ENTRE O CÃO E O LOBO

Meu nome é Goober. Esse foi o nome que recebi. Soube mais tarde que era uma homenagem a um personagem antigo de desenho animado. Eu não me lembro muito bem da minha vida antes daquela manhã chuvosa. Eu era bem pequeno, a fome corroía minhas entranhas e o único abrigo sobre a minha cabeça era uma lata de lixo tombada. Eu chorava baixo, quase sem forças, e duvidava que alguém pudesse me ouvir, mas ele me ouviu. Quando o homem a quem chamo de pai me encontrou abandonado e me levou para sua casa, entendi que aquele era o maior gesto de amor que a vida poderia me fornecer.

Morávamos num apartamento pequeno, próximo à agitação do centro da cidade. Não havia muito espaço para nos exercitarmos tampouco para brincadeiras mais voluntariosas dentro de casa, por isso eu esperava ansiosamente a sua volta do trabalho para que pudéssemos sair pelo quarteirão para uma caminhada ou para alguma atividade na praça no outro lado do bairro. Em toda a minha infância nunca me faltou alimento, água, abrigo ou atenção. Eu cresci muito feliz e jurei a minha lealdade a meu pai acima de qualquer coisa.

E foi justamente numa dessas andanças de final de tarde que a nossa vida começou a mudar, pois foi quando o meu pai a viu pela primeira vez. A moça que viria a fazer parte do nosso existir estava sentada num banco de madeira, e quando eles trocaram olhares, eu soube que seria para sempre.

Com a minha nova mãe morando conosco, ganhamos o que faltava para a nossa felicidade ser completa. Obviamente que ambos tivemos de fazer concessões, meu pai precisou trabalhar um pouco mais, ao passo que as saídas diárias deram lugar a singelos afagos no meu pelo e joguetes mais comedidos pelo corredor da pequena sala.

No entanto, a alegria naquele lar ainda não havia atingido o seu ápice, pois no final da primavera descobrimos que eu ganharia um irmão. Com isso, meus pais decidiram que precisávamos de uma casa maior, e foi assim que nos mudamos para o subúrbio. A nova residência exibia contornos muito mais significativos. Com um bom quintal e dois pavimentos, não faltaria espaço para as novas diversões. Pouco tempo depois de o bebê chegar ao mundo, já estávamos instalados.

No primeiro dia no novo lugar, meus pais conversavam:

- Eu já disse, a presença do Goober está sendo demais para mim. Precisamos resolver a situação antes do batizado.

- O que posso fazer? Ele é da família. Goober, vai dar uma volta lá fora.

Eu não poderia ser mais feliz. As palavras de minha mãe, dizendo que eu era demais, ou seja, que eu extrapolava todas as expectativas em sua vida, isso me enchia de felicidade e realização. Meu pai havia me mandado sair um pouco, com certeza ele queria que eu fizesse um reconhecimento na área, mas nem precisava mandar, eu sabia que esse era o meu dever.

No quintal, novos e diferentes aromas invadiam o meu olfato. Percorri o entorno da casa e quando retornei para a entrada principal, percebi a presença daquele estranho defronte ao nosso portão. O homem era extremamente magro, como se a vida lhe cobrasse muito mais do que ele tinha para oferecer. Sua expressão exalava cansaço, um pesar que nem mesmo uma vida inteira de sono poderia recompor. Seu olhar estava vidrado na janela do segundo andar, justamente onde meu irmãozinho repousava no berço. O estranho inspirava o ar e sorria, como se apreciasse as notas trazidas pelo vento. Então, eu olhei em seus olhos e rosnei, ele sorriu em retribuição e foi embora. Corri até o portão e marquei o território, era preciso deixar bem claro que ele não era bem-vindo ali.

A semana estava quase no fim. Ficamos sabendo que meu pai viajaria na quinta-feira pela manhã e só retornaria na manhã da sexta-feira. Como eu disse, ele estava se desdobrando para suprir as nossas necessidades. A casa e a família maior dependiam muito mais do seu tempo e esforço.

Passei todo o dia percorrendo o entorno da residência, mantendo os gatos vadios longe, correndo atrás de pássaros e folhas. À noite, fui para dentro de casa, para repousar e cuidar da minha família na ausência do meu pai, mas minha mãe me deu uma tarefa muito mais relevante:

- Goober! Você vai ficar lá fora que é o seu lugar. E sem comida nem água!

Nunca havia recebido uma tarefa tão importante. Ela me dizia claramente que gostaria que eu tomasse conta dela, da casa e do bebê. Por isso eu deveria ficar do lado de fora, para vigiar tudo. Com certeza o alimento me deixaria entorpecido e desconcentrado para a função. Eu deveria retribuir todo esse amor.

A noite deu lugar à madrugada, e essa já tinha passado quase toda sem que nada ocorresse e sem que eu piscasse os olhos. No entanto, uma brisa mais proeminente me trouxe um aroma familiar, algo que eu já havia sentido, porém estava muito mais marcante.

Saltei de imediato e me coloquei de prontidão. Foi quando percebi uma sombra se mover rápido perto da vegetação rente à cerca. Corri até lá o mais depressa que pude e fui surpreendido pela presença daquele estranho do portão. Ele estava diferente. Seu corpo estava maior e deformado. Mas eu tinha certeza de que por baixo daqueles pelos era o mesmo homem que me desafiara.

