A MORTA DA JANELA 
( CLTS 13 - Tema: Lugares amaldiçoados )


 

 
   
    1980
    A casa era velha. Muito velha! As poucas telhas intactas formavam uma cobertura vergonhosa à sua outrora dignidade. As janelas há muito não ostentavam mais os vidros quebrados pelos vândalos. As paredes de madeira, estriadas e enegrecidas pelo tempo, mostravam a sua idade, o seu abandono e, o mais impressionante às raras pessoas que a encontravam no meio da floresta: a solidão.
    O quintal, tomado pelo capim alto, por pouco não se confundia com a própria mata fechada em seu entorno. A estradinha de chão batido, que dava acesso à antiga construção, não passava de uma trilha tomada pelo mato rasteiro.
   
Dizia-se, à boca pequena, que a vivenda era amaldiçoada. A lenda da região metia medo nas crianças, pois falava da alma atormentada de uma mulher presa a velha morada. Folclore ou não, os habitantes dos povoados próximos não tinham coragem de entrar à noite na floresta da casa mal-assombrada.
 

 


 
    Os diminutos pontos luminosos, em movimentos aleatórios dentro da escuridão da noite, a perturbaram por um instante. Ah, não sei o porquê, mas vaga-lumes me dão medo. Queria ir logo para o acampamento onde os amigos estavam à sua espera. Ao invés disso, Julian metera o jipe dentro das brenhas daquela mata fechada, a seguir o curso de uma estradinha de terra batida mal iluminada pelos faróis do carro.
    — Querido, realmente é necessário irmos até essa casa antiga?
    — Alice, você não disse à mamãe que ia ajudar a inventariar os estragos do velho sobrado do meu avô, não disse?
    Maldita hora quando concordou com Eleonora. Ah, fui muito burra mesmo! Nos poucos encontros sociais com os pais de Julian, não teve uma boa impressão da matriarca. Ela lhe causara um desconforto indefinido. Às vezes, a velha costumava esmiuçar-lhe o rosto com insistência à procura de algum defeito, como se o material não fosse a altura da beleza do filho. Seu Olavo, o marido, já era feito de outro barro. Era um senhor bonachão, simpático. Vivia a enchê-la de amabilidades e falsos galanteios para brincar com o filho.
    — Não vamos demorar. Será rápido. Eles já estão muito velhos pra vistoriar aquele mausoléu no meio da noite sozinhos. Pode ter algum vagabundo morando lá.
    Porra, podiam visitar a casa de dia, né? Não, não podiam. Tinham de passar num mercadinho local pra comprar coisas de camping de última hora. Merda, a patota lá no acampamento já deve estar na maior festa. 
   Depois de alguns minutos, em divagações sobre a vontade de estar em outros lugares, os seus pensamentos foram interrompidos ao perceber o jipe abandonar a estradinha e acessar uma clareira iluminada pela luz do luar. Estamos chegando! O carro, assim que alcançou o espaço aberto do pequeno vale, permitiu à Alice ver a construção pela primeira vez. A visão da morada, de pronto, lhe provocou um estranho sentimento.
    Todos os pelos do seu corpo se arrepiaram! 
    Embalada pelos solavancos do veículo, de olhos fixos no sobrado, sentiu emergir de uma percepção mais profunda algo que não vinha do medo ou incertezas de perigos potenciais de uma residência abandonada como cobras, aranhas, ou algum ladrão fugido da polícia. Não! Tinha certeza, também, daquela inquietação não possuir relação com a miríade de vaga-lumes a sua volta, dos quais sempre sentiu um temor infantil, nem do efeito da luz mortiça da lua se espraiar por sobre todo o lugar, nem da névoa fina rente ao chão, ou dos pios agourentos das corujas ao seu redor. Era outra coisa!
    Nossa Senhora, o lugar é realmente sinistro. Mas não é o ambiente que está me provocando esta angústia no peito.
