Aos leitores mais sensíveis: este conto possui cenas de visual gore.

AMOR INCONDICIONAL
 


 

     Desespero. Estava desesperado!
     Minha esposa, apesar dos outros dizerem em contrário, amava-me. Tenho a mais absoluta certeza disso. Amava-me, sim, lá do seu jeito meio turrão de ser porque, a bem da verdade, ela não era muito dada a expressar os próprios sentimentos. Elisa era assim. Fazer o quê? Isso pouco me importava.


     Meu tormento era grande, pois eles queriam matá-la!


    A turba frenética de insensíveis havia tomado à frente do pequeno sobrado onde morávamos. A cidade achava-se no mais completo caos. No entanto, não fora só a nossa cidade a mergulhar na barbárie. A tragédia se propagara pelo país inteiro. O massacre da população não tinha precedentes históricos conhecidos. Zumbis, mortos-vivos, infectados, ou sabia-se lá quais nomes se atribuíam àquelas “coisas” destituídas de humanidade, vagavam sem rumo a matar e multiplicar a doença.


  Quando as notícias chegaram a meu conhecimento sobre a população conseguir deter a onda dos mortos-vivos, a nossa situação familiar se havia ruído irreversivelmente. Minha Elisa fora atacada e infectada! E naquele momento terrível, senhores, dilacerava-me o coração ver a pobre coitada lutando contra as correntes que a prendiam aos pés da cama.


    Ela já não era a mesma pessoa. O corpo, mal coberto pelos trapos, carregado de enormes feridas abertas, o rosto esverdeado, indiferente, onde se projetavam os olhos esbranquiçados pela doença, afligiam violentamente os meus sentidos. Não sabia fazer outra coisa senão chorar e ficar sentado na frente dela implorando o seu retorno.


  Minha verdadeira esposa, às vezes, aparecia naquele rosto transfigurado, como alguém que, se afogando em um rio agitado, procurasse num impulso desesperado romper à superfície na busca da última golfada de ar. Estes breves momentos, não raros, levavam-me a um sentimento terrível de aflição. Os olhos de minha amada surgiam naqueles globos esbranquiçados e conectavam-se com os meus.  Passavam-me uma mensagem desesperadora: “me ajude, por favor.” E antes de lhe dizer qualquer coisa inteligível, ela se afundava naquela criatura abjeta. O horror voltava-me em ondas sucessivas a cada tentativa dela para comunicar-se comigo.


   O hall de entrada, após os sucessivos golpes da turba, cedera causando o enfraquecimento da barricada de móveis. Eu não tinha muito tempo! Fui até o corredor do segundo andar e olhei para baixo. No vão da porta entreaberta, algumas cabeças, braços invasores, tentavam empurrar o amontoado de mesas, cadeiras e armários. Uma daquelas cabeças me percebeu no alto da escada.


    — Parem – gritou Victor, meu melhor amigo. Ele fora testemunha do meu casamento. Sabia o quanto ela me era preciosa.


     Todos pararam.


    — Amigo, meu irmão - disse ele, em voz alta e emocionada, dando início ao trabalho de me convencer -, não adianta protegê-la. Não faça isso. Elisa já morreu há muito. Esta coisa que você diz ser a sua mulher não passa de um animal doente infectado, contagioso. Ela precisa ser sacrificada! Não há cura, não há salvação, não há solução na terra que a traga de volta.
     Olhei-os com nojo.


   — Não! Nenhum de vocês há de encostar um dedo em minha esposa enquanto eu estiver vivo.


     Minha decisão, como sabia, provocou o ódio do grupo em dar cabo da única pessoa de valor para mim no plano terreno. Eles voltaram-se a arremeter esforços no sentido de forçar à entrada e já não precisavam de muito para invadir a minha casa.


     Voltei-me para Elisa. Não me dei o menor trabalho de refletir sobre os meus atos porque já o fizera antes nas incontáveis horas preso àquele quarto com ela. Fui até à janela, lancei um olhar já saudoso à pequena cidade. Despi-me e num movimento rápido me joguei de costas na cama.


     — Venha querida.


    Mal cheguei a terminar o convite e ela me atacou esfomeada. Uma das mãos empesteada forçou minha cabeça para o fundo do colchão, a outra apertou uma de minhas pernas no intento de imobilizar-me e, sem a menor indecisão, sem o menor remorso, enterrou as mandíbulas em minha barriga. Se pensam vocês, senhores, a quem envio este relato psicografado após minha recente morte, de me lastimar ao sentir as primeiras mordidas. Não. Não me arrependi! A dor foi terrível, pois não queiram sequer imaginar o sofrimento de ser devorado vivo.


    No entanto, em meio ao estertor da morte onde a percepção das coisas se confundem e nos enganam, pude ser agraciado na constatação de um fato curioso do imaginário das pessoas. Sempre me disseram que no momento final, quando o moribundo entrega-se à conformidade de seu destino, mesmo aquele sofredor dos delírios febris das doenças mais torturantes, um instante de lucidez lhe é dado como recompensa para despedir-se do mundo terreno. E assim o foi comigo.


     Elisa devorava as minhas entranhas quando o movimento parou de súbito! Meu corpo, torturado pela dor violenta, de repente, adormeceu anestesiado. Senti uma trégua no sofrimento. E a vi pela última vez. Sim, senhores, eu a vi! Tenho certeza. Ela apareceu lentamente no foco de minha visão.


     A fisionomia retorcida pela virulência da doença ainda lhe cobria o rosto pelo qual um dia me apaixonara. O meu sangue impregnado nela respingava do nariz, dos longos cabelos, da boca cheia, de onde escorria a baba do que estava a mastigar e, no conjunto estarrecedor apresentado a mim, consegui extrair a mensagem do esbranquiçado medonho de seus globos oculares.


     Foi através deles, dos olhos, que a alma de minha adorada esposa queria dizer-me o que, apesar de eu fingir não dar importância, sempre quis ouvir: “Eu te amo”!


     Aquele instante mágico, efêmero, não passou mais do que três ou quatro segundos, porque em seguida ela enterrou o rosto novamente em minhas entranhas e continuou a me devorar. Afirmo sem medo de me julgarem louco: todo o sofrimento valeu a pena. Sou sabedor dos traumas psicológicos, noites insones e a perda da fé no divino em muitas das pessoas ao invadirem nosso quarto àquela noite. Não lhes peço desculpas, senhores, de modo algum, tampouco ei de perdoá-los!


   Quero que todos vocês, malditos sejam, fiquem a ruminar pensamentos, a vida inteira se preciso for, para entenderem o sorriso de satisfação que perpassava o meu rosto... enquanto minha adorada Elisa saciava a sua fome!




 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 20/10/2020
Reeditado em 25/10/2023
Código do texto: T7092313
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