O CAMINHO DOS RELÂMPAGOS

"Quando prescreveu leis para a chuva e caminho para o relâmpago dos trovões;"

JÓ 28;26

"Por que vaga-lumes morrem tão cedo?"

Setsuko de O Túmulo Dos Vaga-lumes.

A chuva crepitava ritmada nas poças que se formavam naquela noite fria. Ainda havia uma farmácia aberta enquanto a maioria dos estabelecimentos baixava as portas. Num céu sem lua nem estrelas, os postes de luz e as placas luminosas mantinham a claridade das avenidas, por onde passavam uns poucos carros. O parque arborizado encharcava e as árvores eram lavadas do alto da copa até o solo. As bancas de jornal há muito estavam lacradas. Latas e garrafas plásticas eram levadas com a enxurrada que destilava pelo meio-fio das calçadas até os esgotos. O mundo se desfazia em água.

Não havia casas populares por ali. Somente apartamentos e condomínios. Naquela noite uma família adiava a viagem e esperava mais um dia em sua residência. Uma criança admirava as gotas da chuva pela janela. Um casal se amava em sua cama enquanto a TV transmitia a nova série do Netflix. O temporal era uma orquestra para o que sofria de insônia que, com o som gostoso que fazia, repousava no conforto de seus lençóis. A pizza chegaria em breve. Fora isso, não havia ninguém do lado de fora.

Ou melhor. Havia.

Surgia de uma esquina um homem. Um homem com vinte e cinco anos, mas que aparentava quarenta. Alguém cuja última refeição fora há três dias. Gritava um nome que a tempestade abafava:

- Falcão! Falcão!

Vestindo de roupas rasgadas, sem chinelos, pés cascudos e sujos, unhas apodrecidas, mãos calejadas, barba espessa, cabelos desgrenhados, corpo magro e calça jeans rasgada, nosso herói desbravava as trevas chuvosas com cautela, tendo na mão direita um cabo de vassoura quebrado com uma ponta normal e outra afiada. Este lhe servia de bengala e proteção.

Motivo: era cego.

Laurentino não nasceu cego. Fora acometido ainda criança de uma doença rara que afetara o sistema óptico, escurecendo-lhe as vistas pouco a pouco até não conseguir enxergar mais nada. De família nordestina, durante a migração sua mãe morreu ao chegar a São Paulo e ele ficou morando com os três irmãos e três irmãs numa casa velha de aluguel que arranjaram.

Sem muito dinheiro e sem pai, que por causa da amante os abandonara ainda no interior da Paraíba, cada um teve que se virar para arranjar sustento. Laura, a mais velha, cuidava de Laurentino com muito cuidado, enquanto os outros faziam o que podiam para sobreviver.

Algumas meninas viraram prostitutas. Uma delas fora estuprada e morta. A outra fugira de casa com o namorado. Os dois mais velhos entraram no mundo do crime e foram brutalmente assassinados por uma gangue rival. O do meio vendia salgadinhos e doces nos faróis, mas a polícia, após confundi-lo com um aviãozinho dos bandidos, colocou-o num carro e nunca mais fora visto.

Em extremo desamparo, Laura pôs os poucos pertences dela e de Laurentino numa sacola, os trocados que restavam, pegou o irmão cego pelo braço, subiram de carona num ônibus até a estação, deixando a casa sozinha e foram viver de esmola, já que não conseguiriam pagar o aluguel.

Durante um tempo até conseguiram sobreviver. Quando achavam vaga em albergues, dormiam por lá. Quando não ficavam ao relento, mas sempre uma pessoa ajudava com alguma coisa, principalmente quando era Laurentino que pedia e informava de sua doença.

Contudo, a vida que, como os raios, não avisam quando caem, jogou Laura no mundo das drogas. Com o tempo o moço foi aprendendo a se virar e andar por aquelas ruas. Porém, a instabilidade mental e emocional da irmã fazia com que eles mudassem de local sempre que ela queria. Andavam por horas até chegar à outra estação. E assim eram como nômades no deserto de São Paulo feito de pedra, cimento.

“Grandes são os desertos e tudo é deserto...” dizia o poeta.*

Ao acostarem-se numa avenida no centro da cidade, ficaram por ali mesmo e cresceram na miséria. Fizeram amigos de rua, que infelizmente lhes roubaram o pouco que tinham.

