O Diário de Juliana

Algumas mudanças de residência são para melhor, outras, para pior. Infelizmente, dessa vez tínhamos a segunda opção. A casa em que morávamos era excelente. Éramos inquilinos antigos e nosso aluguel era uma pechincha, pois pagávamos direto ao proprietário, que poucas vezes havia atualizado o valor, estando assim bem defasado. Acontece que ele acabou morrendo e o filho, assumindo os negócios do pai, pediu-nos a casa. Dizia que tinha planos de construir um prédio de apartamentos naquele terreno.

Dessa forma, sem muitas opções e com preços exorbitantes, acabamos alugando uma casa no outro extremo da cidade. Era uma casa grande, porém antiga e em mau estado de conservação. Sabíamos que era o que tínhamos em mãos, assim como também sabíamos que não faríamos nenhuma grande reforma, pois não havia dinheiro para isso. O proprietário, dono de várias casas de aluguel pela cidade, não tinha o hábito de gastar com manutenções.

Mudamos num sábado pela manhã. Eu tinha dezesseis anos e morava com meus pais e uma irmã, de vinte anos. Enquanto ajeitávamos a mudança na nova moradia, pensava o quão desleixados eram os inquilinos anteriores que, ao longo do tempo, teriam passado por ali. A pintura estava horrível. Podia-se perceber que tinha goteiras, a julgar pelas manchas no chão e no forro, e também pelo cheiro de umidade. Havia muita madeira podre, com “remendos” precários nas paredes. Nas janelas, vários vidros estavam quebrados. Parte do assoalho ficava num nível bem mais elevado que o terreno e, sob o mesmo, havia bastante entulho. Nós teríamos bastante trabalho para deixar aquilo em melhores condições.

Havia uma peça, a qual eu nem poderia chamar de edícula, nos fundos da casa. Na verdade, era um “puxadinho”, aparentemente construído posteriormente. Não parecia parte original da obra, mas também estava em péssimas condições. Tábuas soltas que rangiam, e tomadas de cupins, a julgar pelos túneis que podiam ser vistos sob a tinta descascada. Havia algum encanamento ali e acredito que ali funcionasse uma lavanderia.

O que estivesse ao nosso alcance nós faríamos, desde que não onerasse nossos cofres que, conforme já dissera, estavam vazios. Apesar de ainda adolescente, eu gostava de trabalhos manuais, de lidar com madeiras. A estante que uso com o computador havia sido construída por mim. Então eu seria bastante útil nas melhorias da casa. Comecei trocando alguns pedaços de forro que se encontravam podres. Havia um buraco no teto, que parecia ser usado para passar a chaminé de algum fogão à lenha. Começaria por ali.

Assim que removo parte da madeira apodrecida, vejo cair ao chão, em meio a muita sujeira, um pequeno caderno. Era algo como uma agenda, na verdade. Desço das escadas e percebo ser um diário. Quem usa diários hoje em dia? Mas logo tive a resposta à minha pergunta pois, já nas primeiras páginas, constava a data. Aquele diário havia sido escrito há pelo menos dez anos. Havia um nome: Juliana.

Guardo-o no bolso e volto ao trabalho. Tinha muita coisa para fazer. Meu pai tinha pouquíssimo tempo, pois o trabalho lhe ocupava grande parte dos dias e, com ele fora, eu era o homem da casa.

Alguns dias mais tarde lembrei do diário. Por que teria sido colocado naquele buraco? Teria sido a Juliana a escondê-lo naquele lugar? Procurei-o em uma de minhas gavetas e, antes de abri-lo novamente, me questionei se seria correto invadir daquela forma a privacidade de uma garota... ah ela já deveria ser uma mulher, e estaria bem longe dali. A curiosidade acabou vencendo e li as primeiras páginas, nas quais ela dizia estar gostando de um menino da escola. Tinha quatorze anos e pensava que jamais se declararia ao garoto, mesmo porque seus pais não admitiriam que ela namorasse com apenas quatorze anos. Outras páginas falavam do relacionamento difícil com o pai opressivo. Abandonei a leitura porque começava a sentir uma atmosfera pesada. Pensava ser mais divertido o diário de uma garota. Guardei-o novamente na gaveta.

Naquele mesmo dia, já à noite, deitava para dormir. Tinha o hábito de ir para a cama cedo pois levantava de madrugada para ir ao colégio. Encontrei o diário de Juliana embaixo do travesseiro. Muito estranho, pois lembrava de guardá-lo na gaveta. Por fim, concluí que minha mãe teria mexido em minhas coisas, e o teria deixado ali. Aproveitei para ler mais algumas páginas.

