QUARENTENICÍDIO - CLTS 14

A lua minguante fornecia apenas alguns lampejos de claridade. O breu era ainda mais abundante quando algumas nuvens carregadas ocupavam seu lugar de direito no céu. Os vagalumes por vezes revelavam a companhia de odor peculiar e de fala macia. Terno de linho branco e chapéu de mesma cor que contrastavam com a escuridão da noite. O vento assobiava enquanto percorria a vegetação dos terrenos baldios afastados da cidade, causando-lhe arrepios na pele. Ainda não entendia porque acompanhara quem lhe roubou o fôlego no fim da festa. No entanto, sentiu-se atraída a tal ponto que foram suas pernas que acompanharam por vontade própria. E o sangue jovem que pulsavam em suas veias, naturalmente, jogava-a ao ímpeto de viver como se não houvesse amanhã.

Acordou com os berros do telefone que esquecera de desligar. O lençol estava encharcado pelo suor que merejava do corpo. Cenas comuns nos últimos dias.

- Puta que pariu Peixoto! Sábado, em pleno “lockdown”, dia da minha folga e você vem encher meu saco, porra.

- Desculpa, doutora. É que aconteceu de novo. Como a senhora pediu para te avisar, embora tenha hesitado não tive escolhas.

Tatiane arrumou-se às presas para atender outra diligência. Haviam poucas semanas que fora nomeada ao cargo de delegada titular da recém-criada DEAM – Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, da Capital Rondoniense. Desde que fora investida no cargo seus dias foram de profundas angústias. Ao que tudo indicava um assassino em série queria testar a competência da jovem unidade especializada, sobretudo, testaria a capacidade de sua delegada.

- Mesmo padrão doutora. Morte por asfixia. Corpo preservado. Festa clandestina.

- Algum indício de violência sexual?

- Aparentemente não. A abordagem preliminar descartou esta hipótese, mas só o laudo do exame cadavérico nos dará a confirmação.

A delegada examinou novamente o ambiente em que se dera o crime, na tentativa de encontrar algum vestígio que por ventura Peixoto não tivesse tropicado o seu imenso nariz. No entanto, o assassino era minucioso. Só se achava aquilo que ele queria. Uma cena do crime orquestrada nos mínimos detalhes.

Era o quarto crime com o mesmo padrão em quatro semanas. Desde que o Governador do Estado decretou o Lockdown, como medida de prevenção e combate a propagação da Covid-19, várias festas clandestinas tornaram-se o destino dos jovens porto velhenses ansiosos por diversão. Tornou-se também o local ideal para a emergência de um Serial Killer que encontrava nesses espaços clandestinos o seu alvo ideal.

O noticiário local “A hora da verdade” tratou logo de elaborar sua hipótese em relação aos assassinatos. Avesso as medidas de isolamento social, seu âncora fundou a tese de que tudo fazia parte de um plano comunista para espalhar o medo e o terror na população, com vistas a consolidar as medidas de isolamento e, consequentemente, fragilizar a economia e criar as condições para uma Revolução Social. Prova disso era que ninguém se atrevia a sair de casa à noite com medo de se tornar a próxima vítima do “Quarentenicídio”, nome pelo qual passou a ser conhecido a série de assassinatos devido a situação conjuntural da pandemia.

Em contrapartida, o noticiário da concorrente “A hora do povo”, com alinhamento ideológico oposto, fincou outra hipótese. Para eles tudo não passava de um macabro plano machista, tendente a desafiar a capacidade da delegacia especializada, bem como de sua delegada. Corroborava com tal hipótese o fato da delegacia ter sido criada recentemente e atender especificamente mulheres e, além disso, ter uma mulher no seu comando cuja nomeação se deu através de aprovação em Concurso recente. Ademais a delegada era órfã de pai. Terreno fértil para uma boa conspiração identitária.

A cidade foi tomada pela tensão. A eficácia das medidas de isolamento, bem como a capacidade da delegada foram postas em cheque. E em nada contribuía para a elucidação dos crimes e nem da identidade do assassino. Tão somente desfiava o foco. A delegada passava mais tempo tendo que responder aos jornalistas sobre sua capacidade, sobre o que impactou na sua formação a ausência do pai do que efetivamente trabalhar no caso. Assim, as circunstâncias para o trabalho eram cada vez mais difíceis, andando sempre às escondidas para evitar o encontro com as pessoas.

Desfilava, naquela noite, um céu amazônico cujas estrelas brilhavam como jamais houvera brilhado. Desceu a barranca do rio que dava ao cais. Uma plataforma de madeira ligava a terra até aonde os barcos podiam ancorar com segurança. A névoa de agosto que repousava sobre o Rio Madeira, impedia-a de ver o que estava do outro lado da plataforma. As margens do rio formavam pequenas ondas que chocavam contra as pedras laterais e golfava-lhe água sobre o vestido branco. Um perfume familiar forçava as lembranças da infância ribeirinha. Um assobio convidava-a para o outro lado da plataforma. Rasgava a névoa da madrugada em direção ao final da plataforma. Já podia ver ao longe a lua grande e gorda que beijava as margens do Rio. Lá estava o assassino, todo de branco, no final da plataforma com a aba do chapéu lhe tapando o rosto. Aproximava-se cada vez mais, na doce ilusão de que pudesse desvelar sua identidade. A poucos metros de distância, porém, o assassino cai sobre o solo. Atônita, observou que ao cair ele havia transformado-se em uma cobra e rastejava a toda presa em sua direção. Queria retroceder, suas pernas, contudo, levavam-na em sua direção. Uma mistura de angústia e prazer a guiavam até o réptil.

