Check

O sol que iluminava o interior da cabana onde o Fred morava não era suficiente para afastar o frio do outono. As árvores, altos pinheiros ainda verdes que ao passo do vento faziam dançar sombras sobre o telhado cheio de folhas mortas traziam um ar tranquilo e ameno.

Era a vida de Fred, tranquila e amena, após longos anos de funcionalismo público e de exibicionismo político.

Ele contemplava fixamente a paisagem belíssima daquela ordinária casa de campo: as montanhas, ao norte, com seus traços únicos do regionalismo sulista se findavam somente no azul claro do céu sem nuvens.

Entrou. Esperou mais alguns segundos até ouvir o borbulhar da água pronunciar que um café seria servido. Tomou quatro xícaras sem um grão de açúcar e não comeu nada. Fazia tempo que não sentia mais fome.

Fazia tempo que não sentia nada, para falar a verdade, apenas aquela maldita dor de cabeça que ia e vinha, como um convidado inconveniente que era seu novo vizinho, Walter.

- Fred! Como tem passado?

Sempre com suas camisas de seda muito floridas coloridamente, chapéu coquinho, bermudas claras e sandálias, o vizinho fazia questão de combinar as diversas cores dos óculos escuros com a cor da flor na camisa do dia, sabe-se lá o motivo. Não havia frio ou calor para ele, aparentemente, pois desde que Fred se mudara definitivamente para a cabana há dois meses o vizinho estava sempre no tropicalismo animado. Dessa vez ainda trazia algo.

- O mesmo de sempre, obrigado. E você?

- Ahh, você sabe, eu estou sempre muito bem! Trouxe o jornal da cidade para te entreter por aqui.

Deixou o embrulho em cima da mesa e se serviu de um café, retirando os óculos para observar Fred com mais frieza. Os olhos muito escuros sincronizavam bem aos passos de Fred na medida que ele pegava o jornal dobrado e colocava no armário sem dizer mais nada.

- Parece que anda cabisbaixo demais, meu amigo! Vai arrumar alguma coisa para fazer lá na cidade, sei lá, sair um pouco.

- Estou bem, Walter, só quero relaxar um pouco. Sozinho.

O vizinho não se incomodou.

- Bom, se assim você diz, assim será! Só vim lhe dar as boas-vindas novamente. Sabe, aqui no meio do mato tem muita gente estranha e que não liga para as boas relações sociais. Quero que saiba que pode contar comigo, está certo?

Era a quarta vez que Walter falava aquilo desde que Fred havia se mudado.

- Claro, pode deixar.

- Então está feito. Vou continuar minha caminhada. Tome um vinho, vai lhe trazer a paz que precisa.

Walter recolocou os óculos escuros e saiu, desaparecendo tão rápido quanto havia chegado.

Naquela noite, Fred não tomou vinho, e não tomaria em nenhuma outra, nem leu o jornal. Ele nunca havia entendido algumas coisas que Walter fazia, mas o vizinho sempre havia sido simpático, prestativo e solícito desde a mudança, o que não dava confiança para Fred questionar essas visitas rápidas, indesejáveis; como se fosse um cachorro doente que com certeza iria morrer e cujo dono se preocupava somente o suficiente para deixar a consciência limpa.

Estranho, mas tudo bem, ele tinha outras coisas para se preocupar.

Na pequena cabana não havia televisão, rádio, internet, telefone, celulares. Nada. Nem livros ou revistas, somente o básico para uma sobrevivência simplória. Então, quando o tédio chegava, tudo que Fred fazia era acender um fogo na lareira e ficar contemplando-o. Quando muito, mexia na casa para alguns reparos e até chegou a planejar reformas, mas a recente e turbulenta mudança da vida urbana para a vida sossegada ainda deixava as marcas da transição que exigia somente o repouso, afinal, ele já não era tão novo assim mais.