    Antes de compreender melhor aquele sentimento desconhecido, Alice foi subjugada por um fascínio hipnótico proveniente da casa. À medida que o jipe avançava devagar, a construção ia elevando-se, aos poucos, ameaçadora dentro da noite, avultava-se em uma silhueta maligna, como se a parte frontal fosse um rosto deformado, do qual as janelas escuras representavam olhos vazados assustadores que, embora cegos, pareciam querer lascivamente desnudar-lhe o corpo. 
   Ela engoliu assustada a saliva num tranco. A morada, naquele momento singular de horror, mais parecia uma entidade viva, palpável, que se comprazia em fuçar a sua intimidade, espiar a sua alma! Os pelos do seu corpo se eriçaram ainda mais.
    — Julian... eu quero ir embora deste lugar! Aquela casa me dá arrepios!
    — O quê? Você tá de brincadeira? Olha lá! Papai e mamãe já nos viram. Eu não posso simplesmente virar o carro e ir embora! É só uma habitação abandonada no meio do mato, mais nada!
   De fato, voltou a observar o sobrado. A má impressão desapareceu. Ficou aliviada. Julian encostou o jipe ao lado do caravan do casal de idosos. Logo, ao saírem do carro, ouviram a voz de Eleonora a chamar por eles.
   — Querida, venha comigo. Meu filho, ajude seu pai com as lanternas – disse Eleonora, em voz alta, enquanto gesticulava para Alice ir de encontro a ela.
    A velha encontrava-se perto do alpendre, distante uns trinta metros de onde os automóveis estavam estacionados.
    — Vá, amor, não tenha medo – disse Julian ao passar por trás dela para ir na direção do outro veículo.
    Alice avançou alguns passos hesitantes em uma marcha apática, relutante. Enquanto caminhava, permaneceu ainda desconfiada, temerosa, atenta à casa, na expectativa de que a qualquer momento a mesma revelasse as suas garras e pulasse em cima dela. Infelizmente, os seus temores tinham fundamento porque mal chegou à metade do caminho o seu olhar foi atraído para cima em algum ponto do segundo andar.
    E o que viu a fez paralisar as pernas na hora!
    Tudo aconteceu muito rápido. A boca secou. Estremeceu de pavor. Acompanhou a cena por um momento para, depressa, desviar os olhos ainda em dúvida do que acabara de presenciar. Estava assustada. Sentiu os batimentos cardíacos acelerados latejarem dentro dos ouvidos. Calma, muita calma, deve ser coisa da tua cabeça! Respira, Alice, respira!
    Respirou fundo, tomou coragem, e olhou de novo para cima.
   Sim! Não se tratava de ilusão! Mas o que é isso, minha virgem santíssima? Lá estava uma mulher desesperada no parapeito da janela do segundo andar. A cena lhe pareceu surreal porque a desconhecida desferia golpes violentos de mãos fechadas contra o vazio, como se tivesse a intenção de quebrar os vidros da janela que já não mais existiam! A beleza do rosto só não se apresentava em toda a sua plenitude porque a fisionomia hirta expressava puro desespero. A boca se abria exagerada como a berrar muito alto, sem emitir som. Os olhos arregalados manifestavam verdadeiro pavor.
    Um novo arrepio, desta vez em um assomo violentamente súbito, retesou todo o seu corpo, como se ela tivesse levado um choque elétrico na planta dos pés ao perceber o olhar obstinado da mulher à procura do seu. A conexão entre as duas ocorreu de forma muito breve, porém intensa, porque mesmo naquela distância, mesmo sob a luz débil da lua, mesmo considerados os poucos segundos de contato, foi para Alice uma revelação!
   De algum modo, não sabia bem como explicar, teve a certeza absoluta de que aqueles olhos esbugalhados de profundo horror lá do alto da janela tinham o propósito de avisá-la:

    “Vá embora! Vá embora enquanto ainda é tempo”!

