A DOCA - O Lobisomem Haitiano

A Doca

“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Tentei chorar e não consegui.

Renato Junior Manfredini ”

Capítulo I

A troca de turno

Esse é meu relato, eu não o estou revelando para aparecer ou para ganhar algo em troca, faço-o em forma de aviso, de alerta, espero que entendam e respeitem o meu anonimato.

O fato relatado aqui, pode me custar a vida, como quase já custou quando do ocorrido, logo todos vocês entenderão, espero que acreditem no que contarei, pois é muito difícil para mim ter que reviver tudo isso, mesmo que apenas mentalmente, porém preciso fazer isso, pois sei que assim posso ajudar aos outros a não terem que ver o inferno em forma de bicho que eu tive que ver.

Eu não direi o meu verdadeiro nome, nem em qual local ou quando aconteceu, digamos que meu nome seja Sebastião, Bastião, se vocês acharem melhor.

Eu trabalhava em uma doca, próxima ao cais de um grande porto, mas era uma em uma parte mais isolada, alguns chamavam o lugar de Buraco Negro, pois não sabíamos de onde vinha e muito menos para onde ia o que era descarregado ali, era um cais onde poucos navios atracavam, e os que chegavam, descarregavam rapidamente e logo partiam, com pouca burocracia, digamos, e nós que trabalhávamos ali, éramos orientados a sermos cegos, surdos e mudos.

Gostava de trabalhar lá, o dinheiro e o posto eram bons, sem muito movimento, todos vinham, faziam seus serviços e iam embora. Algumas vezes chegavam policiais e fiscais, com suas caras amarradas, sisudas, porém logo vinham os senhores de terno, “os gravatas”, como nós os chamávamos, juntamente chegava alguém do escritório do porto, discutiam calorosamente, como disse, éramos surdos, ou melhor, nos fazíamos de surdos, porém ouvíamos, mesmo mantendo distância, cada um sabia de seu quadrado, mas alguns fiscais e policiais falavam alto, gritavam, só que “os gravatas” e o pessoal dos escritórios logo os acalmavam, em pouco tempo, saiam dando tapinhas nas costas uns dos outros, como dizem, todo mundo tem seu preço.

Acho que todos já entenderam que por ali entrava o contrabando, o que era ilegal chegava através do nosso cais, claro que nós apenas víamos as caixas fechadas, lacradas, éramos cegos, mas não burros.

Naquele dia, cheguei às 19 horas para um turno de 12 horas, meu colega com cara de cansado, passou a planilha, reclamou que durante o turno dele chegaram dois navios, os dois já tinham descarregado, mas um ficou atracado para ir embora apenas no outro dia, e que os marinheiros, uns panamenhos, tinham saído para conhecer a cidade e ficaram de voltar depois, até no máximo as 3 horas da madrugada, pensei: “Droga, não vai dar para sestear, bem, isso acontecia, às vezes, até então tudo normal”, e ele continuou, “Bastião, tem uma jaula lá no fundo, deixaram ela coberta, fui avisado diretamente pelo capitão do navio que era um animal selvagem, muito perigoso, e que não era para eu chegar perto, pois ela estava bem coberta e trancada. Dai, não levou nem 5 minutos, ligaram lá do escritório e me falaram a mesma coisa, que era para eu deixar a jaula lá e ficar aqui, bem longe, e pediram para te avisar também, até que fiquei curioso, mas tu sabe como é, melhor não nos metermos em encrencas, né??. Mas, Bastião, vou te dizer, nunca vi um bicho tão calmo, desde que largaram a jaula lá, toda coberta com uma lona, não ouvi som nenhum vindo daquele lado, isso aqui está que é um velório, um silêncio só! E normalmente esses bichos fazem um griteiro de dar dó, mas, então ‘tá, Bastião, recado dado, vou seguir meu rumo para casa, que amanhã tem de novo, pois estou que uma canseira só, boas noite e não faz bobagem!”

E Chico se foi, eu me arrumei, organizei as planilhas, preparei a salinha, liguei a TV e fiquei assistindo ao jornal, seria uma longa noite, já que teria que esperar os marinheiros, nada de dormir…o negócio era beber café e mais café.

