A HISTÓRIA DOS PESCADORES

Afonso e Juno eram amigos desde a mais distante lembrança. A amizade e o companheirismo que nutriam de forma mútua costumavam levá-los a inúmeras atividades em conjunto, uma vez que os interesses em comum e os gostos similares, fossem por esportes, garotas, carros ou quaisquer outros assuntos, colaboravam como uma amálgama a uni-los em suas desventuras.

Dentre todas as coisas que gostavam de compartilhar em seu tempo, a pescaria, sem dúvida, era a atividade predileta. Eles, sempre que podiam, participavam de toda sorte de certames e torneios referentes ao tema, e há muito pensavam em participar do Grande Desafio de Pesca das Três Irmãs. O nome da competição remetia a peleja que ocorria na região das cidades vizinhas banhadas pelo Rio Lindaura.

Dizia a lenda local que o referido curso d’água ganhara tal alcunha em homenagem às irmãs gêmeas Linda e Laura que encontraram o seu fim, adolescentes ainda, no fundo gelado do rio. Um túmulo triste para um jeito horrível de perder a vida.

Aquelas paragens eram cenário de vários causos e inúmeras crendices, tendo cada uma das localidades as suas próprias versões para eventos estranhos, com voz distinta para as mais diversas superstições.

Águas de Lindaura era a cidade mais elevada, de onde se originava o rio, o qual, curiosamente, executava o seu curso num sentido totalmente antinatural pelo vale onde se localizava a segunda cidade, Sombrero, e subia novamente através da chamada Serra da Danação até morrer num leito subterrâneo na terceira cidade, Canto da Lua.

É importante destacar que o termo vizinhas era apenas um modo de dizer, pois, de fato, dezenas de quilômetros separavam uma cidade da outra, de maneira que a designação era mais utilizada para enfatizar a constatação de que não havia mais nenhuma outra civilização por perto. Eram apenas as três cidades com um imenso vazio verdejante entre elas, nada mais. Justamente por ser um lugar realmente muito isolado que os amigos demoraram tanto tempo para conseguir condições para se aventurarem em tal empreitada.

O regulamento do torneio dizia que o vencedor absoluto seria a equipe que apresentasse o maior pescado em amostra única por peso. O espécime deveria estar vivo no momento da apresentação para que pudesse ser devolvido para o rio. A localidade se orgulhava de um ditado que os mais velhos sempre diziam, retire da natureza apenas o suficiente para sobreviver, nada além disso.

Cada equipe ou participante poderia escolher o local que bem entendesse ao longo de todo o rio, em qualquer um dos municípios. Afonso e Juno escolheram as águas mais temperadas da cidade do meio, Sombrero, município que carregava o nome do famoso acessório mexicano e que, justamente, por ter origem hispânica ocultava a letra I que faria mais sentido no idioma português.

Os amigos se hospedaram na única pousada da cidade, onde perceberam a presença de algumas outras pessoas, pescadores possivelmente, nos corredores superiores do sobrado.

Após se instalarem, foram até a espécie de bar que ficava na lateral da recepção, onde o próprio recepcionista, que provavelmente era o proprietário do estabelecimento, fazia o atendimento, acumulando as funções. O sujeito corpulento, de gestos longos e barba por fazer transparecia a essência do que é ser rústico.

- Boa noite, senhores. Querem beber algo?

- Não, não senhor – replicou rapidamente Afonso – viemos apenas pegar algumas garrafas d’água. Vamos para o rio tentar a sorte. Paramos na estrada durante a manhã para descansarmos e podermos chegar aqui nesse horário refeitos e prontos para os afazeres.

- Mas vocês não podem ir para a área do rio à noite.

- E por que não? – Quis saber Juno, de modo impaciente.

- Ora, porque é noite, não se anda por aquela região quando o sol se põe. Aqui é Sombrero, nome de chapéu para se proteger do sol, mas aqui o que se teme mesmo é a noite. Os pescadores locais e forasteiros já fizeram o que tinham de fazer e já se recolheram. Não viram os quartos ocupados?

- Nos desculpe senhor, mas temos os nossos métodos de pescaria, e preferimos a calma da noite. Só isso.

O estalajadeiro ouviu com atenção as palavras de Afonso, mantendo o olhar fixo em seus olhos

- Escute rapaz, meu dever é adverti-los e estou com a consciência tranquila porque cumpri com meu dever de ser humano temente a Deus. Mas se quiserem realmente ofender os nossos costumes e a ordem natural das coisas por aqui, vocês são livres para fazê-lo. Tome, pegue essas garrafas d’água. E que o Nosso Senhor tenha piedade de vocês e, sobretudo, que o mal não os toque.

Juno tomos os vasilhames nas mãos e saiu sem dizer uma palavra.

- Perdoe o meu amigo, senhor. Agradeço a sua preocupação, mas sabemos nos cuidar e não acreditamos no mal, não no que ronda fora do coração dos homens.

- Mas deveria, pois o mal acredita em você, acredita em todos nós.