    Alice achou por bem acatar o aviso.
    Já ia tomar o rumo de volta em direção aos veículos, quando o vulto de Eleonora apresentou-se-lhe firme, solícita, preocupada.
    —  O que aconteceu, querida? Você está tão pálida!
    Ela contemplou assustada a futura sogra. Queria dizer-lhe, da forma mais objetiva possível, não haver criatura no mundo que a convencesse de botar os pés dentro daquele sobrado. No entanto, ao encarar de perto a outra, os pensamentos para expressar aquelas palavras chocaram-se, travaram-lhe o discernimento. Algo de lógico se lhe escapava do quadro geral de suas percepções.
   De começo, o rosto de Eleonora exerceu-lhe uma sensação indefinida de estar perdendo alguma coisa, do mesmo modo quando estamos diante de um quebra-cabeça de muitas peças e deixamos passar aquela que se encaixaria perfeitamente para fechar um bloco incompleto. Algo sinistro, inexplicável, imponderável dentro da sua mente fazia força para emergir.
    De repente... ela compreendeu!
    Tomou outro susto e instintivamente pulou para trás. Eleonora era parecida com a mulher da janela! Poder-se-ia dizer, até, tratar-se da mãe dela tal eram as semelhanças físicas entre as duas. Alice não demorou muito para encaixar as peças do quebra-cabeça inteiro e chegar a uma conclusão indubitável: por incrível que isso pudesse parecer, ela estava diante de uma mulher morta! 
   Surpresa, completamente aturdida, iniciou o retorno para os veículos de costas. Não queria perder Eleonora de vista nem por um instante. Por instinto, procurou no chão qualquer coisa que pudesse usar de arma como uma pedra ou um pedaço de pau. Estava apavorada. Num relance deu com os olhos em uma mochila azul, provavelmente trazida pelo casal e, ao lado, um facão com a ponta enterrada no solo, uma ferramenta útil para cortar cipós e explorar a mata fechada.
   — Oh, querida, por favor. Não tenha medo. Venha comigo. – Disse Eleonora em passos decididos à frente com o braço erguido para trazê-la de volta.
   Alice, incitada por aquele sentimento de angústia, de sobrevivência, tomou o facão do solo e o apontou para a mãe do namorado.
    — Afaste-se de mim!
    Puta dos infernos!
    De súbito, sentiu-se agarrada! Os braços fortes de alguém a imobilizaram por trás com força. As pernas fraquejaram ao ver a máscara de preocupação dissimulada da velha esfacelar-se de uma só vez, dando lugar a um rosto de pedra onde dois pontos negros a encaravam com desprezo.
    Ai, Meu Deus, estou perdida!
    — Otávio, depressa, seu incompetente! – Disse a megera na direção de algum ponto atrás dela.
    O futuro sogro, antes tão simpático, se aproximou de lado com uma seringa nas mãos!
    — Oh não, não...ai, Meus Deus... não, por favor!
    Sentiu a picada dolorosa diretamente na veia, pois quem a segurava era muito forte. Em seguida, percebeu o líquido quente espalhar-se depressa pelo braço, depois o corpo todo.
    — Solte esta vaca. – Disse a velha com raiva.
    Alice sentiu-se livre por um momento. Notou a bruxa vir ao seu encontro, por isso apertou o cabo do facão entre as mãos, mas este parecia pesar uma tonelada. Não chegou a sequer levantá-lo quando sentiu o tapa que lhe estourou na cara violentamente.
    Caiu sentada, confusa!
    Tentou levantar-se, sem sucesso, dopada.  Antes da escuridão envolver-lhe os sentidos, conseguiu perceber Eleonora se dirigir à terceira figura que lhe agarrara por trás:
    — Quanta idiotice, hein? Com milhares de garotas pra conquistar nesta cidade de merda, meu filho, você tinha de se envolver logo como uma sensitiva insuportável.


 
   

