Encravada entre os bairros mais sofisticados da cidade, uma construção de tijolos vermelhos e ar de abandono chama atenção. O prédio, onde até meados do século passado funcionou o matadouro municipal e que permaneceu esquecido, resistindo ao tempo e à decadência, hoje abriga um museu, mas, apesar de toda a modernidade das instalações e da elegância do local, não perdeu sua fama de mal-assombrado.

Entre as muitas histórias envolvendo aquele lugar destinado à morte, conta-se que há muito tempo havia ali um funcionário famoso por sua crueldade. Valdo, um homem atarracado e de braços fortes, tinha por costume atormentar os animais que aguardavam para ser sacrificados. Os bichos que, sentindo o cheiro de sangue e pressentindo o destino à frente, mugiam e guinchavam apavorados tinham ainda que suportar os ferimentos que eram infringidos em seus lombos pelo facão que Valdo sempre trazia consigo.

Certa noite, Valdo se divertia cutucando um nelore com a ponta afiada de seu facão, o som dolorido se espalhando pela madrugada até que, inesperadamente, o animal investiu contra ele, derrubando-o num amontoado de esterco. Irritado com a ousadia do bicho e ferido em sua hombridade, Valdo arrastou o touro até o cadafalso e com a marreta atingiu sua cabeça. Com a destreza dos anos de experiência, ele feriu sem matar, deixando o animal agonizar até o amanhecer.

Valdo adorava narrar o que tinha acontecido naquela noite a quem quisesse – ou não quisesse -, ouvir. Contava com detalhes como havia estraçalhado o crânio do animal sem o matar, falava do mugido doloroso e de como o bicho foi se esvaindo em sangue e dor durante toda a noite.

Ele não percebia que causava asco nos ouvintes. Não havia quem gostasse de ouvir aquela história. Ninguém queria ser lembrado de que o suculento bife que havia comido na hora do almoço era não mais do que o pedaço de um cadáver, um bicho morto e que, muitas vezes, essa morte era cruel. As pessoas queriam apenas comer sua carne com a consciência tranquila e aquela história, contada com tanto prazer, perturbava quem era obrigado a ouvi-la.  

Valdo que até então era bem quisto pelos outros trabalhadores do matadouro, passou a ser hostilizado por sua brutalidade com os animais, até que acabou por ser demitido. Privado de seu ganha pão e do prazer da tortura, o homem entregou-se à bebida e à degradação. Era visto vagando pela cidade, com as roupas rasgadas, cheirando à suor e álcool e amaldiçoando aquele nelore que havia desgraçado sua vida.

Tempos depois do ocorrido surgiram relatos de que um nelore branco ferido na cabeça era visto durante a noite nas imediações do matadouro. Segundo diziam, o animal tinha os olhos injetados de fúria e sangue e assim que notava a aproximação de alguém, desaparecia na escuridão. Esses testemunhos continuaram até o matadouro ser desativado.

Coincidentemente, na noite em que o lugar foi fechado, o corpo de Valdo foi encontrado no prédio já vazio. O antigo carrasco havia se afogado numa imensa poça de sangue e, mesmo depois de morto, seus olhos permaneceram abertos e sua boca escancarada num grito sufocado. Caido ao lado do corpo, o facão ensanguentado.

As autoridades decidiram que aquilo havia sido um acidente, tudo indicava que após ter bebido mais do que o normal, Valdo foi até o antigo local de trabalho onde acabou caindo e ferindo a cabeça. Poucos acreditaram na história, afinal, não se sabia de onde teria vindo todo aquele sangue capaz de fazer um homem como Valdo se afogar, além disso, o corpo não apresentava qualquer ferimento aparente. O que se sabia com certeza é que, desde a morte de Valdo, o nelore de olhos vermelhos e ferida na cabeça deixou de ser visto, mas ainda hoje, em noites muito frias, é possível ouvir gritos agoniados, cheios do mais intenso pavor, ecoando no interior do antigo prédio de tijolos vermelhos que hoje é um museu.  









Nota: a foto da capa é do prédio do antigo matadouro que fica aqui na minha cidade e que inspirou essa história. Em breve o lugar que está sendo restaurado, pois trata-se de patrimônio tombado, será a sede do Museu da Imagem e do Som e, apesar da história acima ser completamente ficticia, o local tem um ar de assombro, além disso, dois suicidios ocorreram nas imediações em outros tempos.
Fefa Rodrigues
Enviado por Fefa Rodrigues em 31/07/2020
Reeditado em 04/08/2020
Código do texto: T7022268
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