Os anos passaram. Laurentino adaptara-se com as ruas, barulhos, semáforos, sujeira e a indiferença de muitos daquele lugar.

Laura não.

Numa noite, ela avistou um cachorrinho andando no meio da avenida movimentada. Antes que fosse atropelado, a moça correu em direção ao animal para salvá-lo, tomou-o em seus braços e foi até o irmão que a aguardava debaixo de uma marquise. Ao chegar lhe deu de presente o filhote.

Um largo sorriso se desenhava no rosto sujo de Laurentino que, com muita alegria, recebeu o presente. Sempre quis ter um bichinho de estimação e deu ao cachorro o nome de Falcão, inspirado no dragão Falkor de A História Sem Fim, filme que assistira enquanto ainda possuía um pouco de visão. Laura até tentou parar com as drogas após tamanha emoção que a felicidade do irmão lhe transmitira. Era um raio de luz em meio às nuvens negras de chuva de suas pobres vidas.

Mas não conseguiu. Não encontrava alento nem esperança por nenhum lado e temia muito ver o irmão cego, que tanto cuidou durante sua vida, morrer de fome.

Um ano depois, vendo que o moço já conseguia sobreviver com as ajudas que pedia e que o animal lhe era fiel, numa noite a irmã colocou todas as moedas que ainda tinha perto do irmão que dormia num papelão ao lado do cachorro, deu um beijo com lágrimas e se jogou do alto do viaduto.

Morrera na hora.

Laurentino ficara somente com Falcão, que de agora em diante, seria sua única família.

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- Falcão! Falcão!

Laurentino cuidou do cachorro assim como o animal cuidava de seu dono. Quando alguém ameaçava, Falcão rosnava e atacava. Já mordera a perna de muito empresário babaca e de outros moradores de rua que desejavam se aproveitar da fragilidade do cego. Às vezes, enquanto o dono dormia o animal lhe fazia guarda. Dividiam tudo. Os mesmos pedaços de pães secos, a mesma marmita, o papelão velho. A mesma vida sofrida, mas não solitária, pois tinham um ao outro.

Certa vez quase foi espancado por um grupo de jovens que passavam pela avenida. Estavam bêbados quando o cego se aproximou pedindo uma esmola. Tomados de coragem pelo álcool jogaram Laurentino no chão e abaixaram as calças para urinar em cima dele. Rapidamente o animal avançou na perna de um deles. Entretanto, recebeu um chute com tanta violência que caiu longe ganindo de dor. O mendigo se levantou chamando pelo animal sem saber de que lado estava. Mesmo sem direção, conseguiu acertar a cabeça de alguns de seus algozes para proteger o animal. Dois lhe afastaram do cachorro e após um soco no estômago e outro, perceberam que se tratava de um cego.

- Ah é. Então pelo menos ele não vai ver isso.

Um deles pegou uma pedra enorme para esmagar o cão que ainda se debatia na calçada com o chute, já que ambos, cachorro e dono, se alimentavam mal. Laurentino, sendo segurado pelos mais fortes do grupo, gritou pelo nome do seu bichinho. Foi então que ao ouvirem um barulho de sirenes o bando, imaginando que a polícia se aproximava, fugiu deixando a pedra e o morador de rua no chão.

Laurentino foi tateando o solo seguindo o cheiro familiar do cachorro e ao sentir os pelos do animal, o abraçou chorando:

- Falcão! Meu Falcão! Como poderia viver sem você?

A vida estava ficando cada vez mais sofrida e as pessoas cada vez mais distantes. Foi quando no mês chuvoso de setembro, Laurentino, após o cão puxar-lhe a barra da calça para que o seguisse, foi andando, guiado pelo som dos latidos do cachorro e, lentamente, verificando tudo através de sua bengala improvisada, encontrou um lugar abandonado que Falcão havia achado. Era uma casa quase sem teto e paredes destruídas, onde o mato crescia alto e tomava tudo, exceto num pequeno espaço onde ele dormiria com Falcão, ficando assim abrigados. Protegidos da chuva e escondidos, como duas crianças que se escondem nos escombros de uma guerra.