Afonso recolheu os equipamentos do chão e saiu com um aceno de cabeça ao encontro do amigo do lado de fora.

- Sujeito louco. E você fica dando ouvidos a ele? Me poupe.

- Não seja duro, Juno. Essas pessoas têm suas crendices, devemos respeitá-las.

- Fale por você.

Os amigos entraram na caminhonete e saíram fazendo uso de um mapa para auxiliá-los no caminho, uma vez que o GPS não funcionava corretamente desde que pegaram a estrada ainda nas cercanias de Lindaura. Eles percorreram alguns quilômetros até uma reentrância na mata, um ponto recomendado e previamente marcado na folha de papel.

A noite estava clara e quente, mas mesmo assim acenderam um par de fogareiros, além das luminárias a bateria. O fogo tem o poder de confortar a alma dos homens, ainda que eles não se dessem conta disso e o fizessem involuntariamente.

As linhas já estavam na água há algum tempo e muitos peixes foram fisgados e devolvidos ao rio por terem sido considerados inadequados para o propósito desejado. No entanto, após um início promissor, as fisgadas de repente cessaram.

Juno tirou sua linha da água, trocou a isca e chicoteou o fio de nylon no ar, deixando a carretilha chiar de forma característica, culminando com o mergulho do chumbo no espelho d’água.

Porém, a despeito da tentativa de melhorar a sorte, a situação não se alterou positivamente. O silêncio era tão predominante que até mesmo o cricrilar dos grilos, que até pouco tempo atazanava a paz dos amigos, havia desaparecido.

De súbito, um farfalhar na vegetação foi percebido, apesar de nenhuma brisa soprar na área do leito do rio. Logo, um odor pesado e nauseante, bem semelhante à amônia, empesteou o ar.

- Que diabos, que cheiro é esse, Afonso?

- Shhhhh... não é o cheiro o que me preocupa. Olhe ali, atrás daqueles galhos.

O rapaz se virou e pode descrever com clareza dois pequenos pontos amarelos, metálicos, refletindo a iluminação do plenilúnio.

- O que é isso?

- Juno, preste atenção, estamos em perigo. Ao meu sinal, vamos correr para o rio e torcer par o que quer que seja isso não saber nadar.

- Como assim, Afonso?

- Agora.

Os homens largaram as varas e se jogaram no rio, movimentando os membros como se chicotes os impelissem a isso. Mas, para seu desespero, uma figura enorme e escura os seguiu e, sem titubear, também saltou de encontro às águas.

Os homens nadavam com toda a energia que possuíam na tentativa de alcançar a margem oposta. A coisa os perseguia, mas por sorte, ou proteção divina, não com a mesma desenvoltura. Com muito esforço, conseguiram chegar à terra firme e começaram a correr sem olhar para trás.

Afonso seguia na frente, gritando para que o amigo se mantivesse firme e apertasse o passo. Porém, subitamente, um estrondo e um grito ecoaram pela mata.

- Juno!

O rapaz havia desaparecido. Afonso parou a corrida e olhou para trás, buscando algum sinal do amigo. Com a aflição dominando seus atos, ele voltou para procurá-lo, mas suas pernas foram congeladas por conta da imagem que seus olhos captaram. A criatura seguia veloz em sua direção. Afonso sentia o hálito quente e fétido da morte. Parecia que não teria escapatória, mas contrariando as probabilidades, a fera também viria a desaparecer. Um novo estrondo foi ouvido.

Afonso se aproximou e só então percebeu que ambos, Juno e a fera, haviam caído num buraco. Ele mesmo não entendia como não havia caído, pois passara muito próximo da boca aberta na terra.

Por sorte, Juno estava escorado numa reentrância preso à vegetação, ao passo que a criatura havia chegado ao fundo do buraco. O rapaz estava meio desnorteado, mas ao perceber a presença de Afonso no alto da abertura, começou a chamar por ele.

- Socorro, me ajude, Afonso – o desespero emoldurava as súplicas do rapaz.

- Calma, eu vou te tirar daí.

Afonso tirou uma corda da mochila, que permanecera o tempo todo atrelada às suas costas, e atirou-a para o amigo, mas no mesmo instante caiu sentado no chão de barro tomado pelo susto que o acometera. A criatura havia saltado com as patas erguidas e a boca aberta na direção de Juno, não o alcançando por pouco.

- Me ajude, Afonso! Não me deixe morrer!

Juno suplicava por ajuda, mas o amigo não conseguia ajustar o raciocínio. Os uivos e rosnados da criatura eram capazes de dilacerar quaisquer tentativas de discernimentos lógicos. A fera saltava e se projetava cada vez mais alto. Alcançar o rapaz seria questão de tempo.

- Pelo amor de Deus, Afonso. Não deixe isso me pegar, cara.

