CAMPING - CLTS 13

 
Quem vive no mundo das letras às vezes se perde no tempo e o jovem casal de escritores, que havia resolvido viajar no carnaval daquele ano, demorou muito para efetuar a reserva do hotel na cidadezinha à beira-mar imaginada. Ao buscarem, não havia mais vagas.  Os filhos de quatro e sete anos estavam desapontados e até mesmo eles que planejaram encontrar inspiração num ambiente diferente da grande cidade do Rio de Janeiro, onde moravam, para o novo romance que escreviam à quatro mãos.

Tinham procurado por semanas e Maricá lhes pareceu ser o local perfeito. Era perto, a diversidade de praias, cavernas aquáticas e grutas para serem exploradas os tinha encantado e ali a aventura da sua história se encaixaria perfeitamente. 
 
Comentando com amigos sobre a frustração da inexistência de vagas em hotéis e pousadas, um deles mencionou um camping, que tempos atrás tinha visitado numa bucólica e tranquila área pouquíssimo habitada naquela cidade, dando-lhes ótimas referências. E eles passaram a considerar a possibilidade. Seria uma grande novidade familiar, já que nunca haviam acampado. 
 

Equiparam-se e partiram numa alegre viagem rumo à experiência da rústica aventura.




Embora simples, o lugar oferecia uma infraestrutura atrativa para facilitar a estadia por lá. Circundado por um lindo e enorme espaço verde, nele havia uma grande casa com banheiros e chuveiros externos, e um refeitório onde, caso seus visitantes desejassem, forneciam refeições. Pias para lavagem de louça eram avistadas em alguns pontos ao longo dos locais designados às habitações de campo, bem como luz elétrica em postes - também assim distribuídos, além da oferta de barracas ou trailers. E o encanto maior: logo na entrada existia um grande lago, destinado apenas à pescaria, e aos fundos, trilhas para caminhadas numa área florestada margeando o rio que cortava o bosque e que ofertava uma inebriante beleza.
 


Divertiram-se armando a moderna tenda com varanda coberta, sala e dois quartos num lugarzinho com vista lateral para o lago, ligeiramente próximo ao pequeno córrego resultante do rio aos fundos, e a pouco mais de 5 metros de um grande trailer, onde um simpático casal de idosos e sua filha haviam se instalado.
 
Cansados, mas animados, ao anoitecer fizeram uma pequena fogueira ao lado do riachinho, porém não se demoraram muito porque logo uma chuva fininha começou a cair. Acomodados na sua varanda lonada, aproveitaram as crianças terem adormecido e continuaram a discutir a história do romance.

 
Ainda que algumas tendas se encontrassem montadas, o camping não estava cheio e dividiam a tranquilidade apenas com a família ao lado. No silêncio da noite, era estranho ali da varanda perceberem a pequena lâmpada do casarão a tremeluzir, e verem aquelas barracas fechadas, algumas desgastadas pelo tempo, à espera de alguém que não chegava.  A sensação de lugar fantasma só não era maior porque os vizinhos do trailer tinham uma televisão e eles ouviam o que aqueles assistiam. 

 
Resolveram dormir cedo pois para o dia seguinte estava programada a ida à Praia de Ponta Negra onde visitariam suas cavernas naturais. Ao amanhecer, contudo, notaram que o clima estava instável e resolveram adiar o passeio até a praia optando por fazerem a trilha dos fundos.

 

O trajeto da caminhada era rico em vegetação preservada, bem sinalizado e tudo seguia tranquilo até o momento em que os filhos correram à frente e sumiram. Preocupados, começaram a gritar seus nomes e a procurá-los na última direção em que as viram. Os segundos levados na busca pareciam intermináveis horas e o desespero se agigantava, quando finalmente os avistaram e voaram ao seu encontro. Felipe e sua irmã Sofia olhavam para as águas do rio enquanto a menina balbuciava:
 
– O moço... morreu...
 
– Que moço, filha? -
A mãe perguntou aflita.
 
A menina apontou para a margem oposta, mas eles não viram qualquer coisa estranha. Poderia ter sido algum tronco boiando que os confundiu, o pai pensou. A fim de tranquilizá-los, disse-lhes que não era nada e os pegou pelas mãos começando a fazer o caminho de volta, achando que seria melhor saírem de lá. As crianças seguiram em silêncio enquanto os pais trocavam olhares de preocupação.
 

