NO CREO EN BRUJAS, PERO QUE LAS HAY, LAS HAY - CLTS 12

O clima quente ainda era sentido mesmo aos finais de tarde do verão daquele ano, um cenário convidativo para que Luna seguisse a explorar o quintal de casa até as primeiras estrelas serem estampadas aquele límpido véu escuro que cobria a residência dos Díaz ao anoitecer.

Luna sabia se divertir sozinha - uma competência necessária pelo menos até a idade em que a pequena Filippa pudesse manter o corpo firme para dar os primeiros passos - e usava desses momentos para descobrir sobre toda a imensidão que lhe recebia ao cruzar a porta de casa.

Porém, naquele fim de tarde em específico, Luna deparou-se com uma criatura que lhe marcaria a memória dali em diante. Sabia que o pai não gostava quando mexia em suas ferramentas mas, com a teimosia e a coragem de uma menina de 6 anos, não importou-se com os avisos ao entrar no quartinho afastado da casa, usado para armazená-las.

Pouco foi o tempo para bisbilhotar naquele cômodo. Um movimento não planejado fez com que ao seu lado um bom número de itens viesse ao chão. Acompanhado do estrondo das ferramentas caindo, viu de relance o avançar de um vulto monstruoso, um pesado bater de asas em uma rápida investida contra seu corpo.

O enorme susto ativou reflexos desconhecidos até então. A palma da mão instintivamente se chocou contra a criatura voadora; o rosto se vira para desviar o olhar do que quer que a tivesse atacado. As pernas giram em velocidade, se afastando o máximo que podia daquele local.

Um berro rasga o silêncio naquele lugar tão distante de todos. Gritou por socorro; por salvação. Gritou pela sua mãe.

Segundos separaram a chegada daquela preocupada senhora das lamúrias de sua filha mais velha.

— TINHA ALGUMA COISA NO QUARTINHO DE FERRAMENTAS! ELA ME ATACOU! — em prantos, tentava explicar a menina. A mãe se afasta e percorre o caminho em direção a figura retorcida próximo de onde estavam. Luna ousou novamente olhar para a criatura, que se debatia lentamente no chão, sem forças para alçar um novo voo. Parecia agora muito menor do que no primeiro encontro.

— Ah, não...não acredito. É uma bruxa.

As pesarosas palavras que saíram da boca da mãe atingiram Luna com força. “Uma Bruxa? Como as das histórias e dos filmes?”, pensou em desespero a já abalada menina no chão. Não tinha noção do perigo que estava correndo, e muito menos da existência destes seres tão malignos.

— Ela ainda está viva...preciso pegar algo para queimá-la — a mãe falava consigo mesmo, absorta aos próprios pensamentos. Em seguida, percebeu nos olhos da filha o quanto ela ainda estava assustada com toda a situação — Está tudo bem agora, meu amor. Vou te mostrar algo que a minha tia Dolores me ensinou quando eu tinha a sua idade. O jeito correto de dar fim a esses bichos é queimando e colocando sal, pois assim eles não nos amaldiçoam com má sorte.

Estranhamente a mãe revelava aquela sentença com um sorriso doce no rosto, causando mais confusão na infantil e imaginativa mente daquela criança.

— Vim o mais rápido que pude — Luna sentiu a voz e os braços do pai lhe envolverem em segurança.

— Eu...me assustei com aquela...bruxa. Dei um tapa nela e sai correndo.

— Tá tudo bem, já passou. Mas como você tocou nela, é importante lavar as mãos, entendido? Eu te ajudo.

Acompanhada do pai até o banheiro, escutou atentamente as explicações dele, que pareciam ainda mais sinistras. Diferente da mãe, sentiu o pai muito mais tranquilo com a presença da bruxa em seu terreno.

“Como se podia ficar tranquilo com um monstro que não se pode nem tocar?”, pensou.

— A gente tem que lavar as mãos pois esses “bichinhos” tem um pó nas asas que, se caírem nos olhos, pode causar uma alergia, machucando bastante — tentou amenizar. Sem sucesso.

Luna passou a noite em claro, enfrentando infinitas vezes aquele embate com a bruxa em sua imaginação. Cogitava se haveria outras como aquela do lado de fora, se esgueirando ao redor de sua casa apenas aguardando o momento certo para atacá-la outra vez.

Talvez até planejassem a vingança contra ela, ou contra sua família. Pensava em sua irmã mais nova, em como ela poderia estar indefesa diante daquela ameaça.

O amanhecer na casa dos Díaz era acompanhado de uma série de tarefas domésticas que Luna sempre se prontificou a realizar. Naquele dia, os passos sonolentos e cansados tentavam acompanhar os da mãe em direção ao varal de roupas. A mãe, atenta, questionou se algo estava a incomodando naquele instante. Luna dizia estar tudo bem, afogando em seu silêncio todos aqueles sentimentos ruins para dentro de si.

— Sabe, filha — iniciou, buscando um assunto para quebrar a tensão — uma outra coisa que a Tia Dolores me ensinou sobre as bruxas é que quando elas entram em nossa casa, algo ruim sempre acontece. Você foi corajosa em se defender dela, pois nos defendeu também. Estou orgulhosa de você!

As palavras surtiram um efeito quase nulo no ânimo da menina, que seguia remoendo o seus temores. O fato da Tia Dolores ter sido citada novamente deixava a situação mais estranha. Ao falar dela, se materializou em sua mente a imagem que lembrava desta mulher: a face mal encarada, os cabelos desgrenhados e um “quase” bigode; a casa cheia de penduricalhos, carrancas e tomada pela forte fumaça de incenso...claramente, uma legítima bruxa.

