A LENDA DO BOTO.

Num dos inúmeros braços do rio Amazonas, a pequena vila de Matrinchã aguarda a chegada do barco Estrela da Manhã. Ele vem de Manaus e traz provisões e remédios para a população ribeirinha. A criançada brincando nas palafitas. As lavadeiras e seus afazeres. O mercado de peixes. Seu Joca chega em casa com uma tartaruga, que vai virar sopa. Ele ajeitou o boné ao ver Delzuite. -"Eita que Deuzinha está desabrochando! Tá uma flor de formosura que só!" A mãe da moça espia pela janela do barraco. Seu Joca fica sem jeito. -"Olhe, Zefa. Peguei uma tartaruga nos igarapés da aldeia Tapuia. Vou mostrar a Deuzinha. Ela ama sopa do bicho!" A moça de dezoito anos se aproxima. Ela dá um beijo no rosto de Lucas, seu colega de escola. -"Tarde, filha. Teremos sopa de tartaruga! Você gosta!" A moça colocou os cadernos sobre os seios. Joca passou a língua nos lábios. Ele engoliu em seco. -"Tarde, Joca. Que bom!" O velho pescador fez cara de poucos amigos. -"Que bom? Só isso, Deuzinha? Fui até a aldeia de barco e é assim que me agradece?" A moça acariciou o ombro do padrasto. -"Valeu, Joca. Merece uma tapioca por isso!" Ela virou as costas e entrou. Ele acendeu um cigarro de palha. Sem tirar os olhos da enteada, gritou. -"Zefa. Vou no Estrela da Manhã pegar seus remédios. Vai querer mais alguma coisa, amor?" A mulher saiu de casa com uma receita. -"Aqui a receita, Joca. É só isso." Ela o beijou. -"Você é um anjo. Meu braço está dolorido." Joca sorriu. -"A noite vou dar uma massagem caprichada no seu ombro!" Na canoa, Joca pensava na enteada. O rio imenso. O barulho do motor. Joca subiu no Estrela da Manhã. As redes. As mercadorias. A tripulação atendendo os ribeirinhos. Joca foi direto a cabine do capitão Almeida. -"Primo. Como vai essa força?" Eles se abraçaram. A cabine do capitão. A vista para o Amazonas. -"Tem coisa boa pra mim?" Joca estava curioso. O capitão pegou duas sacolas. -"Se você também tiver pra mim, fechado!" Joca coçou o queixo. Um sorriso maquiavélico. -"Tenho sim. É precioso como diamante bruto, aliás, bote brutalidade nisso. A menina é lisa, danada e tinhosa. Está se enrrabichando com um amigo de escola, beijinhos! Coisas de aborrescentes. Tudo mais!" O capitão Almeida esfregou as mãos. -"Partiremos amanhã mas poderei protelar por três dias. É um caso especial. Um forró. Faremos um forró a bordo, como em janeiro do ano passado!" Joca sorriu, satisfeito. -"Entendi. Vou espalhar a notícia na vila." O capitão lhe entregou as sacolas. -"Aí têm cinco pacotes de cigarros, carne seca, achocolatado e três chinelos." Joca abriu a mão direita. -"É pouco. A moça vale mais, primo. É arriscado pois Zefa é desconfiada. Posso ir preso se descobrirem! Além disso, é virgem e terei que cuidar do menino." O capitão abriu uma gaveta. -"Quatrocentos. É pegar ou largar!" Joca pegou o dinheiro. -"Fechado!" O capitão foi taxativo. -"Não quero indígenas no baile. Só a gente da vila! Bebidas por minha conta!" Joca chegou em casa. Omitia da esposa que Almeida era seu primo de terceiro grau. -"Troquei os peixes por carne seca e chinelos, Zefa!" A mulher lavava a louça. -"Que bom. Estava mesmo precisando de chinelos novos." Joca foi ao quarto e escondeu o dinheiro em sua caixa de pesca. A enteada fazia a tarefa da escola. Joca ligou o rádio. -"Amo Jorge e Mateus mas está atrapalhando minha tarefa, Joca." O homem desligou o