 
    O cheiro de álcool lhe trouxe luz à consciência. Sentiu a mordaça entre os dentes. Encontrava-se deitada, amarrada, de braços e pernas abertas completamente nua dentro de uma estrela de cinco pontas desenhada no chão em meio a círculos coloridos. Percebeu uma quantidade espalhafatosa de pequenas velas de diversos tamanhos a ornamentar, também em círculo, o corpo dela.
   O estômago sentiu o primeiro choque. Quase vomitou sobre si mesma. Já ouvira falar, ou assistira um documentário, pouco importava fosse uma coisa ou outra, a respeito da tal estrela de cinco pontas. Era o pentagrama invertido de Baphomet! 
    Meu Jesus Cristo, estou no meio de um ritual de magia negra!
   Inclinou o torso um pouco mais à frente, como se estivesse fazendo um exercício abdominal e, horrorizada, confirmou os seus temores. A dois metros dos seus pés, constatou outro maldito círculo desenhado em riscos grossos, acompanhados de quatro enormes velas. Do outro lado da circunferência, viu uma espécie de altar forrado de cetim preto.
    Em cima da mesa encontrava-se deitada Eleonora, vestida de túnica branca repleta de desenhos e símbolos diversos. Otávio estava em pé junto dela, todo paramentado em um hábito longo e negro, pontilhado por desenhos similares aos da velha. Do rosto transfigurado do pai de Julian destacava-se de forma bizarra os olhos esbranquiçados, em transe.
    Alice engoliu a saliva e começou a chorar. 
    As lágrimas lhe escorriam abundantes.
    Considerou ser muito difícil escapar com vida daquele lugar!
   No entanto, diante de todo o cenário hostil, das emoções de horror a invadir-lhe em ondas crescentes, nada ali dentro daquela sala fétida a surpreendeu tanto quanto o exato momento em que percebeu a presença do espírito da “mulher da janela” em pânico.
    A morta tentava sair do lugar sem conseguir. O espectro emitia um tênue brilho e, vez por outra, materializava-se de modo intermitente. Algum fenômeno, imperceptível aos olhos sensitivos de Alice, prendia a pobre criatura à parede! Ela se sacudia para frente e para trás, para os lados, tentava pular, tateava o ar alucinada como se quisesse abrir um buraco numa prisão de vidro.
    A mulher queria fugir daquele lugar a todo custo!
   Em nenhum momento, enquanto esforçava-se para escapar, a pobre criatura desviou o olhar cravado no círculo maior localizado no centro do quarto. Ela não teve dúvidas: a figura etérea era Eleonora quando jovem! E todo o sofrimento dela desenrolava-se numa outra esfera da realidade física sufocante daquele aposento, entretanto conseguia sentir as vibrações entre os dois planos cada vez mais próximos.
    De súbito, Olavo elevou as mãos para cima, alteou a voz rouca e, como num passe de mágica, as chamas das quatro velas próximas do círculo central da sala engrossaram, aumentaram de tamanho quase chegando a chamuscar os caibros do teto.
    Meu Jesus Cristo, isto é impossível!
    O quarto ficou quente!
    Eleonora, deitada no altar improvisado, virou o rosto para ela. Um terror indescritível arrebatou a mente de Alice. O corpo inteiro, trêmulo, foi trespassado por ondas de arrepios quando os olhos enegrecidos da megera se fixaram nos seus. Me ajuda, Senhor! Eram olhos de um predador esfomeado. Um sorriso maligno devastador se assomou naquela cara enrugada e perversa.
    Julian, de batina preta, com capuz sobre a cabeça, entrou em seu campo de visão.  Ele segurava um punhal brilhante, de ponta afiada e recurva. Alice passou a soluçar alto. Emitiu, por sobre a mordaça, prantos de misericórdia. Mal reconheceu o namorado de semblante totalmente transfigurado, em transe, assim como o velho Otávio. O homem por quem se apaixonara ignorou as suas súplicas.
    Ele foi até o púlpito onde estava a mãe deitada. Fez um gesto de respeito para o pai tomando-lhe o lugar. O velho, de posse de um livro enorme, afastou-se de lado sem parar de recitar versos em língua estranha.
    — Meu filho! – Eleonora disse orgulhosa. – Faça o que tem de ser feito.
   Julian, sem pestanejar, elevou as mãos acima de sua cabeça fechando-as firmes em torno do punhal! A mulher da janela começou a debater-se como se tivesse sido acometida por um ataque epilético. Ele passou a recitar uma ladainha em língua estranha também ajustando o seu tom de voz ao do pai. As chamas das quatros velas, aos poucos, se desprenderam das mesmas em revoluteios de fogo acompanhando o círculo desenhado no chão.
    Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome...
   Um vento quente, oriundo do centro da sala, rodopiou pelo recinto a bruxulear as chamas das velas. Alice começou a suar, a perder as forças, o coração acelerado dava saltos, os olhos ardiam, urinou incontinênti de medo. Os soluços do choro começaram a sufocar-lhe a garganta. A ladainha dos dois homens tornou-se mais alta, tornou-se mais intensa! Estavam, com certeza, invocando algum demônio.
    E ele veio!
   A criatura medonha, enorme, repleta de chifres, emergiu do círculo de fogo de um único rompante! Alice não conseguiu ver a coisa de frente porque o monstro encarava a alma da morta, tentando alcançá-la com as suas poderosas garras. A coitada afastava-se-lhe dos ataques, enquanto berrava alucinada um enfático “não” sem emitir som. Alice engoliu os soluços. Apertou a mordaça entre dentes com força. Obrigou-se a ficar quieta e parou de se debater. Não queria, de modo algum, atrair a atenção da besta, mesmo sabendo da cena dantesca diante dela proceder em um plano existencial diferente daquele que estava vivendo.
    A aberração demoníaca resfolegou ansiosa, sedenta, esfomeada em possuir a vítima indefesa à sua frente. Julian, então, emitiu um grito horrível e desferiu o punhal violentamente contra o peito da mãe. No mesmo instante, como um cachorro vigoroso ao se libertar da corrente, a hedionda criatura deu um único e certeiro bote: inclinou-se numa velocidade espantosa sobre a pobre alma da morta e a envolveu em suas garras arrebatando-a para dentro do círculo de fogo. O demônio arrastou aquela alma frenética em desespero às profundezas e cortou, para sempre, os elos invisíveis que a mantinham segura dentro do âmbito espiritual da casa.
    A última coisa que Alice viu antes de desmaiar foi o espectro negro de uma mulher muito bonita, jovem, altiva, arrogante, de sorriso malévolo, deixar o corpo inerte de Eleonora esvaindo-se em sangue. Antes de desfalecer pôde ainda perceber o olhar de predador daquela aparição a encará-la como se ela fosse um objeto de sua propriedade. Conseguiu, no limiar da escuridão que começou a envolvê-la, ainda entreouvir uma sentença:
    — Este teu corpo jovem, agora, é meu... querida.
 