Usaram o resto da manhã em brincadeiras na tentativa de fazê-los esquecer o acontecimento, e após o almoço os colocaram para dormir. Júlio e Helena se afastaram um pouco e começaram a falar sobre o ocorrido, pois procuravam entender como os dois poderiam ter se confundido. Pensavam - Felipe... talvez, mas Sofia...? - Foram interrompidos pelos gritos do caçula que despertou chorando e a gritar:
 
– O moço morreu... morreu!
 
Os pais voltaram correndo encontrando Felipe soluçando, enquanto Sofia, que despertou com os gritos do irmão, o olhava assustada. A mãe dedicou-se a acalentá-lo e Júlio resolveu que iria procurar os senhorios e questionar-lhes se sabiam de alguma coisa.
 
Os donos do trailer perceberam a movimentação e chegaram perguntando se precisavam de algo e oferecendo a tevê, dizendo que os guris poderiam se distrair com a programação infantil. Os olhos deles brilharam e Helena agradeceu enquanto arrumava os irmãos para irem com os vizinhos, acompanhando o marido até o casarão em seguida.
 

Saíram da casa frustrados, sem nenhuma informação que ajudasse, e ele decidiu retornar à área florestada e buscar alguma pista que os permitisse entender aquela história. 

 


Ao chegar ao portão de acesso ao início da trilha, Júlio observou que agora o mesmo estava interditado, mas não desistiu. Procurou outra passagem por entre a vegetação e conseguiu alcançar a estrada que levava ao rio. Refez o percurso que havia realizado com a família e chegou ao ponto onde tinha encontrado os pequenos parados, constatando que nada havia nas margens, nem a boiar naquelas águas, que os pudesse ter perturbado. Eles tinham visto algo estranho, mas não parecia ter sido um tronco. Embrenhou-se na mata circundante a procurar explicações, e assustou-se com a rouca voz que ouviu:
 
– Ei, moço! Não pode caminhar por aqui hoje não!
 
Virou-se e não viu ninguém. Deu meia volta, escondeu-se atrás de uma árvore, e olhando sorrateiramente para as margens avistou dois homens a retirar folhagens e galhos caídos, reparando que eles confabulavam e apontavam para vários cantos, mas não percebeu nada anormal. Por fim, pensou que certamente eram caseiros fazendo a manutenção do local e, querendo certificar-se, olhou ainda um pouco mais ao redor. Ao achar que tinha visto o suficiente e que deveria ir embora, deparou-se com um dos homens parado à sua frente. Este o olhou fixamente e caminhou novamente rumo ao outro, sem nada lhe dizer.



 

De volta, surpreendeu-se com o clima de diversão entre a família e os novos amigos. A senhora do lado tinha preparado um lanche e eles conversavam animadamente. Felipe e Sofia jogavam bola com o “vovô”, como começaram a chamar o vizinho, e naquele instante Júlio esqueceu de tudo o que havia acontecido, concluindo que as crianças realmente se enganaram e que as férias iriam finalmente começar.
 
A tarde estava quente e ele se animou a pegar os apetrechos de pesca, dirigindo-se até o lago. Helena relaxou com a tranquilidade do marido e foi lhe fazer companhia.  Ao chegar notou que lutava com o peixe que tinha fisgado, e jogaram-se no chão às gargalhadas no momento em que ele conseguiu desvencilhar a linha de algo que a prendia e descobriram que o “peixe” era nada mais nada menos que uma velha bota. Definitivamente, as férias tinham começado.



As horas se passaram em atividades alegres e nem atinaram que já anoitecia. Sentados na grama, sossegados e serenos, Helena olhou para o céu e comentou, enquanto espreguiçava languidamente:
 
- Olha só essa nuvem... que bonita que está!

 Júlio preocupou-se ao olhar para o alto.
 



A ventania não tardou a chegar. Os movimentos do ar anunciavam o que estava por vir e se mostravam tão fortes que conseguiram arrancar do chão algumas das tendas vazias e carregá-las como bolas de mato seco no deserto, rolando livres e perigosamente pelo gramado. As árvores agitavam seus galhos incessante e ruidosamente e as intensas lufadas de vento nas paredes de lona apavoravam. Ao ver a apreensão dos pais, a pequena Sofia agarrou-se a um dos bastões das ferragens de sustentação da barraca, enquanto gritava assustada:
 
- Segura, papai!
 
Instintivamente, Júlio pegou os filhos no colo e correndo os levou para a varanda do casarão, voltando desesperado para revezar o cuidado deles com a esposa e tentar manter tudo em ordem.