rádio. -"Opa. Me desculpa. É que me empolguei com a notícia que terá um baile no Estrela da Manhã." A moça mordeu o lápis. Zefa ajeitou o avental. -"Eu vou, mãe!" Foi categórica. Zefa não digeriu bem a novidade. -" Ainda é de menor, Zuíte. Você vai só acompanhada de um adulto mas como detesto baile e música alta, esquece!" A moçoila apertou o lápis no caderno. Fuzilou a mãe com o olhar. -"Já sou mocinha. Amo dançar!" Joca riu da cena. Olhou para ver a reação da esposa. -" Por isso. Estará cheio de gavião no baile, querendo pegar minha ratinha. Você não vai e pronto." A noite caiu. Joca no pier, observava a lua enquanto fumava um cigarro. Delzuite veio ao encontro dele. -" A sopa estava divina." Ela fez sinal de positivo com o polegar. Ficou ao lado dele. Joca se arrepiou ao sentir o perfume da moça. Os cabelos encaracolados, ainda molhados. O vestido florido de chita. A boca carnuda, vermelha mesmo sem batom. Os olhos verdes que herdou da mãe. -"Queria ir ao baile!" Joca sorriu. -"Eu também. Adoro ouvir forró." A moça matutou. -"Ei. Você poderia ir comigo. É meu padrasto, Joca." Ela o abraçou. -"Vou falar com sua mãe. Diversão aqui é zero. Tem que aproveitar quando tem. De manhã cedo ela está mais maleável." A moça ficou eufórica. Na manhã seguinte, Joca conseguiu convencer Zefa. -"Deixarei a Zuíte ir com você, desde que voltem às dez da noite pra casa. Olho nela, Joca. Não deixa dançar com rapaz lindo e desconhecido. Pode ser o boto e aí já viu. Moça que dança com o boto, transformado em homem, fica embuchada instantâneamente." Joca abraçou a esposa. -" Só vai ter gente da vila lá. Até os índios foram proibidos de irem. Vão dar cachorro quente no barco. A Zuíte ama cachorro quente." A moça, que ouvia a conversa, pulou de alegria. Delzuite se perfumou para o baile no navio. Joca não tirava os olhos da enteada, num vestido curto. A mãe emprestou os brincos a filha. Joca puxou a canoa pra areia, pra moça não molhar os sapatos. O homem escorregou e caiu sentado. Zefa e Delzuite riram. Zefa se despediu deles. Na canoa a motor, o vento levantava o vestido da garota. Ela segurava o vestido mas mostrava o decote. Joca suava frio e se esforçava para manter os olhos no rio. A tarde se despediu, dando lugar a noite de lua cheia. No barco, Delzuite chamava a atenção. Joca foi a cabine. -" Salve, Joca. Já vi a pequena, uma princesa." Almeida estava eufórico. Ele alisou o bigode. Colocou o quepe de capitão do navio. -" Vou cumprimentar os presentes! Tome um whisky, você merece." Almeida dedicou atenção especial a Delzuite. A música alta, o convés principal lotado de pessoas. Os músicos. Os garçons equilibrando bandejas com garrafas. -" Vamos comer, Zuíte. Você está dançando há horas." A moça concordou. A parte de cima do navio. Uma mesa reservada a Joca. Os garçons passando. Joca tomava cerveja. A moça preferiu um suco de tamarindo. A música de Jorge e Mateus. A moça se levantou e correu para o convés. -"Já volto. Tenho que dançar essa." Os casais dançando. Ela procurou um parceiro. Um rapaz subia a escada para o navio. Ele ajeitou o chapéu branco e se misturou com os presentes. Delzuite puxou uma mulher pra dançar. -" Venha dançar, Florinda. Esses homens só querem beber!" Enquanto isso, Joca colocou sonífero no suco da menina. Almeida se aproximou. -"Perfeito. Tomás e Afonso vão fingir que estão brigando. A gente aproveita e leva a fofura