Juliana parecia uma menina bastante triste, talvez até transtornada. Nutria um amor platônico pelo tal menino, e temia o pai opressor. Era comum que ela e a irmã, dois anos mais jovem, fossem espancadas. Cintos, sandálias, até cabos de vassoura eram usados nos castigos. Qualquer estrepolia era motivo para os castigos físicos, até mesmo uma nota baixa gerava uma surra. Quando ele não sabia qual das duas havia quebrado o vidro de uma janela, na ausência de uma confissão, batia nas duas... Parei de ler, aquilo tinha uma energia muito negativa, pensei. Fechei o diário e o guardei, na gaveta, deixando-o por baixo dos outros livros que ali havia.

Na noite seguinte, assim que deitei para dormir, lembrei de Juliana, e da vida triste que levava. Meu pai jamais erguera a mão para mim. Seu estilo era sentar e dar lições de moral. Era difícil ouvir tais lições, mas com certeza seria pior ser espancado por um ignorante como parecia ser o pai das duas meninas. Quase pegava no sono quando minha mão toca em algo gelado. Pensei ter deixado meu celular sobre a cama, mas logo percebo ser o diário. Novamente saíra da minha gaveta? Minha mãe teria, de novo, mexido em minhas coisas? Mas se assim o fizesse, por que o deixaria sobre a cama? Sem contar que teria me perguntado porque eu estaria portando o diário de uma menina. Liguei a luminária. Estava confuso e confesso que, naquele momento, um pouco tenso. Voltei a ler, a partir do ponto em que havia pausado.

“Quinta-feira, 19 de Agosto de 2010... Estou muita assustada... ele está sempre à espreita, me olhando com malícia. Tenho medo... Hoje perguntou-me se eu já estava namorando. Tem um olhar estranho...e por que perguntar-me esse tipo de coisa? Tenho vontade de contar a mamãe mas ela falaria com meu pai, e não sei o que poderia acontecer... acho até melhor dar um fim nesse diário...”

A partir daquela página, o diário se encontrava em branco. Acredito ter sido o momento em que Juliana o teria escondido, com a ajuda do buraco da chaminé. Aquilo começava a me perturbar, afinal não tínhamos mais apenas uma menina que apanhava do pai...tínhamos alguém, eu diria que praticamente uma criança, sendo assediada por alguém. Talvez um professor... mas estava em branco a partir daquele ponto. Guardei-o, dessa vez em minha mochila, e tentei dormir. Aquelas palavras não me saíam da cabeça. Ela escrevia bem, parecia ser bastante inteligente. Estava sendo assediada por algum pervertido e não podia pedir ajuda aos pais... Acabei adormecendo quando já era madrugada, e tive pesadelos.

Na escola, minha concentração estava comprometida. Naquela manhã havia feito um teste e, mesmo antes da correção, já sabia que tinha sido um desastre. Simplesmente não conseguia raciocinar. Minha atenção estava voltada ao diário que trazia na mochila. Alguns amigos perceberam que algo não ia bem. Sempre fui bastante extrovertido. Era o cara que fazia as melhores piadas entre os colegas. Sempre gostei de interagir nas aulas, porém aquele dia, além do fracasso no teste, mantive-me isolado e calado a manhã inteira.

Imaginava como seria seu rosto. As páginas que seguiam, em branco, jamais me deixariam saber mais sobre Juliana. Deitei para dormir. Sequer o celular trouxe para a cama, aliás não o utilizei o dia inteiro, Nenhum recado que lá houvesse me interessaria. Talvez ler um pouco me deixasse relaxado. Estava encalhado havia alguns dias na leitura de Vidas Secas, e precisaria retomar. Quando penso em buscar o livro, percebo que tenho, em mãos, o diário. Aquilo me causou um certo susto. Não lembrava de tê-lo tirado da mochila desde que lá o guardara, mesmo porque não havia mais o que nele ler. Acredito que o tenha feito distraidamente. Com a ajuda da lingueta que marcava as páginas, abri no ponto onde minha leitura tinha tido fim.

“Segunda-feira, 30 de Agosto de 2010...”

“Mas que diabos! “ exclamei ... tinha certeza que não havia aquele registro. Tinha certeza de que todas as páginas, até o final, estavam em branco... mas devo ter me equivocado, que mais poderia ser?

“Hoje fazia calor, e ele estava sem camisa, lavando o carro. Ele não desgrudou os olhos de mim, enquanto eu passava do outro lado da rua... velho asqueroso. Sem se importar com quem estivesse olhando, assoviou para mim... preciso que alguém me ajude...”

Terminava assim. Certifiquei-me, mais uma vez, que não havia mais nada registrado. Todas as páginas, a partir daquelas reticências, estavam vazias. Velho asqueroso? Podia ser um professor, como já pensara antes, porém ela o descreve sem camisa, na rua, lavando o carro. Guardo o diário na mochila e penso que tenho que tentar dormir... até consegui, já bem de madrugada, mas novamente tive pesadelos.