O tempo foi passando e o animal começava a ficar mais magro, assim como seu dono. Laurentino comia o que no lixo tinha, já que naquela época de chuva quase ninguém lhe dava nada e ele não poderia se expor ao frio para pedir esmolas. Passava dias naquele sobrado velho e, por mais de uma vez, escolheu dar o alimento para o seu cão de que se alimentar.

Preferia dormir. E dormindo, sonhava.

As poucas imagens, cores, formas e lembranças que tinha foram se apagando aos poucos devido à cegueira. Seu mundo era escuro, movido por sons, gostos, toque e cheiro. Sons barulhentos demais, “nãos” e “sai daqui” barulhentos demais. Gostos que nem sempre eram doces, por vezes amargos. Toques que lhe faziam sentir na pele a maldade do mundo e a crueza da vida. E um cheiro forte, tanto das suas roupas, quanto do pecado da humanidade.

Contudo ainda nutria esperança nesses sentidos. E isso era produzido por Falcão. Seus latidos, suas lambidas, seu cheiro de vira-lata e a comida que partilhavam como uma última ceia. Neste fragmento de felicidade se completava. Era quase como se enxergasse um admirável mundo novo, como um sol de esperança ao término de uma tempestade.

Por isso sonhava. Cria que um dia, como um relâmpago, um novo caminho iria brilhar.

Numa noite, acordou em meio aos trovões. Do céu e do estômago que roncava. Não sabia por quanto tempo dormira. A fome era lancinante e lhe espetava o abdômen como agulhas. Tateou o chão molhado pela chuva que invadia o lugar com seus pingos a procura de Falcão. Não o encontrou. O susto lhe fez tremer. Chamou pelo animal. Nada.

Desesperado, se levantou, pegou sua bengala e partiu aos tropeços em busca de seu amigo.

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Enquanto gritava pelo nome do cachorro, as gotas de chuva espancavam sua cabeça e o frio lhe surrava o corpo. Os pés não eram lavados pela água que escorria, apenas deixava seu passo mais vacilante e se deparava com maiores dificuldades para assimilar o solo com a ponta do cabo de vassoura. Não havia muitos carros na rua. Nenhuma viva alma passava por lá.

Andou. Gritou. Sofreu.

Não pôde caminhar por muito tempo. A fome era extrema. A fraqueza, insuportável de tal modo que se ficasse mais um dia sem comer sentia que morreria ali mesmo.

- Falcão!

Encostou-se a uma parede qualquer. Cansado, com os braços desprotegidos e a roupa já pesada de tanta chuva. Uma tempestade de emoções tristes explodiu no peito e vazaram pelos olhos aos soluços. Era o fim... Pensava.

- Falc...

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De repente viu... Um ponto luminoso se aproximar voando. E mais um. E outro. Vários.

- O que é isso?

Suspeitou estar delirando de fome ou que a hipotermia já havia dado o abraço da morte. Contudo, era verdade. Objetos pequenos e cintilantes começaram a chegar diante de seus olhos um a um, até se formar um enxame. Não de abelhas, mas de insetos que brilhavam.

Eram vaga-lumes.

Chocado tanto pelo fato de ver aqueles invertebrados durante a chuva, quanto por ver propriamente, ainda acreditava estar sonhando ou delirando. Até que ouviu um latido perto de si.

Era Falcão.

Emocionado se agachou esperando que o animal viesse até ele como de costume. Não aconteceu.

Porém, uma voz o chamou pelo nome que ninguém ali sabia:

- Laurentino!

Assustado e sem poder ver, tomou seu cabo de vassoura como defesa:

- Quem está aí? Eu sou cego. Por favor, não me machuque.

A voz repetiu:

- Calma, amigo de tantos anos. Ninguém lhe fará mal. Pelo contrário. Estou aqui para te ajudar.

- Quem está falando?

- Sou eu. Falcão.

- Não é possível! Cachorros não falam!

- E cegos não enxergam vaga-lumes, certo?

Estarrecido com a resposta, manteve o silêncio.

- Algumas coisas são estranhas mesmo, mas é como o caminho dos relâmpagos. Incertos. – dizia a voz.

- Por que está me dizendo isso? O que está acontecendo?

- Diminua suas perguntas, aumente sua fé e siga-me. Você vai mudar de vida! Mas antes preciso te mostrar algo.

Foi então que Laurentino, em seu mundo envolto de trevas, viu os insetos se juntarem e formarem um cachorro feito do brilho dos vaga-lumes.

