O Lobisomem e o galinheiro

O Lobisomem e o Galinheiro

Meu avô

Essa é uma antiga história, que escutávamos, uma lenda urbana da nossa pequena cidade. Quase que em todas as reuniões familiares até hoje, ela vem à tona.

Os mais antigos juram de pé junto que o que contavam era verdade verdadeira. Este conto passou oralmente de geração em geração, vou tentar relatá-lo da forma mais fiel, como eu ouvia meu avô contando. Provavelmente, serei bem fiel, pois o ouvi tantas vezes contando essa mesma história e sempre do mesmo jeito, com os mesmos detalhes, que me além de me ter feito a decorar, me faz acreditar que ela foi real.

Vamos à história, vou tentar relatar como se fosse ele a contar:

Era década de 1930, a nossa cidade era uma minúscula cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul, não mais que uma dúzia de casas ao redor de uma igreja, a maior parte do povo morava nas colônias, mais para área rural, vivendo da agricultura.

Lembro como se fosse hoje, eu estava ajudando meu pai a consertar um moerão, o qual estava quebrado, parte da cerca que separava nosso sítio da estrada que levava ao centrinho.

Foi quando chegou nosso vizinho, que tinha uma granja de galinhas, apeou do cavalo e se aproximou, deu bons dias e perguntou: “Vocês viram algo de estranho na noite passada, algum barulho, grito, os animais nervosos?”.

Eu era criança, naquela época, e a gente só escutava respeitosamente os adultos, apenas reparei que o vizinho estava com uma cara tensa e cansada, olhei para meu pai, para ver o que ele ia falar, ele respondeu o cumprimento, tirou o chapéu e disse: “Olha, Seu João, não vimos nada não, a noite foi como sempre por aqui, teve uma hora na qual eu ouvi os cachorros latindo, foi aqui para esses lados, só que isso é normal e logo pararam. De diferente mesmo, só esse moerão, que amanheceu quebrado, como se algo tivesse batido nele. Por que, vizinho, o que houve por lá?”.

Seu João, ainda muito sério, balançava a cabeça negativamente, como se sentisse mal por estar falando naquilo, pigarreou, respirou fundo e seguiu: "Seu Adão, foi assim, era por volta das 11 horas, eu estava indo até a patente, quando ouvi que tava uma bagunça forte no galpão das galinhas, um griteiro só das bichas, eu pensei que pudesse ser uma raposa, um gambá ou algum bicho que pudesse estar roubando os ovos delas. Corri para dentro de casa e peguei minha espingarda e me dirigi pro galinheiro, mesmo com lua, estava muito escuro, eu estava com um lampião. Quando estava quase chegando, pé por pé, pois não queria que o bicho me visse para que não se assustasse e fugisse, então senti que pisei em algo macio, meio que molhado, iluminei o chão e para meu espanto, vi que eram os restos de uma galinha, como se tivesse levando uma enorme mordida que a tinha partido ao meio, e o senhor sabe, seu Adão, minhas galinhas são grandes, eu pensei na hora, que bicho consegue morder daquele jeito? Resolvi apagar o lampião, comecei a ficar com medo, o barulho lá dentro estava cada vez maior, agora eu conseguia ouvir o som das bichinhas sendo devoradas, som de carne e ossos se partindo, fico arrepiado só de lembrar, olha aqui meus braços! Então, fui abaixado até uma moita para me esconder e de lá atirei para dentro do galpão, às cegas mesmo, foi quando ouvi um urro horrível, pensei: eu acertei! E as galinhas se silenciaram, meus cachorros que estavam bem loucos ao redor do galinheiro, mas vi que eles não tiveram coragem de entrar, com o tiro, acoaram mais ainda. Estava recarregando a arma, quando vi que saiu uma sombra enorme do galinheiro. O bicho parecia um urso de tão grande e caminhava em duas patas, mas não existem ursos para cá, vi que o bicho meio que se abaixava, se retorcendo, devia ser por causa da dor do tiro, eu me escondi mais ainda, Seu Adão, não vou mentir, eu estava tremendo de pavor, me controlando para não sair correndo, mas imaginei que mesmo machucado, se aquela fera corresse atrás de mim, iria me pegar em dois palitos.

Foi então que a coisa caminhou e parou a uns 5 metros de mim, levantou a cabeça e começou a farejar o ar, foi quando meu pavor foi até o limite da sanidade, eu vi que aquilo tinha enormes olhos vermelhos, presas de mais de 5 centímetros, o focinho estava todo ensanguentado, sangue das minhas galinhas misturado com uma baba grossa, também vi que o braço direito dele estava jorrando sangue, deve ser onde a bala pegou. Ele continuava farejando, estava me procurando, procurando a presa, virou lentamente a cabeça para onde eu estava e tenho certeza de que ele me viu, pois vi que aqueles olhos infernais que me fitavam, e senti uma coisa ruim, que me gelou a espinha, ele rosnou e girou todo o corpanzil para meu lado. Eu sabia que precisava fazer algo, pois ele me mataria em segundos. Eu tomei coragem, meus cachorros cercavam o bicho, não paravam de ladrar, mas não chegavam perto, mesmo irracionais, tinham consciência de aquele ser era mortal.

