Cassandra

Às vezes ouvir um não é melhor que ouvir um sim

Roberto era um homem maduro, ainda esbelto e de cor parda, com uma fisionomia de serviçal de estância e olhar de um experiente soldado de infantaria — um homem aparentemente humilde, mas dono de vastas terras e gados. Cassandra era jovem de jeitos encantadores, com alguma coisa em seu semblante que remetia à palavra fascínio. Suas vestes eram estampadas com flores que formavam misteriosas figuras. Porventura fosse apenas a percepção da visão periférica, porque seu olhar devorava toda a atenção. Eram da cor da tempestade e incomuns.

O casal conversava.

"Sei", disse ela, "que planejamos nos casar e eu amo você! Acontece que não posso aceitar. E não vou."

"Cassandra, mas qual o motivo? Tenho ao menos o direito de saber. Diga."

"Eu amo você."

Ela tentava sorrir enquanto transbordava de seus olhos algumas lágrimas. "Não entendo. Se ama e não quer casar... como pode amar assim?" Ele estava decidido saber qual a razão de ter seu pedido negado. Seu aspecto sugeria uma ameaça como um enforcamento, pois ele estava diante dela com as mãos livres e frenéticas. Ela, por sua vez, fitou-lhe com frieza.

"Tem certeza que quer saber a razão?", indagou com sua voz que parecia seu olhar transfigurado em som.

"É tudo que quero agora."

"Tudo bem. Saberá: não quero ser egoísta e trocar sua felicidade por um amor desgraçado, pois sou uma louca."

Roberto ficou confuso, incrédulo.

"É o que os homens racionais e práticos diriam caso soubessem. Mas eu classifico isso como uma condição ou estado em que meu corpo e minha mente se encontram dominados por uma força exterior."

O homem não disse nada, sentou-se ao lado dela e fitou-lhe. Diante deles, ao longe era possível notar o sol se pôr com a mansidão da noite a chegar. O que parecia ser um fim de tarde romântico era, na verdade, uma situação misteriosa a invadir o espírito do homem. Não obstante, ele olhava dentro dos olhos dela e sentia um medo desconhecido, continuou a ouvir a história incrível da mulher. A considerar o leitor, que certamente pode ver com crítica a escassez de arte de um narrador sem muita experiência, o criador destas linhas lidas coloca sua versão de lado para ceder espaço para a versão narrada com as palavras de Cassandra.

O relato

"A algumas léguas daqui, eu nasci numa casinha de taipa com apenas um quarto. Foi um tempo difícil para meus pais, principalmente para meu pai que teve que me criar sozinho. Ele era um homem do mato, um caçador nato. Acostumado com a solitude desde sua infância, meus avós também eram como ele. Meus ancestrais passaram toda a vida habitando as florestas, indo sempre em direção ao oeste, com seus machados, foices, enxadas, espingardas, querendo sempre um pedaço de terra aqui e outro ali para plantar, que logo era tomado pelos sucessores menos nômade. Até que não mais encontraram as matas, apenas o campo aberto, todos foram seguindo cada qual seu rumo e desaparecendo. Meu pai foi o último a ocupar e dominar a natureza ao seu redor. Junto com ele, em meio a mata selvagem, compartilhando os mesmos perigos, dificuldades de uma vida sofrida e estranha, estavam nós — sua família. Minha mãe era jovem e bonita, meu pai sempre disse que sou a semelhança dela. Minha convivência com ela foi pouca."

"Como assim?"

"Deixe-me terminar a história", disse a mulher em tom sério.

"Um dia de verão, meu pai pegou sua espingarda que sempre ficava pendurada na parede num gancho de madeira, estava disposto a caçar.

"Temos o suficiente, Luis", disse minha mãe. "Não saia homem. Tive um sonho ruim. Não lembro muito bem, mas sinto que pode lhe acontecer algo de mal se você sair."

Ele não temia bichos selvagens, muito menos pesadelos. Então riu para ela.

"Ora, tente lembrar. Não me diga que sonhou com nosso filho e que não falava. É apenas um bebê."

"Riu novamente pegando meu irmão que parecia conversar também com seus guu-gus inspirados pela visão do alforje de caçador do pai. Então minha mãe desistiu de convencê-lo de não ir. Com um beijo em cada um ele se despediu, saiu e fechou a porta deixando para trás sua felicidade.

"As horas passaram e ele não voltou. Minha mãe preparou a refeição da noite e esperou. Estava presente, mas ao mesmo tempo distante, com um olhar perdido e preocupada com meu pai. Em seguida colocou meu irmão na rede e sussurrou uma canção de ninar baixinho para ele, até que dormiu. A noite não tardou a cair e a lua cheia no horizonte. O fogo no fogareiro já havia apagado e o casebre estava iluminado apenas pelo luar. Após algum tempo ela acendeu uma vela com algumas brasas que estavam apagando sob cinzas, colocou na janela. Por precaução fechou a porta e colocou uma barra de través para evitar a entrada de algum animal selvático que pudesse entrar por lá e não pela janela aberta. A cada minuto ela ficava mais ansiosa, eu via e sentia isso, o sono lutava com ela. Por fim ela cochilou ao lado do neném. A vela na janela já estava quase completamente derretida, bruxuleava sem que ela percebesse.

