Mão

Um sonho é um nada. Uma alucinação do nosso subconsciente que tenta reunir as principais coisas vividas naquele dia com nossos medos, angústias, desejos e paixões. Alucinações tão perfeitas que enganam e parecem realidade, te fazendo querer fugir ou ficar para sempre naquele sonho. Porém, como toda alucinação, não passa de uma grande farsa.

Depois de um longo e cansativo dia, o seu único desejo é deitar na cama e dormir. Ir para um mundo onde a farsa te cativa e te acalma, onde todas as possibilidades estão em aberto e nada, além do despertador, pode te parar. Em um desses dias, que em nada foi diferente do tedioso cotidiano de sempre, você a viu pela primeira vez. Você estava sentado no ônibus e, em um instante, os seus olhos brilharam ao vê-la passando pela roleta. Respirando profundamente, você a viu sentar bem na sua frente. Depois de poucos segundos, ela senta de lado e pede desculpas por incomodar, mas que gostaria de conversar com alguém porque estava ansiosa e precisava distrair a mente. Rapidamente a conversa tomou um rumo profundo e distraído, calmo e empolgante, perfeito e totalmente apaixonante. Foi aquele tipo de conversa da qual se lembra no futuro e te faz sentir uma saudade de cada segundo em que aquela bolha interdimensional de conversa se formou. Mas a abominável música do despertador soa e te puxa para longe dessa realidade.

Ainda meio tonto por ter levantado rápido, consegue se lembrar claramente de cada detalhe do sonho. Normalmente esqueceria no máximo em um minuto de tudo que viveu em sua cabeça e isso causava uma terrível inconformidade, mas o que mais te incomoda é o fato de se lembrar com fascinação para aquele rosto como se realmente tivesse se apaixonado. Tentou se recordar se já tinha o visto aquele em algum lugar e foi passando pelos diversos locais em que já esteve nos últimos anos, mas nenhuma pessoa era minimamente parecida com aquela que tinha sonhado. Tinha certeza que era impossível ver aquele rosto e se esquecer dele. Não era possível!

Passou o resto do seu entediante dia totalmente distraído, pensando se ela iria voltar quando estivesse dormindo. Queria se concentrar no trabalho, mas não conseguia. A sua mente estava dominada por si mesma, nem te dando o mínimo de controle para sair dessa angústia apaixonada. Você sabe que só o tempo e a distância podem te fazer esquecer tudo, mas ao mesmo tempo quer ficar bem perto para ver a lerdeza de cada segundo. Nem mesmo o fato de estar apaixonado por um sonho te impedia de soltar um sorriso bobo ao se lembrar dela. E como o sentimento é mais forte, vai direto para a cama assim que chega em casa.

Assim que entrou no mundo dos sonhos, viu que tudo continuava exatamente de onde tinha parado da última vez. Pôde continuar a conversa tranquilamente como se ela nunca tivesse sido interrompida. E ela continuava tão bela e apaixonante como da última vez. Tudo parecia perfeito até que algo parecia estar errado. Embora os seus olhos estivessem bem abertos, a sensação era de que as pálpebras faziam um esforço tremendo para se abrirem. Isso te causava raiva porque você queria se concentrar na conversa, mas essa sensação chata não te permitia. Então decidiu se concentrar apenas no rosto dela, pois cada minuto ao seu lado tinha que ser apreciado o máximo possível. Mas, em um segundo, os olhos dela ficam completamente pretos e isso te espanta. No segundo seguinte, tudo fica escuro e isso te assusta. A sua respiração começa a ficar mais curta e cada batimento do seu coração é sentido claramente. Você percebe que não está mais sentado no ônibus, mas deitado em algo desconhecido. Você não consegue se mover e vê somente a silhueta de uma mão na completa escuridão. Você percebe que ela abre e fecha lentamente, um dedo de cada vez. Com lágrimas dentro dos olhos, você a vê completamente aberta se aproximando do seu rosto. Você não consegue mexer o pescoço e nem sente o resto do seu corpo enquanto a mão extremamente gelada tampa a sua boca. Com o dedão e o indicador, ela fecha o seu nariz. A respiração que antes era curta agora é inexistente. A sua mente tenta pensar em como escapar, mas a cada segundo fica mais desesperada para achar alguma solução. Cada músculo do seu corpo começa a se contrair em busca de uma saída, mas a única coisa que causam é dor. A sua mão se fecha com força para tentar aguentar tudo isso enquanto torce para que o fim chegue logo, mas isso parece uma eternidade.

Você acorda pulando da cama, totalmente assustado. Tenta respirar fundo, mas não consegue direito porque o seu nariz está completamente congestionado e a sua garganta dói. Tenta pensar racionalmente e acreditar que era só uma maneira do seu subconsciente avisar que ele estava no início de uma forte gripe. Mas a sua parte não racional, aquela que estava apaixonada, tinha medo que a sua amada estivesse correndo perigo. Não conseguia acreditar que ela estava só em sua mente, de alguma maneira ela tinha que ser real e ele tinha que garantir que ela estivesse bem, então foi até uma farmácia e comprou remédio para gripe e insônia. Tomou 3 comprimidos de cada e se preparou para voltar ao mundo dos sonhos.

Estava ansioso para falar com ela e, se não fosse pelo remédio, nem conseguiria pregar os olhos. Mas, assim que adentrou no mundo dos sonhos, viu que a escuridão continuava. Os seus olhos apresentavam uma tristeza catatônica com a decepção de não a ver. Demorou para perceber que não respirava e que estranhamente isso não causava nenhum incômodo, o seu pulmão simplesmente não ia nem para cima e nem para baixo. Quando viu o brilhante par de olhos dela se levantou e tentou ir até eles, mas algo quente te empurrou para trás com força e te obrigou a ficar deitado. Enquanto sentia os seus ombros queimando, os olhos dela lentamente sumiram na escuridão e a silhueta da mão voltou a aparecer. Ela parecia dançar no ar, como se zombasse de você. Era quase hipnotizante. O medo queria te forçar a fechar os olhos, mas ao mesmo tempo você queria continuar vendo aquela estranha dança. A cada movimento ela se aproximava mais de você até que ficou parada em cima do seu peito com o formato de uma concha. Ela avança com velocidade, perfura a sua pele e quebra a sua costela esquerda. A partir daí ela começa a avançar quase em câmera lenta, saboreando a sua dor. Sem ter a sua respiração, parece que a dor é milhares de vezes maior do que deveria. Parece que todo o seu corpo arde e lateja ao mesmo tempo enquanto todos os seus membros tentam se mover para escapar da dor, mas só pioram ao causarem horríveis cãibras. Quando a mão já está toda em seu peito, você sente o sangue quente subindo pela sua garganta e se acumulando em sua boca. Então a mão se levanta em um só impulso e te mostra o seu ensanguentado coração. Os seus olhos soltam lágrimas de sangue enquanto a mão some, deixando o seu coração no ar.

Você não entende porque depois de todo o sofrimento, ainda não acordou. Você não sabe onde a sua amada foi. Você não quer acreditar no que ela fez. Você só sente a dor. A dor que não passa e nem diminuí. A dor que te obriga a olhar para o seu coração ainda batendo enquanto vai lentamente se decompondo e te matando. Uma escura eternidade que te deixa sozinho, somente com os seus pensamentos, o seu coração e a sua dor.