Uma tábua solta ali, um parafuso frouxo lá, e as dores de cabeça só aumentavam. Pensou em procurar um médico, mas logo afastou a ideia. Tinha remédios que tomava já com frequência e, por conta própria, dobrou a quantidade para ver se elas diminuíam.

Alguns dias se passaram e a dor de cabeça começou a incomodar até os olhos. Chegou a ficar deitado por quase dois dias inteiros e mesmo assim, nada de chamar ou ir a um médico.

Ouviu os passos de Walter no pedregulho da entrada da cabana.

Lá vem em ótima hora.

- Alguém em casa? Alguém? Terra chamando? – riu.

- Estou no quarto, pode entrar!

Já tinha entrado. Olhou Fred deitado na cama e fez seu habitual movimento de tira-óculos para avaliar o vizinho.

- Ual, você está péssimo, o que houve?!

- Dor de cabeça, é só isso, não se preocupe.

- Dor de cabeça? Está brincando comigo? Você precisa de um médico, seus olhos estão vermelhos como sangue! Caiu em algum lugar?

Não havia percebido que alterações visualmente físicas estavam começando a apontar no seu organismo, mas pelo espanto de Walter, aparentemente alguma coisa o havia acontecido mesmo.

- Não caí, nem bati a cabeça, se é o que pensa. Acho que estou só cansado da rotina que eu tinha, entende? Minha vida nos últimos anos foi muito... problemática.

- Problemática, você diz?

Walter fez um som com a boca e mostrou uma feição reflexiva, mas logo percebeu que Fred não estava disposto a falar no assunto.

- O que trouxe para mim hoje? – perguntou sem delongas.

- Ah, meu garoto, não trouxe nada, mas vou agora mesmo buscar um médico para você. Ou acha melhor irmos até o hospital na cidade?

- Não. Sem médicos, sem hospital.

- E você é quem agora para se curar sozinho? – riu novamente.

- Vou melhorar.

- Sei, sei, só precisa descansar, não é mesmo? Já entendi... Fred, Fred, vai acabar como aqueles doidos que acreditam que não precisam de remédios? Conheço gente que se matou por menos...

Mas Fred não respondeu, apenas fechou os olhos e queria que aquele sujeito inconveniente desaparecesse da sua frente como numa mágica. Algo, contudo, fez Fred se atentar. A voz de Walter havia mudado de tom, como num sarcástico comentário final, sem piedade ou compaixão com a situação, algo que talvez ele próprio tivesse provocado com sua falta de vontade de receber ajuda.

- Fique bem, amigo. – disse e se foi.

- Obrigado. – respondeu sem jeito, fechando novamente os olhos para tentar dormir enquanto a madrugada se aproximava.

Fred pensou que estava sonhando quando na manhã seguinte tentou abrir os olhos e não conseguiu enxergar nada.

Tentou esfregar com as mãos para se sentir vivo e, glória, estava acordado, de fato, mas cego por completo.

Escuridão total, sem um brilho mínimo de luz, como se não houvesse olhos.

Gritou e respirou.

Gritou mais alto e começou a chorar, sem sentir se caiam lágrimas ou perceber se elas eram vermelhas.

Foi se levantar e a tontura lhe veio à cabeça, com aquela dor – aquela filha da puta de dor – de cabeça que nunca ia embora.

Tentou apalpar alguma coisa para se firmar e percebeu que estava ainda no quarto onde dormira na noite anterior, mas por algum motivo, estava completamente cego.

Chutou a cadeira da cozinha, o que fez doer os dedos dos pés, e tentou sair para a varanda para ver se alguma luminosidade mínima lhe sensibilizava a visão, mas foi em vão. A escuridão permanecia.

Pensou nela, na garota. Era inevitável, e lá vinha o vizinho novamente voltando para sua caminhada.

Agora não, porra. Por favor, Deus, agora não, esse filho da...

- Fred, um ótimo dia, não? Espere, o quê...

- Sim, eu sei Walter, não estou bem, você já viu. Olha, preciso te falar uma coisa.

