RODRIGO, O CAMINHONEIRO E A SOPA DE CARNE

Em 26 de janeiro de 2018 Rodrigo iniciou suas viagens pelo Brasil no que queria que fosse uma aventura empolgante cruzando os recantos dos pampas aos sertões, até encerrar no estado do Pará, em florestas amazônicas. Sem muita bagagem além do que achava estritamente necessário ele partiu de ônibus até a cidade de Jundiaí, hospedando-se num hotel de quinta, que era da forma mais simples o que pretendia. Dormindo mal, em camas desconfortáveis, caminhando pelas estradas de chão batido com o sol causticante na cabeça. Ao menos a comida simples sempre era a melhor, isso ele sabia. Um privilégio que não custa muito e às vezes é menosprezado por alguns. Pedindo carona chegou até Curvelo, cidade pequena, com ruas calçadas e limpas e as belas palmeiras que dividiam a avenida Othon Bezerra de Melo. Dormiu na cidade, ao amanhecer saiu para caminhar. Era cedo ainda, o sol parecia tímido e preguiçoso, o clima pacato da cidade o entediava. Um cachorro de rua o perseguia, parecia querer comida. Foi até um bar chamado bar do Zé Carlos, pediu uma cerveja e se sentou. Observava a cidade. Uma igrejinha, uma pracinha com apenas um banco e as belas palmeiras coroando o canteiro que se estendia ao longo de toda a avenida. Mais à frente, do outro lado da avenida, outro bar, casas simples, vários comércios e alguns esparsos e poucos moradores. Rodrigo, admirado com a paisagem rudimentar e aquele sossego sonífero, não percebeu quando tocando seu ombro um homem o abordou:

– E aí, amigo? Posso te acompanhar numa cerveja? Por minha conta! – Disse o homem se sentando. Era um desengonçado e amplo homem. Tinha costeletas e bigode e sua camisa listrada com uma velha mancha de molho e amassada, mostrava alguém despreocupado com a aparência.

– É um país livre. Eu não me importo. – Concluiu Rodrigo desinteressado.

– Garoto, você está para poucos amigos. Mesmo um passarinho numa gaiola enxerga motivos pra cantar. Qual é a sua? Problemas com mulher? – Inquiria o sujeito cheio de perguntas. Seus modos eram grosseiros, era expansivo, falava alto. No entanto, Rodrigo percebia em seu modo de falar alguma sabedoria que não era de botequim. Podia ser uma falsa impressão, era cedo pra saber.

– Eu não tenho problemas com mulheres, amigo. Geralmente elas que se metem em problemas quando estão comigo. Você me convidou pra beber ou quer saber da minha vida? Porque não me fala de você? – Redarguiu Rodrigo. Sua postura diante de Guilhermo, o caminhoneiro bronco, era desafiadora. Os dois aliás pareciam duelarem-se trocando olhares duros, rostos fechados, sobrancelhas arqueadas. Foi quando Guilhermo ascendeu um cigarro com o fósforo, que o silêncio nervoso se rompeu.

– Você fuma? – Perguntou Guilhermo. Rodrigo recusou com um movimento de cabeça e encheu seu copo de cerveja. O caminhoneiro prosseguiu:

– Será a minha vida mais interessante que a sua pra ser contada? Vamos ver. Eu tenho um restaurante em Campinas, mas é sazonal. Abro só no inverno. Sirvo sopas. Sopas de carne, de peixe, de galinha. As de carne são minha especialidade e as que mais saem. O resto do ano dirijo esse caminhão frigorifico fazendo entregas. O caminhão é meu. Eu escolho meus clientes. Não é algo que eu leve muito a sério, entende? Digo, muitos clientes não satisfeitos acabam desistindo do negócio e eu sigo a vida. Mas o que eu faço entre essas duas coisas é a parte mais interessante. – Concluiu Guilhermo apertando os lábios num estranho e sutil muxoxo, para depois exprimir aquele debochado sorriso na cara.

– Você parece o tipo de cara que não tá nem ai pra nada. Admiro isso, mas tem um problema em agir assim. Digo isso porque eu já fui como você e o problema é que não deixamos as coisas resolvidas atrás de nós e elas vão engolindo umas às outras e como uma enorme bola de neve elas descem rolando pra nos engolir.

Os dois continuaram aquela conversa mais seis cervejas depois, com Guilhermo oferecendo uma carona a Rodrigo, que passou o resto da tarde descansando no hotel em que estava hospedado. Os dois partiram de Curvelo às 21h. A noite estava agradável e durante algum tempo foram em silêncio, apenas com o som do rádio tocando as músicas mais pedidas dos ouvintes.

– Ouviu isso? – Perguntou Rodrigo assustado. Escutou um barulho vindo do compartimento de carga do caminhão.

– Não ouvi nada. O que ouviu?

– Um baque, uma pancada forte. Como não ouviu?