Capítulo II

A primeira ronda

Era por volta das 21 horas, fiz a ronda externa e interna, tudo tranquilo, levei uns 45 minutos nessa inspeção, noite linda de lua cheia, nem acendi a lanterna na rua, só lá dentro do galpão, pois as lâmpadas internas eram fraquíssimas. Chico estava certo, realmente, parecia um túmulo ali dentro, frio e silencioso, como deveria ser, se não estivéssemos com aquele animal na jaula, tinham muitas caixas e contêineres, afinal, foram dois navios naquele dia, na manhã seguinte, logo cedo seria uma correria, pois as mercadorias não ficavam mais que horas ali, quando demoravam e que vinham aqueles fiscais e policiais nervosos, todavia, logo a mercadoria evaporava através de algum buraco negro. Porém algo me deixava incomodado e bem cabreiro, era muito estranho ter um animal enjaulado lá e estar assim, com esse silêncio fúnebre!

Seguidamente tínhamos animais ali, girafas, leões, macacos, ursos, até cobras e peixes, que não ficavam em jaulas, claro, mas sabíamos que era carga viva que tínhamos ali, vocês não têm ideia de que essas pessoas contrabandeiam!

Pobres bichos, eu pensava, nem fizeram nada de errado e ali estavam, enjaulados, para satisfazerem o bicho-homem, quanto mais conheço o ser humano, mais eu gosto do cachorro!

Capítulo III

A segunda ronda

Jantei, já era quase meia-noite, foi quando tomei a pior decisão de minha vida, vou assumir para vocês, eu sempre fui curioso, muito curioso e não parava de pensar no que teria naquela jaula, qual seria esse animal tão silencioso, que tipo de bicho, algum raro, será que estava dopado? Mas tanto tempo, nem som de respiração se ouvia, isso era muito estranho!

Eu vi que não era uma jaula muito grande, não devia ser urso nem leão, se bem que esses caras não se importavam muito com o bem-estar dos animais, então pensei, será que o bicho estaria morto? Que mal faria dar uma conferida? Nenhum, mas descobri que estava errado, muito errado!

Fiz a ronda externa, agora havia algumas nuvens, mas o céu ainda parecia um dia de tão clara e forte que estava a lua, tomei coragem e decidi ir futricar na tal jaula. Caminhei lentamente, verifiquei em todos os setores conforme era a nossa rotina, então fui em silêncio, pé por pé.

Naquele canto, a iluminação artificial não chegava, tinha apenas a claridade que vinha da lua por uma grande janela no teto, uma espécie de claraboia, era o local onde eram postas as caixas que sabíamos que eram as encomendas especiais, estava com a lanterna acesa na mão, suspirei e puxei a lona que cobria a jaula, um enorme susto, eu travei, fiquei de boca aberta, deixei a lanterna cair, eu quase cai!

Capítulo IV

A jaula

Não tinha bicho ali e sim um homem, ele estava sentado em um canto, parecia meio que dopado, levantou a cabeça e me olhou, e eu continuava como uma estátua, sem entender o que ele fazia ali, enjaulado como um animal!

Era um homem negro, muito escuro, começou a falar em outro idioma, algo enrolado, parecia francês, eu acho, ele repetia sem parar: “Mwen soti Ayiti, ede, tanpri! Mwen soti Ayiti, ede, tanpri!”.

Dei dois passos para atrás, já tinha visto muita coisa estranha, mas um ser humano enjaulado como um animal, nunca! Nem pensei em mais nada, só que devia soltá-lo, era um homem franzino, com a cara cadavérica, devia ter passado fome naquela viagem, coitado, dizia para mim mesmo!

Peguei um pé-de-cabra, que estava escorado ali perto, e abri, não foi difícil quebrar aquele cadeado, o homem se levantou lentamente, com uma dificuldade extrema, não falou nada, nada que eu entendesse como palavras, pareciam gemidos, arfava muito. Ele se moveu até que chegou à parte da jaula que pegava a luz do luar e ali ele parou, pôs as mãos sobre as coxas secas, vestia apenas uma calça completamente suja e rasgada. Então pude ver melhor que ele tinha a aparência daqueles haitianos, os quais vemos por aqui vendendo produtos piratas nas grandes cidades. E eu estava entrando na jaula para ajudar, quando o homem deu um grito de horrível de dor, um som gutural, e caiu de joelhos, curvou-se sobre o próprio corpo e gemeu como um bicho, eu pulei para trás, Meu Deus do céu, que estava havendo que o homem do nada começou a gritar e gemer feito bicho!!