Walter parecia perplexo, mas Fred não soube dizer a cara de espanto que ele estava no momento, só sabia que ele havia tirado os óculos, com certeza.

Fred procurou uma cadeira e se sentou. Ocorreu-lhe então que se Walter fosse um ladrão ou algo do tipo, teria disponível tudo que quisesse roubar neste exato momento. Isso justificava essas visitas incoerentes, como um planejamento para o ato, mas as ideias se dispersaram logo. Não faria tanto sentido assim. E Fred não tinha nada para ser roubado, nem mesmo um carro velho.

- Está bem, estou ouvindo.

- Estou com alguma infecção, alguma doença, talvez algum inseto tenha me picado ou alguma ferida no meu cérebro se agravou.

- O quê? Como assim?

- Não estou enxergando nada, não sinto meus olhos e estou com enxaqueca há algumas semanas, desde que me mudei para cá, desde que...

Então lembrou-se de quando tudo havia começado. Sim, desde a mudança para a cabana.

- Isso é nítido, e olha que eu te avisei para ir buscar ajuda. Seus olhos... estão horrorosos Fred, me deixe ajudá-lo.

Fred não respondeu nada. Não tinha respostas. Novamente se lembrou da garota.

- Walter, você tem sido um bom amigo desde que me mudei. Ajudou-me aqui na cabana e sempre tem aparecido para ver se está tudo bem. Eu aprecio isso, de verdade, mas tem certas coisas sobre mim que você ainda não está preparado para saber.

- Larga mão de ser idiota Fred, você precisa confiar mais nas pessoas, principalmente em períodos difíceis da nossa vida. Não me interessa o que você faz, fez ou deixa de fazer, eu não ligo. Mas quando me mudei para cá, recebi ajuda de muita gente e hoje, bem... não posso fazer nada por elas. Sinto-me na obrigação de ajudar quem precisa.

Aquela comovente conversa sincera trouxe tranquilidade a Fred.

- Tudo bem. Tudo bem, veja se pode arrumar alguém para dar uma olhada nos meus olhos, pode ser?

- Sim, claro, conheço um médico que...

- Não, alguém daqui da região que não trabalhe na cidade. Alguém que entenda das ervas medicinais ou qualquer merda do tipo.

- Ervas medicinais? Está ouvindo o que está dizendo? Você vai precisar ir para o hospital meu chapa.

- Não vou na cidade, não agora.

- Você quem sabe, vou ver o que posso fazer, conheço um ou outro que pode ajudar também.

E assim uma longa e solitária noite de sofrimento e dor Fred passou ouvindo a chuva bater na janela. Não conseguiu acender o fogo, nem tomar café. Walter havia deixado ao alcance algumas bolachas e garrafas de água, que foram consumidas e deixadas com as embalagens abertas.

No dia seguinte, sentido uma curiosa esperança de encontrar Walter, o vizinho não apareceu.

Fred precisava de remédios.

No outro, também nada do vizinho.

Precisava urgentemente de remédios mais fortes e algum médico para lhe propor exames e aliviá-lo da dor de cabeça e nos olhos.

Passaram quase três semanas e nada do vizinho dar as caras.

Morfético. Quando mais preciso...

Pensou até em sair por conta própria para achar ajuda, mas naquela deplorável situação não iria conseguir nada além de se enfiar em alguma valeta rural e ficar ali eternamente, até porque a cabana de Fred possuía a de Walter como vizinho e nada mais além de floresta e uma estrada abandonada que não ligava nada a lugar nenhum após o governo decidir que aquela inóspita região de nada mais tinha a oferecer.

Chamou pelo amigo, duas vezes e perdeu as forças. Desmaiou e caiu no chão.

Não suportava mais aquela situação. Quando voltou por si, sentiu que estava deitado na cama com alguém no quarto, fazendo barulho de mastigação de bolachas.

- Aí está a bela adormecida!