Informando que tinham um gerador de energia e não havia risco de falta de luz, os vizinhos indagaram se não queriam ficar no trailer, garantindo que poderiam ali permanecer e aguardar enquanto a calmaria não voltasse, mas ele achou melhor começar a organizar seus equipamentos, visto que poderiam resolver partir porque havia o risco de chuva forte e tudo alagar.

 


Com o fim do vendaval o tranquilo anoitecer imediatamente se transformou, exibindo então um negro céu de alta madrugada com a escuridão nascida da densa cumulonimbus notada por Helena. Relâmpagos reluziam em seguidos flashes iluminando os mais escondidos espaços do camping, convidando a mente a imaginar sinistras formas.

Contínuos trovões explodiam em ecos ensurdecedores numa disputa de poder com os atemorizantes raios visualizados ao longe, e a seguir a chuva se apoderou de todo o lugar em forma de violenta tempestade, mostrando que era ela que dava as ordens. Os céus desaguavam com uma força aterrorizante, e só lhes restava esperar.
 
Os postes balançavam e a luz bruxuleava. O nível da água do lago havia subido e várias poças se espalhavam refletindo os clarões dos raios. Júlio tirou o carro do estacionamento, cuidando para não se confundir com o limite do lago quando as rodas patinavam, levando-o até próximo à habitação de lona para começar a recolher seus pertences.

Embora tivesse pensado, não sabia se conseguiriam fazer a viagem de volta naquela noite, pois não tinha ideia de como estavam as estradas. Considerou ser mais prudente pernoitarem, mesmo que tivessem que permanecer vigilantes.
 
A casa tinha um para-raios e, apesar de não ter visto nenhum deles na direção do acampamento, imaginou que se por acaso algum caísse sobre ela os pequenos se apavorariam com o barulho. Assim, pensou que seria melhor tê-los com ele do que ali.

Sempre atento à família e debaixo de chuva, estendeu os aparatos de proteção extra da barraca, ajeitou e suspendeu o também extra linóleo do piso, deixou o quarto dos filhos arrumado e tão logo as águas deram uma trégua e os raios e trovões diminuíram, foi buscá-los na varanda do casarão que àquela hora lhe pareceu sombrio e silenciosamente assustador.
 
O aguaceiro perdeu sua força e perdurou por toda a noite ora em média, ora em menor intensidade. Vendo a família dormindo e em segurança, extenuado e ao som da melodia cadenciada da chuva, somado ao uivo do vento que entrava pelas frestas da janela, Júlio adormeceu no carro.


 


Ainda tendo o céu coberto por nuvens escuras, o dia lutava em vão para abrir suas pesadas cortinas sob uma persistente garoa quando ele despertou com um estalido na lataria. A sensação de lugar fantasma foi maior ao pegar sua lanterna e iluminar os arredores do camping. Tendas destruídas se amontoavam aos fundos, objetos e roupas estavam espalhados por toda a área. Via-se galhos de árvore sobre seu carro e trailers, e outros a flutuar no córrego, que havia mais que duplicado de largura durante o temporal, e que agora estava bem próximo à lateral da sua barraca.



O estarrecedor silêncio só era quebrado pelos ruídos gotejantes e do fluir do riacho, mas também pelo som da televisão do trailer, que apresentava em certa frequência a vinheta do noticiário urgente com detalhes da catastrófica borrasca  no Rio de Janeiro.

Acordou a esposa e continuaram a arrumar suas coisas juntos deixando para pegar as crianças, ainda dormindo, apenas quando tudo estivesse preparado para a partida. Terminada a arrumação ele pegou Sofia e a acomodou no banco traseiro indo buscar Felipe em seguida. No colo do pai, o menino voltou a balbuciar o que o fez despertar gritando na tarde anterior.
 
- O moço morreu...
 
Júlio o embalou carinhosamente para que voltasse a dormir, depois aconchegando-o ao lado da irmã. Buscando por Helena, a encontrou paralisada em frente ao córrego. Ao aproximar-se e olhar para a mesma direção que ela, estremeceu em calafrios e a retirou rapidamente dali, enquanto tentava controlar seu próprio pavor.





Corpos em avançado estado de decomposição boiavam trombando-se, misturando-se e camuflando-se com folhagens na correnteza do já não pequeno riacho, indo desembocar no lago da entrada ao qual se tinha unido. Alguns vinham com os membros deslocados dentro das suas apodrecidas vestes ou em partes separadas. A tempestade desabada com a fúria do universo os havia desenterrado com a elevação do nível das águas do rio, possibilitando o fúnebre cortejo aquático.
 