"Eu pude sentir o sonho dela, jazia perto do bebê. A casa onde ela estava era desconhecida, as portas eram fortes, madeira maciça, sempre fechadas. O neném na rede estava coberto com um lençol. Quando tentou retirá-lo para vê-lo se viu frente a frente com uma fera selvagem! Ficou em estado de choque, então acordou, ainda aturdida em meio à penumbra de seu casebre na mata.

"Aos poucos sua percepção imediata dos acontecimentos e de onde se encontrava de fato ia voltando, pensou que tudo pudesse ser não um sonho, mas algo real e temeu pela pequena criança. Não pôde deixar de averiguar se o bebê estava bem. Depois, impulsionada sem se dar conta, ergueu-se com o filho adormecido nos braços premendo-o contra o peito. Ao olhar para o lado viu dois glóbulos acessos, fitando-a na escuridão.

"A fera estava erguida na janela. Eu pude notar que ela estava paralisada de horror e não via nada além dos olhos terrificantes. Tremia tanto que cuidadosamente se abaixou temendo o ataque iminente do bicho, encostada na parede tentando proteger o filho com o corpo que perdera o controle. O olhar fixo já o devorava aos poucos. Senti que naquele momento ela só pensou em si e na criança tão indefesa. Estava totalmente sem esperança. Sua capacidade emotiva resumia-se em apenas medo do ataque fatal do animal bravio, dos dentes imensos a perfurar sua carne, de seu bebê despedaçado. Em silêncio, aguardou na sombra da noite o acesso repentino do bicho, enquanto o momento passava como anos e eras. E as órbitas demoníacas continuaram lá.

"Muito tempo depois, meu pai retornou ao casebre com a caça nos ombros. Ele tentou abrir a porta sem sucesso. Bateu. Não houve resposta. Pulou a janela e pude notar que ele sentiu um calafrio. Tudo era silente e umbrífero. Tateando e com auxílio de alguns fósforos foi se movimentando dentro da cabana. Depois de alguns passos ele viu minha mãe no chão com o bebê. Sem saber o que fazer e ainda em choque ela estendeu o menino para ele pegar. Mas ele estava morto. Fora sufocado pela pressão do abraço desesperado da mãe."

O que não se pode explicar

Foi o que ela contou, mas nem tudo foi relatado. Nem ela mesma sabia tudo. Por um momento, Roberto ficou quieto sem dizer nada ainda abismado com a história absurda, ele esperava ela continuar até haver uma conexão exata com a conversa que iniciaram. Mas Cassandra estava tão quieta quanto ele e olhava o crepúsculo com um olhar perdido.

"É um relato incrível e assustador", disse o homem, afinal.

"Agora me acha louca também?", indagou a moça, sem fazer nenhum movimento. Estava paralisada como se dormisse de olhos abertos.

"Não,Cassandra, não é isso... por favor,não fale assim. Mas me diga onde você estava exatamente quando a fera apareceu na janela."

"Eu não estava lá. Nasci meses depois minha mãe não resistiu ao meu parto."

Roberto ficou ainda mais calado. Sentiu uma breve tontura e não sabia o que dizer diante de Cassandra e sua história sinistra. A única reação do homem foi tentar pegar nas mãos da moça que estavam inquietas, mas travou.

"Você continua achando que sou uma pessoa normal? Por acaso conhece alguém com uma história semelhante?"

O homem não falou. Estava preso a um pensamento que poderia talvez lançar uma explicação, ainda que obscura, sobre a frágil sanidade de Cassandra. Havia histórias, nem sempre críveis, sobre animais selvagens que matavam caçadores, até mesmo histórias de espíritos da mata e outras sobre feiticeiras. Mas nada parecido com o conto que acabara de ouvir.

Ele lembrou-se de alguns detalhes da história e do modo de ser da mulher, que antes não lhe dera atenção devido ao sentimento que nutriu por ela. Particularidades como a vida solitária dela ao lado do pai, num local onde poucas pessoas andavam. Tais pormenores o deixaram triste, pois já não havia mais dúvidas de que ela era sinistra de fato.

"Cassandra, diga-me..."

"Já não basta?", interrompeu a mulher, falando com veemência, "já lhe disse que não posso aceitar..."

Então ergueu-se e, sem dizer mais nenhuma palavra, ela correu para adentrar a mata sem que ele pudesse detê-la. Tentou observá-la, mas ela desapareceu por entre as árvores em direção a casa do pai, a penumbra consumia a trilha coberta de capim. Por entre as sombras e os arbustos ele tentou segui-la. A gritar:

"Cassandra, Cassandra!"

Saiu num espaço aberto e pôde ver uma cabana, era o lar da jovem. Então voltou para sua casa para tentar compreender tudo o que ocorreu.

Onde termina o infortúnio?