– Se acalma, garoto! Vou olhar. Vamos parar aqui. Alguma das postas de carne deve ter se soltado. O excesso de frio faz as fibras trincarem, algumas se partem e por isso caem. Já troquei esse termostato, mas essas bostas vivem dando defeito. Vou espiar. Fique aqui e tome conta do caminhão pra mim.

Guilhermo fechou a porta depois de pegar a lanterna. Andava tranquilamente dando a volta no caminhão. Encostado na porta do frigorifico ainda fumou um cigarro divagando, falando consigo mesmo. Tinha esse costume. “Garoto petulante! Pode estragar tudo. Sim, vamos ter que dar jeito. Se ficar intrometido demais terá de ir embora. Ir embora, sim”. Abriu a porta encolhendo os ombros para se proteger do frio. Com a lanterna iluminava todos os cantos. O feixe luminoso lambia os pedaços de carne congelados. Achou num canto a posta de caiu, recolocando-a presa no gancho perfurando-a em outra parte. Depois tratou de fechar rápido aquela caixa congelante e sair com o caminhão dali.

– Não disse? Uma das postas arrebentou e caiu. Só isso! Vamos devorar essa estrada. Pode dormir se quiser. Vou dirigir a noite toda.

– Não se preocupe. Vou te fazer companhia. Sou um desses animais noturnos que tem hábitos favorecidos pela testemunha silenciosa, a lua.

– Você fala umas coisas bem esquisitas, heim? Desse jeito vou preferir ouvir o rádio. – Observou o caminhoneiro irônico. Rodrigo encostou a cabeça no banco e olhava a estrada movimentada. Formou-se mais um hiato entre a comunicação dos dois. Até Rodrigo perguntar:

– Você me ofereceu carona, mas nem quis saber pra onde estou indo. Não acha que devíamos falar sobre isso?

– Como você está na estrada, nessa sua viagem louca sem rumo, achei que não importava pra onde eu fosse, te deixaria no meu destino e de lá você seguiria seu rumo. Não é isso?

– Sim, é, mas você nem perguntou. Não é curioso, é? Você é um tagarela, mas parece não querer saber muito sobre as pessoas que conhece.

– Pessoas não são interessantes, elas me entediam. Cachorros são interessantes. Você os alimenta, da casa, carinho e vai ter o amor deles pra sempre. Mas você não sabe o que esperar das pessoas. Gosto das pessoas de um jeito bem menos comunicativo, por assim dizer.

– A sei, quem é que tá bancando o esquisito, agora? – Retrucou Rodrigo retribuindo com a mesma ironia que Guilhermo usou quinze minutos atrás. Os dois riram largamente e seguiram viagem até Santa Maria da Vitória, na Bahia, onde Guilhermo descarregou o caminhão.

Assistiram a uma partida do futebol local no estádio do Turibão e depois fizeram o caminho de volta desbravando o centro-oeste do país. Passaram por Correntina, Formosa, Brasília, Paracatu, Uberaba, Ribeirão Preto e finalmente chegaram a Campinas. Fizeram o caminho mais longo para aproveitar melhor a viagem. Guilhermo não estava à trabalho, não trazia carga de volta então rachavam a gasolina na viagem.

Aquela amizade inesperada, que fizera Rodrigo desistir de seguir sua viagem, surpreendera a ambos. Passaram a se conhecer melhor e daí surgiu uma cumplicidade e simpatia. Guilhermo morava nos fundos do seu restaurante e como Rodrigo dormia todas as noites bem tarde, ele percebia quando Guilhermo se levantava para suas excursões noturnas. Outro fato curioso, que depois Rodrigo percebeu ter alguma ligação, era que mesmo não estocando carne, pois ele nunca via Guilhermo comprar, os freezers estavam sempre cheios até a boca. Rodrigo ajudava na cozinha, mas não fazia os cortes das carnes. Tudo era limpo e embalado antes dele começar. Até sugeriu mudanças no tempero da carne para a sopa, mas foi duramente vetado. Guilhermo o autorizou a sugerir novos cardápios e novos temperos para outras sopas, mas não para a sopa de carne.

Essa sopa secreta de carne despertou o interesse de Rodrigo notavelmente. Determinado ele investiria toda a sua determinação e tempo para descobrir o ingrediente intocável da sopa. Mas Guilhermo parecia suspeitar de algo e passou a dificultar as coisas. Deixou de sair à noite como sempre fazia por um tempo, talvez porque o estoque de carne estava satisfatoriamente abastecido. Seja como for, assim como todos no restaurante que se deliciavam com a sopa, ele até então ignorava a iguaria inigualável, suculenta e cheirosa. Aquela carne macia, magra, cortada em partes pequenas, em cortes mais parecidos com os cortes do porco do que do boi. Carne humana fresca caçada pelas ruas de Campinas incrementava o caldo com batatas, agrião e rabanetes.