidade de nome onomatopeico no coração do Brasil, os forasteiros queixavam-se do tédio e da vida monótona, os tuntuenses, como que se justificando, diziam que na verdade Tuntum era uma cidade bastante agitada. E para fundamentar a tese que defendiam, indicavam os Monteiro, família bastante rica, proprietária de uma enorme fazenda, e que vivia numa mansão no centro da cidade. Os Monteiro eram conhecidos pelas animadas festas que davam todos os sábados à noite, e Alexandre Araújo, geólogo, nascido e criado no Recife, ficou bastante feliz quando recebeu o convite para atender a uma dessas festas. Alexandre Araújo estava já há três meses em Tuntum, estudando o solo da cidade, que se acreditava estar cheio de petróleo.

Quando chegou a mansão dos Monteiro, Alexandre confirmou as palavras que lhe haviam dito sobre a ilustre família. Os Monteiro o receberam de maneira cordial e alegre, e Alexandre se juntou aos demais convidados, que eram bem menos do que se esperava. Estavam José Monteiro, sua esposa Maria Amélia Monteiro, os dois filhos de treze e dezesseis anos, e Adelaide, a filha de grande beleza que já beirava os vinte e dois anos. Além da família, havia um casal também bastante conhecido na cidade e uma senhora idosa que toda vestida de negro, guardava luto pela morte de seu marido ocorrida quinze anos antes. Nas primeiras horas as conversas giravam em torno de Adelaide, que havia regressado fazia dois meses de uma estadia na Europa. A jovem mostrava as fotos que tirara em Berlim, Paris, Barcelona, Milão, Londres. Alexandre sentia-se empolgado sempre que ouvia sobre a Europa, terra desenvolvida, não como aqui...

O jantar foi servido por Eduardo, o único criado que se encontrava na casa àquela noite. Alexandre provou das maiores maravilhas culinárias que se pode imaginar. Bebeu O Porto e champanha, comeu foie gras, trufas negras, escargot com manteiga de ervas, queijo pulé, torta de creme, sorvete de gergelim e morangos silvestres. O casal, que depois soube que se chamavam Marco Antônio e Ana Lúcia, eram os mais comilões. Acabada a refeição, todos se dirigiram à biblioteca, onde José Monteiro contaria algumas de suas famosas anedotas.

A biblioteca era muito bem mobiliada, José Monteiro fez sinal para que Alexandre se sentasse na mais confortável poltrona, o dono da casa sentou em outra poltrona, os demais convidados permaneceram em pé. José Monteiro tinha um vasto bigode, os olhos pequenos, mas expressivos, muito gordo, suas bochechas tremiam como gelatina quando dava uma de suas estrondosas gargalhadas. Era um homem de aparência gentil e alegre.

-Vou contar-lhes uma excelente história, vocês já ouviram, mas essa é inédita para o nosso querido Alexandre, vindo do Recife!

Alexandre percebeu que Adelaide o observava, a garota tinha os olhos sérios, profundos, graves que contrastavam com o leve sorriso que conservava nos lábios bem formados. Era atraente.

-Vamos papai, conte a história! - diziam os filhos impacientes.

-Bom, essa história aconteceu há muito tempo - dizia José Monteiro – devia ter não mais de vinte anos, trabalhava como ajudante de caminhão. Certa vez tivemos de ir a La Paz, Bolívia. Uma viagem bastante perigosa, cruzamos estradas muito ruins, serpenteando montanhas, flertando com o perigo que existe no fundo dos abismos, tão comuns naquelas terras. Chegamos ao nosso destino, La Paz, uma pitoresca cidade que fica a mais de três mil e setecentos metros acima do nível do mar. A altitude, como vocês sabem, provoca um fenômeno chamado de soroche. É curioso os efeitos do soroche para alguém que nunca esteve em um lugar como aquele. Tive dois dias de folga quando chegamos. Soube que um tipo de demônio, chamado El Tío, vive nos bosques que rodeiam a cidade, mas eu nunca o vi, acredito ser uma crendice, uma lenda sem fundamento como tantas outras. Mas vou falar de algo que vi! Algumas ruas do centro da cidade estavam abarrotadas com dezenas de barracas que vendiam todo tipo de quinquilharia: ervas medicinais; pedras; amuletos; bicos de tucano; penas de aves diversas; sapos, tartarugas, peixes e cobras ressecados. Outra coisa que me chamou muita atenção, foram as centenas de fetos de lhama mumificados, trazidos das montanhas andinas. Este lugar é conhecido como Mercado de Las Brujas1. Eu estava bastante distraído com tais...exóticas distrações, quando uma mulher me puxou pelo braço. Ela estava coberta por um quilométrico traje feito com lã de alpaca, uma cartola estilizada na cabeça de onde saía uma longa trança negra, e um bastão em uma das mãos. Percebendo que era brasileiro, falou em um portunhol bastante entendível: “tengo algo que quiero vender, tengo certeza que te vai interessar”. Tomou-me pela mão e conduziu-me por aquelas ruelas, e eu, inocentemente, deixei-me conduzir. Na verdade, estava deveras curioso. Logo estávamos bastante afastados do Mercado e seus muitos turistas, e a mulher, mais ofegante que eu, disse para que lhe aguardasse naquele local. Em poucos minutos regressou com uma bolsa, e dessa mesma bolsa retirou uma estranha criatura humanoide que a mulher mantinha presa pelo pescoço com um cordão. A criatura, chamada Chaquí, não media mais que vinte centímetros, tinha uma aparência deplorável, sua pele era seca e dura, como uma carapaça, parecia estar rachada em vários lugares. Sua boca era enorme e mantinha-se aberta, não possuía nariz ou orelhas, os olhos eram nada mais que duas bolas vazias, as mãos e os pés pareciam garras. Produzia um ruído muito baixo, como se respirasse com bastante dificuldade. A mulher me contou que quem possuísse o Chaquí teria muita sorte, tornar-se-ia um homem muito rico. Não sei porque o Chaquí não funcionava com ela, que parecia muito pobre. Mais um mistério de tantos que aquelas terras guardam.

-E o senhor comprou o Chaquí? - perguntou Alexandre, que havia se impressionado com o relato.

-Sou um homem muito rico. - Limitou-se a responder José Monteiro.

-E....onde o senhor mantém esse...Chaquí?

-Aqui, nesta biblioteca.

-E do que esse Chaquí se alimenta?

-Carne humana fresca.

Eduardo fechou a porta, os dois filhos e Marco Antônio saltaram sobre Alexandre. Maria Amélia e a filha cobriam os livros com papelão ondulado, Ana Lúcia e a Viúva riam como loucas. Alexandre viu com horror quando José Monteiro retirava uma bizarra criatura de dentro de um pote...

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 10/06/2020
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