Acordou com o barulho da porta se abrindo. Era Peixoto, o narigudo inconveniente. Havia dormido na cadeira de sua sala.

- Doutora – disse ele, o Secretário de Segurança Pública está aí. Parece que veio falar contigo.

Ela se recompôs e se preparou para a pancada. As cobranças eram da rotina da função. Mas desta vez o veredito foi trágico. O Secretário sentenciou que a ausência de provas concretas que levassem a identidade do assassino em uma semana, custar-lhe-ia o cargo.

Acendeu um cigarro para poluir ainda mais o ambiente da sala, afinal ainda era a chefe daquela porra de delegacia, pelo menos por enquanto.

- Acompanhe o secretário até a saída Peixoto – disse ela.

- Já sei o caminho – retrucou o secretário. Uma semana Tatiane – finalizou enquanto saía pela porta sem olhar para trás.

Após a saída de Peixoto e o Secretário, ela socou a mesa com violência fazendo cair o retrato que adornava a sala. Recolheu-o e pôs-se a chorar. Sentia a falta da mãe. Talvez os seus costumeiros conselhos pudessem fazer a diferença agora. “Mas é exatamente isso! ” Pensou ela olhando para a foto.

Averiguou novamente as informações dos quatro assassinatos e tudo se encaixava, tudo fazia sentido agora. Chamou Peixoto imediatamente.

- É risível – exclamou Peixoto que embora não contivera o riso, concordou com sua tese por educação de subordinado.

Na manhã seguinte os papéis da demissão estavam sob a sua mesa. E sentado na cadeira que fora sua nos últimos meses estava Peixoto o novo delegado. Ela assistiu tudo atônita.

- Não pude deixar de relatar ao Secretário a sua loucura doutora. Acho que estava na hora de dar uma basta nesta brincadeira não é mesmo – disse Peixoto.

- De fato meu caro – reforçou o Secretário. Tive que antecipar a sua inevitável demissão Tatiane. Os relatos de Peixoto são graves. Não bastasse a sua imperícia na condução da delegacia, as suas criações mirabolantes iam levar a Segurança Pública do estado ao atoleiro. É meu dever como gestor agir.

Em menos de uma semana o novo delegado logrou êxito em desvendar o assassino por trás das mortes. Um garimpeiro que se aproveitou das festas clandestinas nas casas isoladas às margens do Rio Madeira, que driblavam as fiscalizações do município, para destilar todo seu desprezo à vida humana.

Assim as mortes cessaram e o delegado condecorado. A delegada esquecida.

***

A lua minguante fornecia apenas alguns lampejos de claridade. O breu era completo quando algumas nuvens carregadas ocupavam seu lugar de destaque no céu. Os vagalumes por vezes revelavam a companhia de odor peculiar e de fala macia, embora o chapéu e a máscara escondessem a sua verdadeira identidade. O terno de linho branco contrastava com a escuridão da noite. O vento assobiava enquanto percorria a vegetação dos terrenos baldios afastados da cidade. Entendia exatamente o porquê acompanhara aquele que lhe roubou o fôlego no fim da festa. As pernas o acompanharam por sua vontade. O sangue que pulsavam em suas veias, naturalmente, jogava-a ao ímpeto de resolver o que pudesse hoje e nunca deixar para amanhã.

Foram meses de procura enfim recompensadas. Ele a levava na direção do Rio Madeira e tudo fazia sentido. O ar ficava úmido e o odor podre dos esgotos da cidade avisava que o Rio estava cada vez mais perto. Um silêncio profundo entre ambos, já se conheciam, tratava-se de quem atacaria primeiro. Peixoto não resistiu. Atacou primeiro, ao que foi repelido com um punhetaço no rosto que lhe arrancou o chapéu, revelando a ela que era de fato ele o homem do terno branco.

- Sim, sou eu – confirmou Peixoto. Vai fazer o quê?

- Queria saber o porquê? Indagou Tatiane.

- A princípio apenas para saciar a sede. Mas depois vira hábito. Não tinha nada a ver com você. Mas quando você matou a charada eu tive que agir. E o contexto me privilegiou a resolver tudo em uma tacada só. Concluiu Peixoto enquanto voltava a forma de boto prestes a saltar impune nas águas escuras do Rio Madeira.

Ela atirou. Ele sorriu. Sabia que as balas não podiam feri-lo. Ele não contava, no entanto, que o carregamento era de alho. Logo ela a filha do boto, sabia como se livrar de um. “Belos conselhos de mamãe”. Sorriu para si mesmo.

bily anov
Enviado por bily anov em 01/02/2021
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