A Terceira Garrafa
 
O Vô Batista era cheio de histórias. Contava todas elas com aquela voz extremamente grave, como se não fosse muita coisa, sempre depois do almoço e antes de “descansar as pálpebras”, como ele costumava justificar seu profundo ronco toda tarde. Começava a contar, e quando víamos estávamos todos, netos, filhos, filhas e até empregados parados na sala pra ouvir. Uma história de assombração hoje, uma de maldição amanhã, sobre como a filha do velho Paiva tinha engravidado de um Boto ou sobre como vira a própria Matinta Pereira sobre a casa um dia. Mas a favorita de todas era a do Saci na garrafa.

O patriarca jurava por sua mãe mortinha que tinha conseguido pegar um saci e trancafiá-lo em uma garrafa vazia de pinga usando nada mais do que cera de vela na rolha e uma cruz desenhada na garrafa. Ninguém sabia onde estava a tal garrafa, mas todo mundo ficava olhando pra coleção delas que ele exibia na estante. Poderia ser uma delas... ou nenhuma. Um dia a empregada jurou que uma delas tinha se mexido sozinha, saiu se benzendo e nunca mais voltou. Marina tinha oito anos na época, ela e os primos fazendo uma escadinha de idade. As tardes de férias na velha casa de madeira do Vô eram doces e eternas, como tudo na infância.

Mas o velho morrera e as brigas intermináveis entre os filhos começaram. Coisas foram ditas, mágoas guardadas. Até que decidiram, por fim, trancar a casa e não tocar mais no assunto de herança. Nem em assunto nenhum: cada um foi para seu canto, e de repente não tinha mais férias, nem causos, nem primos, nem nada.

Um dia Marina recebeu uma solicitação de amizade da prima Vanessa a mais nova. Ela dizia que queria reunir todos outra vez na casa do avô, no próximo feriado. Marina se sentia insegura, estava acima do peso e se sentia velha. Mas se sentiu à vontade ao ver todos os seus outros primos também na casa dos trinta ou quarenta, vários casados, alguns carecas e outros pançudos, todos muito sérios. O reencontro foi cheio de abraços,  lembranças e saudosismo. “Não é porque nossos pais tinham brigado que deveríamos brigar também, certo?”, diziam com certa freqüência.

A noite chegou e decidiram beber, alguém trouxera material para fazer caipirinhas. Não demorou para que o álcool soltasse as línguas e as expressões sisudas:

- O Rafael era um mala! O primeiro neto, todo certinho! – Falou o já alterado Douglas.

- Todo certinho nada, eu deveria ser que nem você um tocador de violão vagabundo?

Todos riram, tudo era brincadeira!

- Ah nós deveríamos brincar como antigamente. Lembra do pique-se-esconde? –Vanessa puxou a conversa, animada.

- Sabe quem vai adorar essa conversa? A Renata! Todo mundo sabe que ela se escondia junto com o Júlio pra namorar! – Provocou Taís.

- Mentira! Para... - enrubesceu Renata.-  Pedro olhou chocado para Júlio, que só ficou rindo.

- Vou fazer mais uma rodada pra gente. – Pedro disse,meio desconfortável,  indo em direção à cozinha. Barulho de portas abrindo e fechando e de coisas sendo derrubadas mostravam que ele não estava mais em seu pleno equilíbrio. Xingou várias vezes baixinho e depois gritou para a sala:

- Cadê a cachaça?

- No armário debaixo da pia! – alguém gritou de volta.

Alguns minutos se passaram e a conversa estava esfriando quando um vento forte soprou dos fundos, batendo uma porta no caminho. Pedro voltou de mãos vazias e disse:

- A cachaça acabou toda, vocês bebem que nem Opala!

- Impossível, eu trouxe duas garrafas! – Júlio disse, levantando-se para ir à cozinha.

Um zumbido surdo preencheu o lugar subitamente, a luz vacilou e depois se apagou por completo. Nenhum fio de luz em lugar nenhum, devia ter sido um blackout geral. Os primos, um a um, ligaram as lanternas de seus celulares e saíram pela casa à procura de qualquer toco de vela que tivesse sobrado guardado em alguma gaveta.