Não só gritava feito bicho o homem estava se transformando em um animal, seus ossos pareciam crescer e que arrebentariam a carne do homem, algo acontecia de dentro para fora daquele corpo, que agora, além de ter inchado e crescido muito, começava a ter tufos de pelos se formando bem na minha frente, era uma cena indescritível e insana, não sei quanto tempo isso demorou, mas sei que foi rápido, eu estava entrando em estado de choque, algo surreal acontecia e eu estava presenciando!

Capítulo V

Os marinheiros

Eu nunca acreditei nesse tipo de coisa, assombração, vampiros, monstros, lobisomem, mas era um que estava ali comigo naquela jaula. Foi quando eu ouvi o som alto da campainha tocar e esse som que salvou minha vida, eu acho, pois eu estava petrificado de medo, apavorado como nunca tinha estado, e o som desse alarme me trouxe à realidade (aquilo que eu estava vendo não podia ser real), e o monstro já estava quase que transformado, pelos grossos, negros e acinzentados cobriam quase todo aquele, agora enorme, corpo, as orelhas enormes, que quase batiam no chão, faziam um som assustador ao bater uma na outra, o homem antes mirrado, agora devia ter mais de 1,80 de altura, enorme, de aparência muito forte, porém não havia mais aquele homem, o que tinha ali era uma besta monstruosa que estava se preparando para pular em cima de mim, pois eu estava bem na porta e, com certeza, ela queria sair!

Foi quando novamente tocou a campainha, o que fez com que ele travasse o ataque, aquilo o assustou, parou, como se tentasse entender o que acontecia, olhou para cima e ao redor, procurando de onde vinha aquele som forte e estridente, notei que aquilo parecia atordoá-lo. Naquele instante, eu parei de tentar entender tudo o que estava acontecendo, meu instinto de sobrevivência veio à tona, simplesmente dei um salto para trás e sai da jaula, bati a porta e pus o cadeado no local para travá-la, o cadeado ainda estava na minha mão, estava quebrado, mas agi instintivamente.

O bicho já estava vindo novamente para atacar, com a lanterna pude ver bem sua cara medonha, uma mistura de porco com cão, dentes enormes, com certeza, um bicho do inferno, mas ainda não via um olhar de animal nele, parecia ainda ter os olhos de humano, não era um olhar bestial, todavia, tirando esse detalhe, não era mais um homem que havia ali.

Então, olhei para baixo e vi a lona, me abaixei e a peguei, joguei-a por cima da jaula, ela cobriu novamente toda claridade que vinha da rua, e o ser ainda não estava totalmente bicho, eu acho, pois ele rosnou, e gritou, parecia dizer algo naquela língua estranha e caiu deitado, encolhido, se retorcendo muito, como se estivesse convulsionando, mas aos poucos ouvi que o som diminuiu até que ficou inerte, e eu, por impulso, tapei completamente a jaula.

Sem olhar lá para dentro, virei de costas e corri, corri como nunca havia corrido, ao parar notei que o silêncio predominava no galpão, a companhia quebrou esse silêncio, eram os marinheiros, bêbados, riam alto, entrei na guarita e abri o portão para eles, passaram reto, nem me olharam, estavam trocando as pernas, também não falei nada, pois vi que eles foram diretamente para o navio, se bem que mesmo que quisesse, não conseguiria falar, pois ainda estava tremendo muito, tranquei a porta da guarita, deixei a luz desligada, fiquei sentado, meio que abaixado, de lá podia ver a porta do armazém, eu a havia fechado, qualquer movimento, eu enxergaria de onde eu estava sem ser avistado.