Um thriller de terror passou pela sua mente em segundos, e instantaneamente ele pensou nas barracas vazias. Apavorado, porém consciente do que precisava fazer
,  agasalhou e alojou a esposa no carro e correu para o trailer dos vizinhos visando alertá-los, mas não estavam ali. Então lembrou de tê-los visto indo em direção ao casarão quando retornava de lá com sua família, e de não ter mais prestado atenção neles por estar muito ocupado tentando proteger os seus no meio da chuvarada. Voltou em desabalada carreira e saiu com a mulher e os filhos daquele cenário de horror e morte, dirigindo como numa fuga alucinada.
 


Na estrada, parou no primeiro posto da Polícia Rodoviária que avistou relatando todo o acontecido aos plantonistas e estes acionaram a Polícia Civil imediatamente. Após os procedimentos de identificação e demais registros, eles foram liberados.

Agora, era voltar para casa e procurar esquecer tudo aquilo.
 


A polícia os mantinham informados dos fatos e eles souberam que a família do trailer havia sido encontrada amordaçada no casarão, com sinais de sofrimento de extrema violência física. Apesar da brutalidade por que passaram, eles sobreviveram e ajudaram com seus depoimentos nas tentativas de elucidação dos crimes.
 
Fora descoberto que os atuais gestores do macabro camping não eram os seus reais proprietários, presumivelmente mortos por eles, e também lhes relataram que a busca pelos criminosos e seus cúmplices - imaginados como caseiros por Júlio, continuava.

 
As investigações concluíram que os assassinatos visavam o roubo do dinheiro e pertences dos visitantes, na sua maioria idosos de outros Estados e que se encontravam apenas de passagem pela cidade, com um desfecho sádico e trágico para as suas vidas. Suas barracas e trailers eram escondidos por um tempo, e disponibilizados depois para aluguel de novos usuários. Partes de carros que não conseguiam vender em desmanches, cujos proprietários também seriam seus cúmplices, eram afundadas no grande lago ou jogadas em ribanceiras. Quase um crime perfeito. Entre ossadas e corpos, treze vítimas foram encontradas.
 


Um ano depois a família estava completamente reestruturada. O romance, antes idealizado como uma aventura de amor na praia, transformou-se num livro com a história de horror vivida por Júlio e sua família. Na contracapa, uma chamada para o  enredo:


 
 

Tornou-se um best seller!
 
 
 

Tema: Noites Tempestuosas Brasileiras

 
 
 
 
 
Post Scriptum - Informações pertinentes
 
O histórico de chuvas torrenciais no Rio de Janeiro remonta ao ano de 1575 quando foram feitos os seus primeiros registros pelo Padre José de Anchieta, dez anos após a fundação da Cidade. A partir de 1711, vários catastróficos temporais, compilados pela historiadora Andréa Casa Nova Maia, constam de um artigo publicado na Revista da Fundação Casa de Rui Barbosa.

A maior de todas as enchentes chegou em 1966 quando 250 pessoas morreram e mais de 50 mil ficaram desabrigadas. As chuvas transbordaram rios e alagaram a cidade durante cinco dias de temporal.

No período do carnaval de 1988, um forte temporal atingiu o Rio de Janeiro com deslizamentos e desabamentos que mataram dezenas de pessoas e deixaram outras dezenas de feridos e desabrigados.

E segue...




Imagens: Google

* Cumulonimbus são nuvens formadas por excesso de calor armazenado na atmosfera e elevada umidade do ar. Provocam os raios, os trovões, intensas rajadas de vento, granizo e principalmente tempestades e chuva volumosa.


C u m u l o n i m b u s
"Um relâmpago rasgou o céu em pedaços com sua luz prateada. O trovão que se seguiu estrondou como a fúria de mil leões rugindo em luta pelos seus domínios. E a chuva não demorou a cair pesada e com pressa, como se há muito esperasse pelo seu momento de liberdade. Espalhou-se pelas árvores, desceu livre pelos morros e correu pelas estradas e ruas desfraldando bandeiras, gritando palavras de ordem com a força das suas águas. Não, esse movimento não era pacifista. Havia um clamor por justiça e vingança no seu objetivo, e não haveria força que pudesse detê-lo até que houvesse cumprido a sua missão. E os mortos seriam os seus maiores aliados”. *

* Texto entre aspas na imagem extraído e adaptado do Conto DESTRUIÇÃO, da autora.
Marise Castro
Enviado por Marise Castro em 28/10/2020
Código do texto: T7098203
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