Perturbado, passei a viver em função do que encontraria, à noite, no diário. Mesmo deixando-o em minha mochila, ou na gaveta, ele aparecia sob meu travesseiro. Eu já sabia que haveria mais algo registrado.

“Terça-feira, 14 de Setembro de 2010... Fui sequestrada... ele me levou para o porão da sua casa. Estou amarrada e amordaçada. Não consigo gritar...estou apavorada... ele vai me matar...”

Aquelas linhas me deixaram profundamente perturbado. O teor daquelas palavras...e quem as escrevia? Como? Eu não conseguia formar nenhum raciocínio lógico... sentia calafrios manuseando o tal diário. Juliana havia sido sequestrada pelo velho asqueroso que a assediava... o que acontece depois? Amanhã terei um novo capítulo no diário de Juliana? Se ela escrevia aquilo, como o fazia? Pensei ser hora de pedir ajuda, talvez de minha irmã... mas quem acreditaria em algo assim? De qualquer forma eu tinha algo gravíssimo em mãos, uma denúncia que precisava ser averiguada... Não sabia o que fazer, não sabia em que pensar... levantei e me dirigi ao banheiro. Lavei o rosto e me olhei no espelho. Era nítido o pânico em meu semblante... as olheiras pelas noites mal dormidas, os olhos fundos... estava enlouquecendo. Não sabia como se dava algo assim, mas tinha, naquele momento, certeza de ter desenvolvido algum distúrbio psiquiátrico. Naquela noite vi vultos em meu quarto. Alguém, num dos cantos, me observava. Não parecia uma figura humana. Era, na verdade, uma mancha disforme que, às vezes, mudava de lugar. Ficou ali a noite toda...enquanto eu permanecia sentado na cama, com o diário nas mãos, abraçando os joelhos.

Imagino que, em algum momento, devo ter adormecido. Acordo com o sol alto. Era domingo e, sem escola, meus pais já sabiam que eu sairia tarde da cama. Lembrei de tudo o que houve na noite anterior. Além do diário que, inexplicavelmente, ia tendo suas páginas escritas diariamente, lembrava também da imagem que passara a noite toda a me observar.

O diário encontrava-se em minhas mãos. Hesitante, abri-o novamente:

“Sábado, 11 de julho de 2020...”

Era a data da noite anterior... pulei da cama, derrubando o diário no chão. Passados alguns instantes nos quais um turbilhão de coisas vieram à minha mente, tinha-o em mãos novamente. Não consegui me conter. Teria que ver o que mais havia lá:

“ O vizinho... aqui em frente, o professor... ME AJUDE!”

Era hora de colocar um fim àquilo... enlouquecendo ou não, procuraria ajuda, e assim o fiz. Levei o diário até minha mãe, tentei lhe contar somente que encontrara um diário que sugeria um rapto. Omiti a maior parte da história. Mostrei-lhe os registros e, é claro, ela questionou muita coisa como, por exemplo, a última data, da noite anterior. Mesmo assim, sabendo que eu não era nenhum desajustado, resolveu, junto ao meu pai, averiguar a situação. Havia, realmente, um velho professor morando em frente a nossa casa. Ele tinha mesmo, em casa, um porão. Era um senhor respeitável, com esposa, e filhos já formados, na universidade, que não mais moravam com ele. O diário foi levado até a delegacia da cidade. “As autoridades competentes que vejam o que fazer com isso” disse meu pai. E assim se fez...dentro de alguns dias, vimos viaturas da polícia parando em frente à casa do professor. A notícia logo se espalha, não somente pelo bairro, como por toda a cidade: Juliana fora encontrada, ou melhor o que dela ainda restava, enterrada no porão no qual somente o velho e , até então respeitável professor, costumava entrar.

Hoje, moro sozinho. Tenho trinta anos e sempre visito meus pais, que moram em outra cidade. Minha irmã não conversa mais comigo, pois tivemos uma daquelas brigas bobas que acaba virando uma bola de neve. Sou professor, de Filosofia. Gosto de morar sozinho e saber que ninguém mexerá nas minhas coisas. Dou aulas na escola que é conhecida pelo caso do professor que raptou uma das alunas mais inteligentes que tinha. Hoje conheço seu rosto. Há várias fotos suas em um memorial naquela escola. Uma das professoras mais antigas, prestes a aposentar-se, diz ter conhecido Juliana, e lembra de quando ela, misteriosamente, teria desaparecido. Não posso dizer que me sinto mal em lecionar naquela escola, pelo que tenha acontecido com Juliana. Minha relação com ela vai muito além de algo raso assim. Quem ainda hoje em dia usa diários? Pois bem, eu o faço... guardo-o na gaveta do criado-mudo e gasto os dias ansiando pelas noites pois, quando retorno para casa, sempre o encontro embaixo do meu travesseiro.