Em meio ao turbilhão que era a sua mente, Afonso teve uma ideia. Com pressa, ele sacou um mosquetão da mochila e o cravou no tronco da árvore mais próxima. Em seguida, amarrou a corda na cintura e transpassou-a pelo mosquetão, amarrando a outra ponta num galho forte, lançando-a para Juno. A ideia era que ele se agarrasse ao apoio e ficasse mais fácil erguê-lo.

- Segure o galho, Juno.

O rapaz conseguiu alcançar o apoio e Afonso começou a puxá-lo, utilizando o metal do mosquetão como um alicerce para que a corda pudesse deslizar mais facilmente. Afonso apoiava o pé na árvore e fazia força para erguer Juno.

A tentativa parecia que funcionaria, mas um novo grito acompanhado de um puxão na corda fez com que Afonso perdesse o equilíbrio e fosse levado ao chão mais uma vez.

- Ele me pegou, socorro, ele me pegou aahhhh...

A criatura havia agarrado uma das pernas de Juno, cravando suas garras até o osso. Afonso, retomado do susto, fazia força para livrar o rapaz do jugo daquele ser, mas o fardo era pesado demais, não só o peso propriamente dito, mas a responsabilidade de ter nas mãos a vida do companheiro.

O tremor e o formigamento nos braços eram sinais de que ele próprio começava a ser arrastado para o buraco e, consequentemente, para a morte certa. Em sua mente, essa certeza se formava de modo tão ou mais significativo quanto o suor que inundava o seu rosto. Suas forças davam sinais de que iriam deixá-lo logo. A criatura abocanhava o ar e vez ou outra lacerava as pernas de Juno, que gritava em franca agonia.

- Não! Socorro! Não me abandone, Afonso. Eu sou seu amigo, tenho família. Não me deixe morrer aqui, por favor!

Afonso sabia o que tinha de fazer, pois ele próprio estava sendo arrastado para morrer junto do amigo, que, naquela altura, já não tinha mais salvação.

Com o coração tão dilacerado quanto as próprias convicções, ele sacou o canivete do cinto e cortou a corda e a amizade de anos.

- Não! Afonso, não!

O rapaz correu pela mata sem olhar para trás, usando ambas as mãos para isolar a audição dos gritos de dor e desespero que se espalhavam em todas as direções. Ele sabia que se sobrevivesse seria assombrado para sempre pela expressão de medo e incredulidade do amigo que deixou para morrer, suas últimas palavras o perseguiriam como um fantasma para toda a sua existência.

Ele andou ate ser vencido pelo cansaço. A situação o fez cair e desfalecer. O delírio se mesclava com a realidade, ao ponto de a lucidez o tocar como flashes intermitentes. Ele conseguia perceber apenas alguns lampejos, como o calor do sol tocando o seu rosto, ou os contornos do estranho que o carregava. Mas a emoção do momento era demasiadamente intensa e, sem escolhas, perdeu mais uma vez os sentidos.

Quando acordou, percebeu que estava no seu quarto, na pousada. Todos os seus músculos doíam. Seus olhos assustados buscaram o exterior pela janela e, confuso, notou que uma nova noite se mostrava. De certo havia dormido durante todo o dia.

- Juno! – Deixou o grito escapar.

As lembranças lhe invadiam a mente, ao passo que lágrimas lavavam o seu rosto. Num impulso, saltou da cama e tomou o caminho até o bar. Percebeu no percurso que as portas dos quartos estavam escancaradas e que não havia mais ninguém hospedado naquele pavimento. O estalajadeiro, com um olhar que lhe dizia claramente “eu avisei” o esperava no balcão ao lado da recepção. Afonso percebeu que as portas e as janelas do térreo estavam trancadas, a não ser a passagem para os fundos da hospedagem.

- É por aqui – apontava para a porta aberta – que vou acertar as contas com ele – disse o estalajadeiro.

- Acertar as contas com quem? – Quis saber Afonso.

- Com aquele velho ermitão que mora na Serra da Danação. Há muito ele me causa problemas.

- Do que você está falando?

- Estou falando da ousadia que ele teve ao trazer você de volta para cá, mesmo depois de tudo o que aconteceu.

- Aqui é a única hospedagem de Sombrero, de certo deduzira que eu estava instalado aqui. Para onde queria que tivesse me levado?

- Você não deveria estar aqui, deveria ter ficado lá para encontrar o destino que escolheu por vontade própria.

- Como assim? Está louco? Meu amigo morreu e eu iria morrer também.

- Mas não tem problemas. Vou ter de terminar tudo aqui, terei muita sujeira para limpar, afinal trabalho sozinho nessa espelunca, mas não tem problema.

- Do que você está falando?

A luz da lua entrou pela única porta aberta iluminando o estalajadeiro que exibia um olhar amarelo, metálico e frio.

- Não se preocupe – disse com a voz grave e arrastada – eu vou contar o causo de vocês, a triste história dos pescadores.

• Se quiser conhecer melhor a região do texto e suas histórias, leia os contos:

A Bruxa de Lindaura

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6566409

Canto da Lua

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/2536924

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 01/09/2020
Código do texto: T7051726
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.