Walter

- Onde esteve? Já faz um século que...

Pensou ter ouvido o mastigar cessar por alguns instantes, e logo percebeu que havia se enganado. Era de fato Walter que estava ali, reconheceu pela voz, mas algo além disso o atormentava mais que a raiva que sentia no momento. Algo incomum como tudo nos últimos dias lhe estavam acontecendo, exceto pelo fato que era uma nova dor; uma nova sensação ruim e de pavor.

Desta vez, eram seus dedos das mãos. Todos eles, os dez. Ardiam como brasa, não podia ver mas estava provavelmente sem as unhas, ou talvez sem os próprios dedos, não soube dizer. Só sentiu que a dilaceração o aniquilava.

E novamente, pensou na garota.

- Como está os olhos? Você estava desmaiado na cozinha quando cheguei.

Fred não conseguiu responder de imediato. Ainda estava aflito e pensativo. Com raiva, com medo e com uma certeza pavorosa: estava definhando por completo, lentamente.

- Estão melhores. – mentiu.

- Isso é bom. Muito bom. – Voltou a mastigar algumas bolachas e ouviu-se um engolir de água por uma garganta sedenta. – Fred, desculpe a demora. Não encontrei ninguém que poderia ajudar nos seus... termos.

- Meus termos?

- As pessoas perguntam e eu tenho que responder, meu caro. – disse Walter novamente com aquela voz fria e sarcástica, diferente dos momentos que dava a impressão da compaixão.

- Foda-se. Não me importo, quero ficar sozinho.

Ficou. Walter foi embora sem dizer mais nada, o que fez com que Fred ficasse pensando por alguns breves momentos se havia sido muito rude com o amigo, mas a sensação de formigamento nas mãos ultrapassava qualquer relação de amizade que viria a ter naquele momento.

Tentou tocar uma mão com a outra para ver o que sentiria, mas mal conseguiu levantar os braços. Depois de muito esforço, finalmente percebeu que de fato alguns dedos estavam faltando.

Alguns não, todos mesmo.

Nem os ossos estavam ali mais, só os tocos dos dedos.

Gelou o coração e pensou na garota pela milésima vez no dia antes de conseguir dormir, mas, por fim, conseguiu, pelo menos por algumas poucas horas.

Quando acordou tentou virar a cabeça para os lados e erguê-la. Pelo menos isso ainda podia fazer. Sentiu os músculos do pescoço se retorcerem em câimbras e logo se pôs na posição de relaxamento.

Ouviu atentamente os barulhos do lado de fora e nada se movia, nada parecia vivo. Era um lugar perfeito, um paraíso total para o descanso depois de tudo que havia passado. Uma conclusão de que Fred já se afirmava várias vezes.

Mas precisava sair dali. Sair daquela situação ridiculamente patética. Havia contraído alguma doença, disso não havia dúvida alguma, mas mesmo para os pobres mortais como Fred havia redenção e cura.

Demorou cerca de vinte e cinco minutos para ele se levantar, suando e aos berros.

Não enxergava.

Não sentia as pontas dos dedos das mãos.

E a dor de cabeça martelava cada milímetro do seu cérebro.

- Ei, Fred! Está aí? – o vizinho chegava de novo.

Não pôde dizer que horas eram. Supunha que faria sentido ser madrugada, mas não conseguia ter certeza, ainda mais que as visitas inconvenientes nunca chegaram a este ponto anteriormente. Talvez fosse fim de tarde, talvez não.

Tentou falar, mas não conseguiu.

- Fred? FRED? FREEEED?

Ouviu Walter se aproximar do quarto.

- Você está magrelo, cara! Não tem conseguido comer?

- Walter, o quê você...? Você não viu como as minhas mãos estavam antes? Aliás, o que você está fazendo aqui? O que você... O QUÊ VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI?

- Calma Fred, não precisa gritar! Estou preocupado com você! Você não quer ir ao médico, não tenho culpa se não existe ninguém aqui para te ver.