Incorporei o senso de dever e responsabilidade como propósito e saltei eu sua direção. Ele não devia estar muito acostumado com tais atitudes de seus oponentes, pois consegui encaixar uma mordida no seu pescoço. Porém, uma vez refeito do susto, ele me agarrou pelo tronco e me atirou longe. Nunca senti tanta dor, mas eu não poderia desistir, minha família dependia de mim.

O invasor corria sobre as quatro patas e se projetava com extrema facilidade pelas paredes da casa, logo invadiria a janela aberta do quarto. O local era muito alto para mim, mas eu precisava encontrar outra entrada, e rápido.

Percorri o entorno da casa, mas as portas estavam todas trancadas. Em desespero, percebi a única alternativa ao meu alcance: chegar até a sacada da varanda, onde a parte de cima da porta de vidro ficava sempre aberta.

Tomei distância no gramado do quintal e corri com toda a força que era possível imprimir às minhas patas. Acredito que uma força maior impeliu minhas ações, pois consegui descrever três passos verticais sobre as paredes e com um movimento preciso abocanhei as grades da varanda e projetei meu corpo por cima delas.

Ouvi um grito de dor e medo enquanto saltava pelo vão aberto da porta e ganhava as dependências da casa. Avancei pelo corredor e lancei o peso do meu corpo de encontro à porta do quarto dos meus pais. A folha de madeira não ofereceu resistência e se abriu.

No interior do aposento presenciei uma cena de horror. Vi minha mãe ensanguentada tentando proteger o bebê daquela criatura nefasta. O ódio preencheu meu coração. Fui revestido por uma força que desconhecia por completo.

- Gobber!

Ao ouvir a voz de minha mãe me chamando, um estalo liberou a fúria que me consumia. Corri sem temor para cima do invasor. Saltei a uma altura improvável e mais uma vez rasguei o seu pescoço. Eu mordia, largava, saltava, corria e mordia. Mordia com vontade. Mordia como se a minha vida dependesse disso. A criatura tentava me alcançar, mas quase nenhum golpe me alcançava. Ela parecia mais lenta e, sem nenhum aviso, saltou pelo vão da janela sem olhar para trás.

Olhei para minha mãe. Um grande ferimento tomava conta do seu pescoço e ombro, mas o pequeno estava intacto em seu leito. Eu queria dizer algo, mas não conseguia. Então, ela olhou em meus olhos e disse:

Me desculpe, Gobber, me desculpe. Pega ele, garoto!

Ela não precisava me pedir desculpas por não conseguir me ajudar na luta, pois era eu quem deveria protegê-los. De todo modo, obedeci às suas ordens e saltei pela janela e segui no encalço do maldito.

A adrenalina tomava o meu corpo de tal maneira que mal senti as dores do impacto contra o solo e, decidido, corri atrás do invasor. Rapidamente, cheguei até ele, o seu cheiro era insuportável. Ele cambaleava pelo bosque perto da praça. O dia ameaçava raiar e isso me fez perceber a sua urgência, ele se valia da força da noite para se manter saudável.

Enquanto ele se arrastava, pelos e traços de sua fisionomia feral ficavam pelo caminho, aquela era a minha chance. Corri mais uma vez com ímpeto e determinação, saltei convicto ao encontro de seu fragilizado pescoço, o sangue invadia minha garganta. Ele estava prestes a ser vencido pela minha vingança, mas uma última fagulha de energia o dominou e ele conseguiu se desvencilhar de mim e se atirou no córrego que ladeava o espaço aberto.

Resignado, com a luz do dia sobre a minha cabeça, voltei para casa. Eu estava impregnado pelo sangue do maldito e aquilo me maculava. Quando cheguei, percebi a porta principal entreaberta. Entrei e ouvi gritos e choro. Era o meu pai. Apressado, saltei os degraus da escada e entrei no quarto.

Meu pai estava com a esposa nos braços. Ela parecia inerte, sem qualquer reação. Ao me notar e perceber os sinais da luta, ele me olhou diretamente nos olhos e disse:

- Como você pôde fazer isso, Goober? Como você foi capaz?

Eu juro que tentei lhe dizer que eu havia feito o possível, que havia dado o melhor me mim para combater o invasor em nossa casa, mas as minhas palavras pareciam não fazer sentido para ele. Ele não conseguia me compreender.

Logo, a casa foi dominada por um sem número de pessoas. Veículos barulhentos e com luzes intermitentes se espalhavam por toda a rua. Eu ainda consegui ver a minha mãe ser levada por homens estranhos numa maca, um lençol cobria o seu corpo. Meu pai se mantinha longe de mim. Eu entendo a sua dor. Eu daria o tempo que ele precisasse. Fiquei recostado num canto, preso por uma corrente pela primeira vez na vida, talvez ele quisesse me privar de toda aquela comoção.

Não tardou para que outros estranhos viessem até mim. Colocaram um laço em meu pescoço e me puxaram com força com uma espécie de vara. Então, amordaçado, fui colocado na parte de trás de um veículo gradeado. Eu olhava para o meu pai pelas frestas das grades. Queria lhe dizer que ficaria tudo bem. Antes de ser levado dali, ainda ouvi um dos homens dizer ao meu pai que me aplicariam uma injeção e que tudo se resolveria logo. Eu não entendi direito o que isso significava, mas eu só queria poder voltar logo, pois eu tinha certeza que o meu inimigo retornaria para tentar terminar o que começou. Minha família precisava de mim, afinal eu sou o cão contra o lobo.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 09/09/2020
Reeditado em 09/09/2020
Código do texto: T7059257
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