Marina entrou em um quarto, a porta meio emperrada, mas abriu. Era um dos quartos de hóspedes que usavam quando iam de férias. Revirou as gavetas do criado-mudo e não encontrou vela alguma, então foi procurar no velho guarda-roupa com o grande espelho na porta. Estava coberto com um pano, e quando puxou ela viu seu reflexo lá, a encarando. Nada havia de errado com ele, mas por algum motivo seu olhar a deteve, frio e insidioso. Gelou. Rapidamente suavizou o olhar, virou a face, sorriu de nervoso. O reflexo repetiu tudo, normalmente. “Muito filme de terror”, pensou... Então abriu a porta do armário e sem que percebesse, ele se inclinou lentamente até cair sobre Marina. Tentou apoiar com as mãos, acabou com um braço quebrado: madeira era de lei, impossível aparar todo aquele peso. Sentiu o armário esmagar-lhe o tronco, esvaziando os pulmões de súbito. Gritou imediatamente com o resto de fôlego, esperando que alguém lhe ouvisse. Rapidamente os primos apareceram, fazendo um esforço coletivo de erguer o móvel pesado e arrastá-la para fora do perigo. Mal houve tempo suficiente para respirarem aliviados e avaliarem a situação da moça, um ruído de passos em correria e gritos apavorantes invadiram a escuridão:

- Não, Pedro, não!

Olharam assustados para Pedro, que estava ali erguendo o guarda-roupa. Seu rosto refletia espanto e medo.

- Foi sem querer Pedro, eu não sabia que ela era sua! – o grito desesperado vinha de algum cômodo. Saíram todos para acudi-lo, deitando Marina em uma das camas empoeiradas para aguardar. Vanessa tentava ligar para emergência no corredor, dando para se ouvir a música de espera e o nervosismo dela.

Em um dos quartos encontraram Júlio se debatendo como se estivesse em um ataque epilético. Ao se aproximarem, porém, ele investiu contra os primos, distribuindo socos e pontapés. Berrava, balbuciava e espumava, quando agarrou com força o pescoço de Douglas com ambas as mãos.

- Quieto Júlio! Calma... Isso! – Rafael falava em tom baixo enquanto imobilizava o primo que, lentamente, parou de reagir.

 Trouxeram-no para o quarto, e o colocaram no chão ao lado de Marina.

- O que vocês fizeram com ele? – perguntei, assustada.

- Nada, ele que bateu na gente, tava doidão. Dei um mata-leão pra botar pra dormir antes que ele se machucasse ou machucasse alguém.

- Temos que sair daqui! Vanessa? Você pode dirigir?

Vanessa não respondeu. Estava no corredor um minuto atrás, agora nem sinal.

- Achei umas velas! – exclamou Douglas, triunfante. Acenderam as velas em pires e castiçais pela casa enquanto chamavam por Vanessa. Decidiram colocar os feridos no carro para adiantar a saída, e Renata ficou com eles.

- AAAAH! Mas que porra é essa? – gritou Douglas de algum lugar. – Alguém traz uma tesoura, sei lá!

Vanessa se encontrava deitada em uma cama, aparentemente desacordada. Os longos cabelos escuros estavam terrivelmente enrolados nas finas grades do encosto da cama, em infinitos nós impossíveis de serem desfeitos. Um vento forte correu mais uma vez pela casa, derrubando algo em algum cômodo.

- Não tem tesoura. Quem leva tesoura pra uma festa, seu imbecil?

- Uma faca, qualquer coisa. Não dá pra desatar isso!

Rafael foi até a cozinha buscar. Sobre o balcão, três garrafas de cachaça vazias. Procurando a faca pelas gavetas, sob a luz tremulante da vela, não viu quando um clarão começou a se avolumar no fim do corredor. Foi o olfato que o alertou: "Fogo!" Tinham que soltar Vanessa o mais rápido possível, então ele pensou rápido: quebrou uma das garrafas e levou os cacos maiores para cortar os cabelos da prima. Agiram o mais rápido possível, em desespero, cada um com um caco para ser mais rápido. Por fim o fogo já tomava a maior parte do corredor e resolveram puxar com ímpeto os últimos tufos, que arrebentaram dolorosamente fazendo com que a prima enfim acordasse, gritando. Rafael que era o mais forte colocou a mulher no ombro e saíram correndo pela porta da frente, onde os outros três primos gritavam por eles desesperados.

Cansados, assustados e confusos, os primos se jogaram no chão gramado que se estendia por vários metros à frente da casa. Ficaram olhando aquela cena: a velha casa de madeira ardendo em altas labaredas, os sonhos de infância sendo consumidos e substituídos por pânico e traumas para uma vida toda.

As chamas se ergueram formando um admirável vórtice rumo aos céus, um redemoinho de fumaça, fogo e cinzas. Já quase amanhecia quando o vórtice finalmente reduziu e se extinguiu.

Marina estendeu a mão para segurar as de Rafael, e percebeu que ele ainda agarrava firmemente um caco de vidro que praticamente estava encravado em sua carne. Abriu a mão do primo, tirou com calma o vidro, envolvendo o ferimento com um lenço de seu bolso. O caco era uma mistura de tufos de cabelo e sangue coagulado, mas parecia ter algo mais. Tentando limpar o melhor que pôde, e sob os primeiros raios da manhã, discerniu ali pintado em tinta preta um sinal da cruz.
 
 

 
Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 03/10/2020
Reeditado em 03/10/2020
Código do texto: T7078724
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