Dependia só de mim, respirei fundo, me levantei e atirei, mesmo tremendo mais que vara fina, não tinha como errar de tão perto, mas o bicho, mesmo grande e machucado, era mais ágil do que eu pensava, era para pegar no meio do peito, mas não pegou, todavia vi acertei na lateral do peito, onde deviam ser as costelas, ele urrou e deu uns passos para trás, se contorceu e caiu de quatro patas, balançou a cabeça, foi quando eu vi que as orelhas dele eram tão grandes que uma bateram na outra, dando um som de plaf, plaf, plaf, ele estava atordoado.

Percebi que aquela coisa podia morrer, estava pondo as balas na espingarda para matar de vez aquele demônio, porém ele deu um uivo tão alto e forte que eu cai para trás, de bunda no chão, as balas e a arma voaram para longe, deu tempo de eu pensar: “vou morrer”, mas para minha sorte, o ser do inferno saiu correndo, a galope, urrando e gemendo muito, devia ser de dor, e se foi, aquele inferno peludo sumiu na escuridão.

Seu Adão, fiquei ali uns 10 minutos, sentado, tentando assimilar tudo aquilo, nem fui ao galinheiro, só agora cedo tomei coragem de ir até lá, aquele monstro matou mais de 50 galinhas, tinha sangue e resto delas por tudo que é parede, não sei nem por onde começar a limpar. Pensei bastante, mas mesmo que achem que estou louco, preciso contar aos outros, pois aquele demônio pode estar vivo e a vida de todos nós está em risco, por isso eu resolvi ir até ao centrinho contar ao povo do ocorrido, vocês não acham que eu estou louco, certo?".

Ele olhou para mim e para meu pai, como se precisasse de nossa aprovação. Eu apenas fitei meu pai e esperei ele falar, ele olhou pro chão, olhou para mim e, por fim, para o senhor João e disse: “O senhor é um dos homens mais respeitados de nossa cidade, e tem esse meu moerão quebrado”.

O que tem o moerão a ver com a história eu pensei, mas meu pai continuou: "Não comentei nada, nem deixei meu guri aqui ver, mas na parte quebrada, tinha uma baita mancha de sangue e um grande tufo de pelos grossos e negros, pode olhar aqui, Seu João.". O vizinho se aproximou mais e meu pai com o pé desvirou o moerão quebrado, provando o que tinha dito, e eu que já estava assustado com toda aquela história, quase que comecei a chorar de medo, então meu pai falou: “Piá, pega nossos cavalos, vamos ao centrinho contar toda essa história com o Senhor João, e vai rápido!”. Eu saí correndo como um raio e, não demorou muito, já estávamos na cidade.

Em minutos todos os adultos estavam ao nosso redor na praça da cidade, mas seu João só queria começar quando o padre chegasse, afinal, ele era a autoridade maior de lá, mesmo que estivesse há poucas semanas na nossa cidade, tinha vindo para o lugar do Padre Alfeu que tinha ido viver ao lado de Deus fazia algumas semanas.

Estranhamente, ninguém o tinha encontrado, duas beatas e mais um coroinha, já tinham ido chamá-lo, mas nada de ele atender.

Foi então que seu João, meu pai, e mais uns 3 homens resolveram ir e abrir à força a porta da paróquia, eu fui atrás, pois mesmo de dia, eu estava com medo de ficar sozinho.

Bateram e chamaram muito, como novamente ninguém respondeu, eles empurraram a porta, que estava só encostada e foi então que todos viram o padre deitado na cama, sem roupas, com o corpo todo ensanguentado e morto.

Os homens entraram e viram que dois tiros, um no braço direito e outro logo abaixo das costelas, foram o que matou o padre.

Foi uma correria, logo, toda a cidade estava ali na porta para ver o homem santo morto.

Vi que meu pai e o seu Adão se olharam, mas nada falaram, não precisava.

Meu pai veio até mim e disse: “Vamos, meu filho, não temos mais nada a fazer aqui”.

Eu cheguei a abrir a boca para perguntar se eles não iam falar do bicho, mas ele apenas pôs o dedo indicador nos lábios e piscou, eu entendi que deveria ficar quieto, e sai para buscar os cavalos.

A cidade ficou de luto, claro, seu João e meu pai conversaram muito, por vários dias, até que resolverem contar ao povo a versão deles.

Todos ficaram em silêncio, pois eram dois moradores respeitados a contar aquela história maluca e muitos naquela época acreditavam em lobisomem.

Com a história dos dois, logo outros moradores tomaram coragem e relataram histórias parecidas, no final quase toda a cidade tinha visto o lobisomem, estranhamente, alguns até antes de o padre ir para nossas bandas, mas eles juravam ser verdade e ninguém discordava.

A conversa durou horas, até que os adultos resolveram, em respeito ao padre, manter segredo da história, e a mantiveram, mas nós, os jovens não tínhamos prometido nada!

E meu avô, que contava tudo aquilo com a cara mais séria do mundo, olhando para o vazio, fechava os olhos e começava a dar risada!

E era assim que meu avô sempre terminava a história, rindo e jurando que aquilo tudo tinha sido a mais pura verdade.

Por toda nossa cidade, em cada casa era contada uma versão, na realidade, até hoje a história do padre lobisomem é assunto, mas eu tenho certeza, que a versão mais verdadeira é a do meu avô!

Boa noite!

Nilvio Alexandre Fernandes Braga
Enviado por Nilvio Alexandre Fernandes Braga em 26/07/2020
Reeditado em 28/07/2020
Código do texto: T7017649
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