Capítulo V

O sonho era real

Não sei como, mas dormi, acordei com os primeiros raios de sol batendo na guarita, mas só sai dela pela manhã, quando caminhões e homens chegaram para levar as cargas, eu pensava: “deve ter sido um sonho, um pesadelo”, todavia ainda estava com medo.

Caminhões e camionetes entravam e saiam, eu não era fiscal nem encarregado de anotar as saídas, apenas abria e fechava a cancela, seguia tudo normalmente, me distraí, e nem pensava mais naquilo, preferi acreditar que era um sonho mesmo, afinal, lobisomens não existem.

Estava quase no meu horário de saída, quando uma camionete, daquelas grandes, que parecem um caminhão, das importadas, tipo de fazendeiro rico, parou bem ao lado da minha janela, aguardando que eu abrisse a cancela, havia apenas um item na carroceria, coberto por lona, uma lona igual à do meu sonho, por instantes eu fiquei perdido, sem entender, tentando me situar no que era ou não real. Nisso veio um vento forte, aqueles de beira de rio, e a lona se levantou um pouco e eu pude ver, de relance, a jaula com um cadeado quebrado! E lá dentro, parecia ter aquele vulto negro de um homem abaixado! Falei para mim mesmo: “não foi um sonho, o sonho era real!”, então, o homem da camionete, me olhou e disse, “o que houve, meu jovem rapaz, parece que viu uma assombração? Abre logo essa cancela”, e ele riu, riu alto.

Eu só balancei o braço, fazendo sinal para ele ir, apertei o botão e a cancela subiu e ele acelerou, e eu virei para dentro da guarita e ali fiquei sentado me perguntando, “que tipo de gente comprava um lobisomem?”.

Fui para casa, claro que não dormi, pois tudo o que ocorrera durante a noite, ficava passando em “looping” na minha mente, eu precisava saber o que era aquilo, provar para mim mesmo que não era loucura e pesquisei muito, fui para a internet, li horas sobre homens que se transformavam, sobre lobisomens, até que resolvi procurar o que aquele homem falava e o Google me mostrou que ele disse algo tipo, “sou do Haiti, ajuda, por favor”.

Então seguindo esse raciocínio de que ele era Haitiano, eu pesquisei o folclore daquele país, achei um vídeo interessantíssimo chamado de “Desaparecimentos De Crianças No Haiti, Lobisomens Haitianos ou Simplesmente Monstros Humanos?” em um canal do Youtube chamado Curiosidades e Mistérios YT, então, assim, acho que descobri o que ele era, aquilo era um loup-garou, uma espécie de bruxo que vira lobo, um monstro que come crianças! Um ser demoníaco, o qual apavora aquele povo já tão sofrido, se vocês procurarem no Youtube ou google acharão outros relatos sobres esses monstros assassinos.

Capítulo VI

O aviso

Naquele mesmo dia fui ao escritório da empresa, pedi transferência, como era antigo e com uma ótima ficha, foi fácil convencê-los da troca, hoje só trabalho de dia, nunca mais sai ou deixei os meus saírem nas noites de lua cheia.

Eu espero nunca mais ver algo tipo aquela coisa, eu não sei para onde foi aquele bruxo-lobisomem e para quê usariam aquela besta? Para que fim maligno alguém teria um monstro de estimação? Essas são perguntas que me atormentam diariamente.

Eu tenho pavor daquilo que vi e vivi, meus pesadelos são sempre sobre aquele monstro, todavia, não tenho medo apenas da besta, pois hoje ela serve a alguém e esse alguém deve ser pior do que o próprio lobisomem e, com certeza, usa-o para algum propósito maldito.

Deixo assim o meu aviso a todos, se cuidem, tenham atenção com as sombras, principalmente, quando houver lua cheia, mas não apenas nessas noites, pois nem todas as noites são do lobo, a maioria é do homem, e como dizem "homo homini lupus", ou seja, “o homem é o lobo do homem!”.

Boa noite!

Escrito e atualizado por Nilvio Alexandre Fernandes Braga, Eldorado do Sul, RS. 25/07/2020.

Nilvio Alexandre Fernandes Braga
Enviado por Nilvio Alexandre Fernandes Braga em 25/07/2020
Reeditado em 28/07/2020
Código do texto: T7016821
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