- O QUE ESTÁ ACONTECENDO? QUEM É VOCÊ?

- EU? – riu alto, em um momento que não precisava de risos.

- Walter, me explique!

- Tudo bem, chega disso, você está maluco já. Vamos embora daqui, está bem? Vou te levar. O que você fez nas mãos?

Fred tentou caminhar em direção ao amigo para agarrar o pescoço com os tocos dos dedos, não se importando com a dor mais. Aquele tom sarcástico tinha que parar de uma vez por todas.

Conseguiu dar dois passos e tropeçou em alguma coisa, caindo no chão novamente e sentindo as mãos como se alguém tivesse acabado de jogar óleo quente.

Percebeu que Walter soltou um leve riso e não disse nada.

Então Fred tentou falar. Falar qualquer coisa que explicasse tudo, mas não conseguiu. Apenas se ouviu enroscar nas palavras.

- O que disse? Não te ouço!

Novamente, uma nova cacofonia de palavras sem sentido algum tentou sair da boca de Fred mas algo havia travado sua língua.

Gaguejou e soluçou em novo espanto. Era inútil, sua língua estava enroscada.

Percebeu Walter se abaixando para chegar mais próximo e tentar ouvir, mas Fred não conseguia mais.

Se pudesse se ver em um espelho, provavelmente teria escolhido se suicidar. Era melhor.

Walter então gentilmente passou a mão na cabeça de Fred.

- Não consegue, né? É difícil quando não se tem mais uma língua na boca, Fred.

A voz de Walter era fria como gelo. Crua, sem nenhum tipo de delicadeza perante a situação e nem a forma que exigia a boa amizade entre os dois. Fred percebeu também, subitamente, que o hálito do vizinho podia ser sentido dali. Um cheiro de podre, forte, quase que repugnante.

Mas o desespero de tentar falar e não conseguir tornava aquele cenário ainda mais devastador para Fred. Sentia-se como se estivesse tentando mergulhar e não conseguindo mais voltar para pegar fôlego e respirar. Um mergulho direto ao abismo do silêncio que chegava até as profundezas do pânico.

Tremia, suava e não se controlava mais. Não havia mais forças.

- Ainda não te ouço, Fred. Quer tentar de novo, sim?

Uma risada fraca e rápida.

Fred podia sentir que Walter estava gostando daquilo, de alguma forma satanicamente impiedosa. Tentou inutilmente mais uma vez perguntar.

O QUE ESTÁ ACONTECENDO??? WALTER, ME AJUDE!! NÃO CONSIGO FALAR!

Como se o vizinho pudesse ler os pensamentos, respondeu calma e lentamente, palavra por palavra bem devagar, como se falasse para uma criança de cinco anos, como se falasse para uma garota.

- Eu não posso te ajudar mais. Eu não posso.

NÃO!! VOCÊ TEM QUE ME AJUDAR, NÃO ENXERGO, NÃO CONSIGO FALAR, NÃO SINTO MINHAS MÃOS!! WALTER!

- Sim, sim, não consegue, Fred. Você não conseguirá mesmo, assim como ela não consegue mais, por sua culpa, não é?

O QUÊ? DO QUÊ... DO QUÊ VOCÊ ESTÁ FALANDO?

Mas Fred sabia. Sabia perfeitamente bem do que o vizinho estava se referindo, e aquela roupa tropical já não fazia mais sentido para Walter, pois ali já não era mais o amigo que estava lhe acariciando os cabelos e falando com uma voz suave, quase que inocente.

- A garota, não é, Fred?

Fred podia sentir o sorriso branco de Walter lhe olhando enquanto ele agonizava. Os olhos escuros o encarando fixamente, em todas as tentativas idiotas de tentar falar alguma coisa ou se agarrar a algo.

NÃO FAÇA ISSO COMIGO!

- Eu não escolho o que fazer com as pessoas, Fred. As próprias pessoas pagam pelos seus pecados.