— Mãe...por acaso a tia falou sobre como as bruxas se transformam “naquilo”?

Ela parou por um instante e encarou com curiosidade a pequena menina ali ao seu lado. Entendia agora de que “bruxa” a sua filha estava se referindo. Se agachou até alcançarem a mesma altura e tratou de explicar a filha:

— Querida, é por isso que parece tão assustada? Meu amor, esse tipo de “bruxa” que você está pensando, não existe. Só em lendas. O que existe é esse bichinho que você encontrou ontem, que também chamamos de bruxa.

— Mas eu vi você queimando ela ontem...

— Bem...queimei porque era preciso. O nome disso é superstição, eu acho.

— Mas se você me diz que elas não existem, porque você acredita que se aquele bicho entrar em casa, vai acontecer algo de ruim?

A adulta se calou em surpresa diante da confrontação daquela pequena. Assim como qualquer pessoa, jamais havia parado para refletir sobre o porquê de certos comportamentos, ou de crenças tão enraizadas que nunca exigiam nenhum exercício de lógica para serem acreditadas. Apenas eram. Assombros que passavam de geração em geração, diluindo no tempo seu real significado. Passada aquela manhã, já não se recordava mais de qual havia sido sua resposta para a pergunta da filha.

O passar dos dias condizia com a evolução da letargia que agora açoitava aquela criança. Os traços de energia, teimosia, valentia...todos foram abandonados, queimados junto com o corpo da criatura. A mácula na filha afetava todos os cantos daquela morada. A menina que antes empenhava-se em explorar o mundo parecia não ter forças para sair da própria casa, elevando a preocupação dos pais.

Em algum desses fins de tarde usuais, onde Luna encontrava-se reclusa e meditativa em seu quarto, o cotidiano daquela cena foi quebrado pela presença do pai que pediu licença para falar alguns minutos com a filha.

— Eu entendo que você se assustou muito naquele dia...mas você só vai vencer esse medo voltando a fazer as coisas que fazia antes. Aquele inseto não vai te fazer mal. Você é muito maior que ele.

— Eu me assustei pra valer com aquela bruxa, pai.

— Por favor, esqueça essa história de bruxa. O nome correto é mariposa — diferente da mãe, o pai tentava transferir todo o seu ceticismo para a consciência da filha —, um inseto comum de aparecer nessa época do ano. É igual a uma borboleta, só que maior...e muito mais feia.

O carinho do pai fez a menina levantar um breve sorriso entre as bochechas. Faria um esforço maior para não ficar enfrentando a bruxa em seus pensamentos e sonhos, assim como projetava uma nova ida ao quintal de casa no dia a seguir. Talvez o pai estivesse certo, preferia acreditar que nada naquela criatura lhe faria mal.

A noite seguia quente, como todas daquele verão. A sede fez com que Luna percorresse um caminho intimidador adentro do breu da casa. Porém, ao chegar à cozinha, a profusão de luz que preencheu o espaço não lhe trouxe a sensação de segurança que esperava.

A menina sentiu a secura de sua garganta aumentar, os olhos despertarem forçadamente. O coração, sem ritmo, parecia querer escapar de seu peito. No alto da parede oposta a ela, novamente se deparava com a aterradora figura alada. Mais nítida do que nunca.

Estava congelada no tempo junto daquela temível bruxa. A invasora parecia muito maior e imponente do que a que fora derrotada anteriormente. As asas negras mais pareciam uma carranca a lhe rogar suas maldições. Figuras simétricas e arredondadas naquela estrutura eram como os olhos que lhe encaravam de forma maldosa, talvez lhe lançando um encanto profano.

E ali, diante daquele impasse, deveria tomar uma importante decisão.

Poderia chamar a mãe, que certamente daria fim aquela criatura.

Poderia enfrentar seu medo pois, como havia sugerido o pai, o inseto também temia a presença dela ali.

As duas imóveis, sem que nenhuma se atreve-se a realizar qualquer movimento brusco. Luna girou em seus calcanhares novamente e, desta vez sem correr, saiu a passos lentos do campo de vista daquele inseto. Ainda aflita, notou que sua atitude também exigiu coragem. Se afastar daquilo que lhe fazia mal, de forma tão irracional, podia ser considerada uma pequena conquista para aquela jovem.

Luna não teve tempo de ter a sua tão esperada noite sem a presença da bruxa. Horas mais tarde, no quarto dos pais, o choro da pequena Felippa acordava a todos naquela madrugada. Ao levantar, viu a apreensão na expressão de seus pais ao retirar a bebê de seu berço. A irmã mais nova de Luna chorava alto, esfregando compulsivamente as mãozinhas pelo rosto, que parecia vermelho e com pequenas bolhas próximas aos olhos. A filha mais velha sentiu o peso da culpa sobre seus frágeis ombros, e lentamente se afastou daquele lugar para retornar a seu quarto.

A menina seguiu sem explorar o quintal no dia seguinte e nos posteriores. Lá estava ela no quarto, cada vez mais imersa em seus silêncios e na própria solidão. Os pais se esforçavam na tentativa de elevar o ânimo da filha, mas a condição de Felippa era grave e demandava muitos cuidados e atenção devido ao risco eminente de que a filha mais nova pudesse perder a visão.

Os traços de felicidade e afeto, tão presentes na vida dos Díaz, foram também se desvanecendo. Em um ritmo tão próximo quanto ao pesado bater de asas daquelas bruxas.

Tema: Superstição (e, quem sabe, bruxas)

Nunes Pedroso
Enviado por Nunes Pedroso em 17/07/2020
Reeditado em 10/08/2020
Código do texto: T7008991
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.