pra cabine!" Delzuite voltava pra mesa quando esbarrou num rapaz. Ele a segurou firme. -"Dança comigo, moça?" Eles se olharam. Delzuite se soltou e saiu correndo. Ela estava corada ao chegar a mesa. -" Joca, você não vai acreditar. Vixe. Tem um forasteiro no navio. Nunca vi moço tão lindo na região. Parecia um anjo, todo de branco, Joca." O homem fez careta. A moça tomou o suco. -" Pareço até buchuda, comi dois lanches." Joca foi a cabine. -"O boto está no navio. Todo de branco, lindo, só pode ser ele. É a hora, Almeida." A um sinal do capitão, os homens iniciaram uma briga. -"Boto, boto. Isso não passa de lenda." Disse Almeida. Tomás deu alguns tiros para o alto. Houve um corre corre das pessoas. O rapaz de terno e chapéu branco, pulou na água, assustado. As pessoas com medo. Uma muvuca. Delzuite adormeceu na cadeira. Almeida e Joca a levaram pra cabine. O luar foi a única testemunha do crime contra a moça. Joca e Almeida riram, satisfeitos, após possuírem a moça dopada. -"Vamos descer a garota pelo bote salva vidas, do outro lado do navio, até sua canoa. Foi bárbaro, Joca!" Quinze para as dez da noite. Zefa não conseguiu dormir, aguardando a volta da filha. Joca finalmente chegou. Zefa foi ao encontro dele. -"A Zuíte dormiu na canoa, de tão cansada. Dançou muito. Tive que insistir pra ela sentar e comer um pouco!" Joca deu uma gargalhada. Ele a tomou nos braços. Zefa o acompanhou. Delzuite despertou apenas às dez horas da manhã. Estava com dor de cabeça. Tinha febre. Zefa fez chá de hortelã pra filha. Ela não foi a escola. Estranhou as roupas íntimas com sangue mas não contou nada a mãe. Seu vestido e seu cabelo tinham cheiro de cerveja e cigarro. Joca cercava a enteada de mimos. -"E agora? O indiozinho Aritana saiu a cara do Almeida. Se esse moleque sair a mim, estou no mato sem cachorro. Zefa me esfola e joga pras piranhas do Solimões." Pensou o velho pescador. Os dias se passaram. Delzuite enjoou com a sopa de tartaruga. Zefa quase desmaiou. -"Tá embuchada, Zuíte?" Ela ergueu o uniforme escolar da filha. -"Parece uma barriga de dois meses, filha. Aquela festa no navio. Fala a verdade, Zuíte. Não te dou umas cintadas por causa de seu estado." Delzuite chorando. Joca fingindo espanto. -"O moço lindo de branco. Não me lembro bem. Ele pediu uma dança." Zefa puxou uma cadeira. Joca pegou um copo de água para a esposa. -" Eu vi um moço pulando no rio. Deve ter sido na hora da briga. Saiu até tiro mas o capitão acabou com a baderna. Foi nesse momento apenas que tirei os olhos da Zuíte." Zefa estava mais conformada. -"Minha filha engravidou do boto. Meu Deus." Zefa espalhou a história da filha e o povo da vila ficou sabendo do fato. Em cada parada, nos vilarejos ribeirinhos, o capitão Almeida continuava fazendo suas festinhas. -"A minha filha foi atraída pelo boto. Ele a engravidou!" Dizia Zefa aos familiares e as suas vizinhas. A gestante Delzuite exibia, orgulhosa, seu barrigão. Kauã nasceu saudável. Cabelos pretos, olhos castanhos claros, como os do capitão Almeida, pra alívio de Joca. Um ano depois, Delzuite molhou os joelhos nas águas do Amazonas. Zefa e Joca a observavam. Kauã estava nos braços da mãe. Um boto cor de rosa se aproximou, nadando perto dela. -"Olhe, Kauã! Pode ser seu pai. Oi, boto! Oi, pai do Kauã!!" Zefa e Joca riram. O animal se afastou. -" Agora sou eu que levo a fama! Tudo é culpa do boto?!" Pensou