- Venha!

Enxergando tão somente aquilo, com seu cabo de vassoura em mãos seguiu o animal de pontos que piscavam e iluminava onde passasse. Dessa vez o cachorro não latia. Seu resplendor que guiava a Laurentino como lâmpada para seus pés num caminho escuro.

Ele entregou-se ao mistério que se manifestava diante de seus olhos e firmou os passos, antes duvidosos, no chão. Num dado momento percebeu que a chuva começava a ficar morna.

Falcão ia em direção ao parque arborizado. Atravessava avenidas, ruas, e virava esquinas. Já o mendigo, ao perder de vista o cão luminescente, estacou num ponto da calçada.

- Não. Deve ser coisa da minha cabeça!

De súbito, sentiu sua mão esquentar e ao olhar para baixo percebeu que em seu braço estava coberto por inúmeros insetos brilhosos que seguravam firme em sua mão. De repente, surgiu mais deles. Tantos que o fez contemplar quando formaram a silhueta perfeita de uma mulher.

- Laura?

Não obteve resposta. Nem precisava. Atravessou seguro a avenida.

Essa e tantas outras. Ruas e esquinas foram perpassadas por Laurentino sem que ele se lembrasse da fraqueza de seu corpo desnutrido.

Reparou que, na medida em que caminhava ladeado pela moça feita de vaga-lumes, as calçadas, as placas, o semáforo, os pontos de ônibus, as lojas e os postes de luz começavam a serem envolvidos por dezenas, centenas, milhares de pirilampos que circundavam toda aquela região.

Uma verdadeira infestação luminosa que voavam e desenhavam a cidade para Laurentino que, maravilhado, tudo contemplava.

Chegando à entrada do parque arborizado, lugar onde dormiu por muitos meses até ser expulso de lá pelos outros mendigos, temia ser rechaçado novamente. Hesitou em entrar até Falcão sair de dentro e dizer algo estranho:

- O que você prefere? Chamar o fim de previsível ou inevitável?

Sem entender o que o cachorro dizia, somente entrou. E lá dentro se deparou com uma das cenas mais lindas de sua vida.

As arvores todas brilhavam. Cada folha, cada galho. Todo o parque estava repleto de vaga-lumes. Tudo resplandecia e piscava como se fossem luminárias de natal. Conforme ele andava no chão foi se formando uma trilha luminosa feita de insetos que piscavam. Foi quando sentiu a chuva ficando mais quente a cada gota e o cheiro que exalava era do café fresquinho que sua mãe fazia quando ainda moravam no Nordeste. Depois para os alimentos. O frango ao molho que cozinhava na panela de pressão e os temperos que colocava. Até começar a exalar um odor particular. Familiar demais. A fragrância natural da pele e dos cabelos de sua genitora. O perfume do amaciante nas roupas que ela usava e neles o amor da mulher que o colocou para dormir inúmeras vezes cantando “Se Essa Rua Fosse Minha” e “Brilha, Estrelinha”:

- Ma... Mamãe?

O barulho das gotas não era mais de água caindo, mas risadas de crianças brincando na beira de um rio, sussurros e conversas. Vozes e mais vozes ecoavam através do som da chuva. Vozes de seus irmãos:

- Manos? Maninhas? São vocês?

Suas lágrimas começavam a se misturar com a chuva. Aquelas sensações faziam suas poucas lembranças alegres do passado mais fortes que as dores do presente.

- Ponha a língua para fora, Laurentino. Anda. – Falcão dizia.

- Pra que?

- Apenas ponha.

Ele pôs e as gotas caíram-lhe na língua. O gosto era de chocolate. Mais alguns passos era de pão de queijo. Mais alguns passos era de leite com achocolatado, costela, bisteca, pizza, pudim. Pela primeira vez experimentou água com sabor de comida. Comidas essas que ficavam em todos os estabelecimentos por onde pediu alguma coisa e não recebera nada. Apenas fora fustigado pelo dono do local e pelo cheiro do alimento. Comidas essas que nunca comera em toda sua vida.

Agora não. A chuva tinha o gosto que ele quisesse.

Era morna como um banho quente de uma ducha elétrica, coisa que jamais tivera. No lugar da Paraíba que moravam não tinha tais luxos e se banhavam com água do rio. Na casa de aluguel a resistência do chuveiro estava queimada.