Carlos Roberto, fazendeiro, vivia nos arredores da cidade. Atrás de sua casa ficava o local onde Cassandra morava com o pai. Sendo solteiro e em busca de uma esposa para fazê-lo feliz, viu na moça uma oportunidade para casar. Apaixonou-se pela sua beleza. A casa junto à mata era apenas um local que mantinha para ficar perto dela, pois sua grande riqueza — gados e terras ficavam distante dali. Jamais pensou que poderia ser rejeitado por uma mulher, mormente uma tão excêntrica como Cassandra, a reclusa.

O cômodo onde ele descansava tinha uma janela que dava para a mata. Tentou assimilar toda a história sem êxito, até que adormeceu. Durante a madrugada, foi despertado por um som de vozes a sussurrar. Não era possível entender. Olhou para o relógio e viu que marcava três horas. Ele sentiu uma leve tensão nos nervos, sentou na cama e pegou embaixo do travesseiro a pistola, que, como todo homem de negócio do campo costuma ter, para sua segurança. O quarto estava com a luz apagada, mas, não estava com medo, abriu a janela e observou o terreiro e mais adiante a mata onde estava localizada a cabana. Ao fechar a janela, ele ouviu um grito ensurdecedor e em seguida um ar gélido entrar pela frincha da mesma. O coração de Roberto bateu como nunca antes havia batido e depois pareceu parar. A contração involuntária de seus músculos era notável. Sua voz cessou, o seu sangue estagnou. O seu corpo temia, mas seu espírito era valente. Os risos diabólicos pareciam se aproximar e quando tudo silenciou, Roberto criou mais coragem e moveu-se, mas, antes do segundo passo ouviu uma pancada na janela e em seguida outra e mais outra. Então não pensou duas vezes e atirou contra a janela.

Dessa vez foi mais rápido e correu para a porta, onde viu no chão do alpendre seis pássaros mortos. Do lado de fora o terreiro em sombras, contornou a casa depressa e fez o mesmo percurso até o casebre. A vegetação úmida de orvalho estava amassada, ele usou uma lanterna para se certificar de que eram passos recentes sobre a grama. Notou também que não estava úmido apenas devido ao rocio, tinha algo de cor escura. A trilha sinuosa e marcada com sangue, visível à luz da lanterna, o levou até o espaço aberto onde era parte terreiro da cabana. Roberto caminhou mais um pouco até tropeçar numa pedra e cair sobre seu utensílio luminoso. Ao levantar percebeu haver caído não só sobre ela mas sobre várias cabeças de pássaros.

À medida que continuava a caminhar, ouviu um grunhido de um animal atrás dele, correu para o outro lado embrenhando na mata e abrigando-se no troco de uma árvore com a arma em mãos. Percebeu então que estava sendo amedrontado por algo maligno e invisível. A cabana estava mergulhada na noite, pela greta só era visível a escuridão. Por longos minutos ele ficou ali, quando não mais ouviu nenhum barulho caminhou em direção ao casebre.

Antes de sair debaixo da árvore sentiu a gota de um líquido cair em seu rosto. Era sangue! Roberto direcionou o feixe de luz para cima e viu José Maria, pai de Cassandra, pendurado pelo pescoço sem um dos olhos. Eis o cume do medo do homem. Porém, seu espírito era feito de dureza e ele continuou a andar no mesmo rumo ainda que trêmulo, até que uma breve chuva de pássaros mortos caiu ao seu redor, tudo era nítido através da pouca luminosidade lunar e da lanterna.

O horror lhe consumia pouco a pouco. Todo terror, ameaça e mistério que o cercava parecia querer apenas mostrar algo além da compreensão dele. Correu e bateu tão forte na porta que arrombou. Cassandra não estava lá nesse momento, ele ouviu a gargalhada maléfica e sentiu algo tocar seu ombro com tanta força que o fez perder os sentidos. Foi despertado com uma voz a dizer: "Pela vida, pelo amor, pela liberdade, toda boa sorte venha até mim".

Ao abrir os olhos notou a figura com vestes tão parecidas com as de Cassandra e, no entanto, tão distinta dela —era horrível. De seu coração não exalava sentimento, era uma figura com fisionomia dantesca e olhar bruxuleante. Roberto sentiu as mãos frias a contornar seu pescoço enquanto foi levantado e jogado para fora do casebre.

Enquanto ele estava no chão o ser que Cassandra havia se transformado falava palavras estranhas olhando para o céu. Nesse instante o homem pegou a arma que havia colocado no cós e disparou toda a munição contra o ser que lhe causara todo sofrimento até então.

O mais intrigante é que a polícia não achou nada do que o homem relatou, não havia corpos, não havia nada coerente com a história. Ele por sua vez foi encontrado morto dias depois no hospital psiquiátrico deixando seus pertences com seu irmão mais moço, inclusive a casa nos arredores da cidade onde ocorreu tudo. Foi lá onde o jovem irmão de Roberto conheceu a beleza feminina através duma jovem de jeitos encantadores.

Leandro Ferreira Braga
Enviado por Leandro Ferreira Braga em 21/10/2020
Reeditado em 31/08/2023
Código do texto: T7092587
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