o parente do golfinho, inconformado. Era quase meia noite quando Zefa ouviu passos. Ela estava se preparando pra dormir. Delzuite e o filho dormiam. Joca estava pescando. -"Zuíte, é você? Veio tomar água?" Ela guardou o avental. -"Tem gente aí fora. Eu sinto." Resolveu abrir a porta. Ela arregalou os olhos. -"Não vai me convidar para entrar, Zefinha?" Disse o moço, de terno e chapéu branco. A lua cheia iluminou seu rosto. A mulher levou as mãos ao rosto. -"A menina dorme. Vai embora, encantado!" Ele entrou, mesmo sem o consentimento dela. Ergueu o chapéu, mostrando os belos olhos. A voz sensual. -"Você continua encantadora, Zefa." Ela corou. -"O encantado aqui é você. Coisa hedionda o que você fez?" Ele puxou uma cadeira. Zefa deixou a porta aberta. -"Li seu pensamento. Eu jamais faria mal a minha filha. Naquela noite só queria dançar com ela. Não minto." Zefa sabia que boto não mente. -"Se não foi você, quem foi?" Ele ficou sério. -"Os dois. O capitão do Estrela da Manhã e o crápula do seu marido. Eles a doparam. O resto você sabe." Zefa estava boquiaberta. -" Muita gente faz atrocidades por aí, se aproveitando da inocência das moças ingênuas e colocam a culpa em nós, botos! " Zefa estava com muita raiva. -" O capitão têm muitos filhos nos vilarejos e aldeias. Joca também. Se escondem atrás da lenda do boto!" O rapaz se foi. Zefa ficou observando aquele ser, indo em direção ao rio. Zefa trancou a porta. Se assustou ao ver Delzuite acordada, perto da porta da cozinha. Ela escutara tudo. -" Minha filha!" A moça de pijama, chorava. Zefa também começou a chorar. -"Viu até Santa Cruz, onde tem delegado. Eles vão pagar por seus crimes." Zefa estava imóvel, calada. Delzuite foi de canoa até a cidadezinha, a sete quilômetros dali. Ela contou tudo só delegado. Sete horas da manhã. O barco de Joca atracou. Junto dele, outros três barcos de pescadores da vila. Uma viatura policial o esperava. -"Tem polícia na prainha." Disse Murilo, líder da cooperativa de pescadores. Joca foi algemado e levado a Santa Cruz. Joca permaneceu quieto. Zefa estava abraçada a filha. Joca, entre os dois guardas, abaixou a cabeça ao vê-las. O delegado Fernando conversou durante horas com Joca. Os investigadores trabalhando no caso. O navio Estrela da Manhã foi localizado em Belém. Almeida foi preso, três dias depois. O delegado Fernando blefou, dizendo a Almeida que Joca confessara tudo. Almeida caiu na armadilha e confessou as atrocidades com Delzuite e outras meninas. O caso ganhou destaque na mídia. Delzuite prestou novo depoimento. Exames de DNA provaram que Almeida era o pai de Kauã. Outras vítimas de Almeida e de Joca surgiram, motivadas pela coragem de Delzuite. -" Infelizmente, é a realidade. Gente ruim se aproveita da lenda do boto para cometer atrocidades. É uma lenda que os ribeirinhos acreditam. Joca e Almeida vão apodrecer na cadeia mas há muitos iguais a eles por aí." Disse o delegado. Zefa e a filha se olharam. -"Tem razão, delegado. Vamos nos mudar para Manaus. Queremos que Kauã estude e tenha um futuro bom." Disse Zefa. O delegado se despediu delas. O jovem policial olhou para a sua mesa. A foto de sua mãe. -"Minha mãe, guerreira que me criou sozinha. Ela me dizia que eu era filho de boto!" FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 01/01/2021
Reeditado em 02/01/2021
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