A mão suave agora parava de acariciar os cabelos. Deu dois tapinhas na bochecha direita de Fred e o homem humilhado no chão ouviu Walter se levantar para se preparar para ir embora novamente, talvez dessa vez para sempre.

NÃO, SEU FILHO DA PUTA, NÃO VÁ EMBORA ASSIM! ME MATE ENTÃO, SEU DESGRAÇADO, É ISSO QUE VOCÊ QUER, NÃO É? É ME VER SOFRER? ENTÃO ME MATE DE UMA VEZ!

Walter olhou para o relógio de pulso que marcava três da tarde, recolocou os óculos escuros e deu uma última olhada em Fred que por sua vez provavelmente nunca mais se levantaria.

- Que prazer a Morte teria se não houvesse sofrimento, não é Fred? Você sabe bem disso. Veja, vou escrever.

Walter pegou um caderninho de bolso, arrancou uma página e pegou uma caneta.

- Você consegue abusar de uma adolescente rebelde depois de uma bebedeira descontrolada, check. – Anotou. - Mas se ela sacou tudo e ameaça te denunciar, é melhor jogar algum ácido nos olhos dela para ela ficar mais... domesticável, não é? Check. Assim ela não vê mais nada e fica mais fácil de ser manipulada para os próximos abusos, até porque seria muito difícil ela ir buscar ajuda sem conseguir enxergar um raio de luz! Tudo bem, tudo bem! A deep web está aí para isso. Mas a melhor parte, a que eu considero como a melhor parte, Fred, é quando você corta todos os dedos da mão para que nem um telefone ela consiga digitar! ISSO. FOI. FANTÁSTICO!

Check.

Walter, a Morte personificada, sentia o prazer de uma vingança. Sentia cada gota de prazer sendo extraída do sofrimento exposto de Fred. Olho por olho, língua por língua.

E Fred estava exausto. A Morte havia vencido com sua sátira, sua arrogância e sua simplicidade. Não tentou falar mais pois sabia que não conseguiria de qualquer jeito.

- Mas de mim ninguém escapa. Cedo ou tarde, eu chego para todos. Enfim, TENHA UMA ÓTIMA TARDE, FRED!

E foi embora, batendo a porta. Com suas sandálias e chapéu coquinho, assoviando e sorrindo aos pássaros.

Para Fred, era o fim, ele sabia disso. Iria ficar ali por mais algumas horas e seria morto, como a garota, sua garota, havia sido. Só restava uma pancada na cabeça, qualquer coisa como um armário caindo ou até mesmo a cadeira, e tudo estaria resolvido, exatamente como ele havia feito. Exceto pelo fato que ela havia sido enterrada depois que a ressaca passou, e ele, provavelmente seria achado pelos policiais em algum momento, talvez até mesmo por algum cachorro do mato que levaria um pedaço da sua carne para o centro da cidade.

Sentiu a mente se esvaziar, estava amolecendo-se, distanciando-se e partindo para sempre.

Merecia, de fato, da maneira como aconteceu.

A escuridão eterna.

***

Abriu os olhos lentamente.

Ouviu passos rápidos no corredor.

Sentiu cheiro de hambúrguer sendo queimado.

De súbito, se levantou. Estava no chão da cozinha, com a boca sangrando: havia batido no chão.

- Papai, papai! – ouviu uma jovem e infantil voz chamar. – Está tudo bem?

- Eu... Eu... devo ter desmaiado, está tudo bem?

- Está sim, mas você queimou os hambúrgueres!

Fred não ouviu mais nada. Levantou-se, limpou o sangue com um guardanapo. Olhou no relógio, devia ter desmaiado por alguns segundos apenas.

No armário da cozinha, uma garrafa de vinho.

No bolso da camisa, um bilhete com Check.

Lucas Restivo
Enviado por Lucas Restivo em 23/12/2020
Código do texto: T7142690
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