Desta vez o calor lhe aquecia corpo, alma e espírito.

- Olha para cima, Laurentino.

Ele não ouviu a principio. O mendigo saltava de alegria em meio ao parque iluminado e refeito pelos pirilampos que voavam. Com as vozes e risos de seus irmãos, com o gosto da comida, com os cheiros de sua mãe, com a temperatura em sua pele. Estava como numa Celephais!**

- Meu Deus! Que lindo!

O cachorro latiu. Laurentino se virou para a figura canina feita de pontos que brilhavam:

- Olhe para cima, dono.

Laurentino ergueu os olhos. Caiu de joelhos com o que contemplou.

Estava chovendo vaga-lumes.

O céu inteiro brilhava como se fosse feito de ouro. As milhões de gotas que caíam eram pirilampos. Enquanto olhava, a chuva foi alterando de cor. Algumas gotas ficavam verdes, outras lilás. Vermelhas, rosas, azuis, brancas, roxas, marrons... multicor.

Toda a tempestade se transformou numa aquarela.

Os relâmpagos no céu chicoteavam as nuvens cintilando fluorescência e destilando marcas de um brilho intenso, como uma aurora boreal. Laurentino gritava de alegria diante do espetáculo. A alegria era tanta que lhe faltava o ar.

- EU TÔ ENXERGANDO! EU TÔ ENXERGANDO!

Falcão se aproximou dele, o lambeu a face com uma língua brilhosa e disse:

- Obrigado por tudo meu amigo.

E latiu.

Ao latir, Laurentino desmaiou e aquele mundo, feito o ligeiro resplendor de um raio, se apagou.

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Ao acordar, uma forte dor de cabeça lhe sobreveio. Sentiu que estava deitado numa coisa macia, diferente do chão duro da calçada ou de um papelão. Tateando o local, percebeu um lençol fino, que não estava com as mesmas roupas e nem tinha o mesmo cheiro. Havia uma bolsa plástica de onde um pequeno cano estava introduzido em seu braço por uma agulha.

Entendeu: estava em um hospital.

Repentinamente alguém abriu a porta do quarto. Escutou uma voz que parecia com a voz de Falcão:

- Está tudo bem, amigo?

- Falcão, é você? Onde estou?

- Acalme-se. Está seguro agora. Sou o doutor Eduardo, médico do hospital de Santa Luzia. Você foi encontrado caído por um grupo de pessoas que estavam fazendo uma obra de caridade num parque arborizado perto de uma avenida no centro. Trouxeram você pra cá às pressas. Vamos cuidar bem de você. Temos um lugar para receber pessoas desabrigadas. Por pouco não te perdemos essa noite. Você quase teve um infarto devido à desnutrição. Sorte sua te acharem ali. Aliás... estranhamente você estava coberto por várias moscas, algumas agarradas à pele. Outras dentro do nariz, boca e ouvidos. Pareciam que não queriam sair.

Sem entender do que se tratava, perguntou:

- Mas doutor. E meu cachorro? Onde está meu Falcão?

O médico fez uma pausa:

- Olhe... Está tudo bem agora. Você fez o que podia para sobreviver e eu não te julgo. Vou deixá-lo descansar.

Somente depois de um tempo que Laurentino entendeu tudo, sentiu um aperto no peito, colocou as mãos na boca e pôs-se a gritar e chorar:

-NÃÃÃOO!!!

Compreendeu porque sua bengala estava quebrada, só não conseguiu ver o vermelho na parte afiada do cabo. Sua cegueira impediu que percebesse a água da chuva misturada com sangue no chão do sobrado que dormia. Agora sabia porque conseguiu sobreviver por mais três dias até chegar ao parque arborizado e apenas ali desmaiou de fome.

Sua última refeição desesperada, havia sido seu amigo, Falcão.

TEMA: NOITES DE TEMPESTADES BRASILEIRAS

obs: se você acha exagerado o que fiz, veja essa matéria:

https://www.gazetadigital.com.br/editorias/brasil/mendigo-matava-e-comia-cachorro-para-saciar-fome/81728

*Grandes são os desertos... poema de Álvaro de Campos

**Celephais... Cidade paradisíaca e dourada do conto de H. P. Lovecraft

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 18/12/2020
Reeditado em 24/12/2020
Código do texto: T7138271
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