 


 
    2020
    Quarenta anos se passaram depois daquela noite. Alice ficou com a casa. Não precisou investir muito de si para deixá-la habitável, prazerosa e linda. A morada sempre tivera o seu próprio encanto. Tudo dentro dela se ajustava ao bom gosto, ao requinte. Desde os lindos tapetes persas, a decorar o piso de tábuas reluzentes pelo verniz, até os extraordinários vitrais que compunham a estética de seu estilo colonial. Talvez, é bem verdade, não o fosse para quem a observasse de fora. Ainda assim, melhor local para viver em reclusão não poderia existir. Os vínculos que as uniam, ela e a casa, eram indissolúveis.
 
    No entanto, naquela noite ela iria embora!
    Os preparativos já haviam sido providenciados. Olhou assustada para o pentagrama de Baphomet desenhado à tarde no centro da sala de estar sabendo ter pouco tempo. Os pensamentos, de repente, foram interrompidos pelas batidas das portas de um carro. Observou, apavorada, lá fora, o seu próprio corpo envelhecido pelo tempo voltar-se para o sobrado.
    Longe dos olhos da jovem mulher ao seu lado, a criatura daquele rosto, o dela mesmo tomado de rugas da velhice, emitiu um sorriso de pura perversidade. Reparou dois homens saírem do carro: um deles era jovem, um completo desconhecido, o outro era Julian, encurvado pela idade avançada também.
    Sentiu pavor ao pensar no demônio que iria levá-la para o abismo no ritual daquela noite!
    Prestou atenção na jovem bonita a olhar indiferente para o seu lar. Constatou, desalentada, a garota não ser uma sensitiva. Não percebia a armadilha se fechando sobre ela.
    Mesmo assim, provocada por lembranças oriundas do passado, invadida pelo horror das profundezas, passou a esmurrar os vidros da janela, a buscar desesperada o olhar da moça lá embaixo e, reunindo todas as forças do seu espírito, começou a berrar alucinada:
    “Vá embora! Vá embora enquanto ainda é tempo!”







 
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 27/10/2020
Reeditado em 18/12/2020
Código do texto: T7097740
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