BÁ - CLTS 14


 
Procurei aprender as regras da vida. As enviadas por Deus, as criadas pelos homens. Isso de nada me adiantou...

Meu nome é Ângelo, tenho 28 anos, e fui amaldiçoado no dia em que nasci. Meu nome é Ângelo N. Thomas, e hoje, 30 de novembro de 1915, irei morrer.
 
Não direi que será uma morte injusta, pois mereço cada uma das descargas que receberei na cadeira elétrica que me aguarda. Mas não pelo que me condenaram. Fui um homem mau. Muito mau. Dessa morte, porém, não posso ser considerado culpado.
 
 
 

Era uma noite estranha quando nasci. Silenciosa e nevoenta. Meu pai, Philip Thomas, um gringo pousado naquelas terras brasileiras esquecidas, encantou-se por minha mãe a tomando para si. E a odiou quando soube que estava grávida. Não queria amarras e considerava que prole serviria apenas para obrigá-lo a ficar. A fim de evitar que soubessem do futuro filho, mudou-se para um distante casarão decidindo que meu nascimento seria em casa. Depois, viríamos para cá, Selma - Alabama, sua terra natal. Passou a hostilizá-la e mal olhou para mim quando vim ao mundo. A parteira que me trouxe à luz enterneceu-se quando me viu tão frágil e, embrulhando-me em alvos panos, levou-me até ele. Ele apenas virou-se resmungando qualquer coisa, e deixou o escritório indo para longe de todos. 

Minha mãe não resistiu muito tempo devido às dificuldades do parto e aos diversos problemas decorrentes da difícil viagem.
 
Após sua morte, o desprezo dele por mim só aumentou. Me deixava sozinho na grande casa, cercada por bosques e matas e que sempre fora da sua família, apenas sendo alimentado pelos empregados. Estes me olhavam com pena, mas nada podiam fazer porque estavam proibidos de qualquer contato que não fosse para me servir refeições.  Seriam punidos se tentassem e fossem descobertos. Somente a Bá, cuidadora da minha mãe desde a época da sua complicada gravidez, e que ele concordou que viesse conosco, tinha uma maior proximidade comigo. Quando meu pai se ausentava em viagens ou quando se embriagava com vinho e dormia, ela me levava para o bosque, cantava canções de ninar e me banhava com leite sob a luz prateada da Lua. Me erguia na direção do astro e repetia como quem repete um mantra:

Será um grande homem, pequeno Sr. Thomas. O mais forte de todos e o mais respeitado nesse mundo.
 
Bá me amava como se fosse um filho.

 
 

Assim cresci. Os estudos eram acompanhados pelo preceptor que, num momento de inusitado e surpreendente cuidado, o velho Thomas designou para minha educação. Além dos empregados, foi a única pessoa com quem tive um tempo de contato.
 
Aprendi a gostar de ficar no bosque quando meu pai se ausentava. Por vezes ouvia os chamados da Bá e voltava correndo, pois sabia que se aproximava a hora dele chegar. Ela continuava me levando para a clareira na mata onde costumava me banhar com leite  e conversávamos sobre minha mãe, sobre os seres da floresta, sobre os desígnios de Deus, sobre ser forte, bom e justo para construir uma boa vida. As conversas nas noites enluaradas eram as minhas preferidas.

Certa vez, estando então com treze anos, meu pai voltou inesperadamente e procurou por mim. Furioso por terem me deixado sair, ameaçou a todos e saiu à minha procura esbravejando. Entrou no bosque gritando meu nome, e bufando de raiva quando me encontrou, disse que o meu castigo seria ficar lá até quando aprendesse a lição. Arrastando-me pelo braço, embrenhou-se profundamente na mata, me largando lá enquanto gritava:
 
- Você deveria ter morrido junto com sua mãe!
 

Nunca havia ido tão longe, nem mesmo com a Bá. Naquela parte do bosque a mata era fechada, não podia ver a claridade da Lua que me guiava das outras vezes. Assustado, deitei sobre a terra fria e chorei.  Acabei adormecendo e despertei com uma presença ao meu lado, e que fugiu quando me mexi. O dia já ia claro e pude perceber um pequeno rastro de leite na direção para onde correu. Então ouvi passos e barulho de galhos quebrando. Escondi-me atrás de uma grande árvore e respirei aliviado quando percebi que era a Bá. Minha Mãe Bá.

Ela correu até mim, me abraçou e agasalhou e disse que meu pai tinha partido numa viagem bem cedo, deixando ordens para que ninguém me resgatasse. Eu deveria ficar ali, mas ela viria sempre me trazer água e mantimentos. Caminhamos um certo tempo e me mostrou uma cabana onde poderia passar as noites, até que o Sr. Philip Thomas me deixasse voltar. Havia trazido algumas roupas e cobertor, além do farnel  com comida e água. Ficamos juntos por boas horas e se foi, prometendo que voltaria.
  
 



Era meu terceiro dia abandonado na mata. Bá não tinha retornado, como havia prometido.

Estranhamente, não sentia medo nem vontade de voltar para casa. Aprendi com ela que nas dificuldades temos que ser criativos e que a curiosidade era importante para sermos bem-sucedidos. Por isso resolvi adentrar ainda mais a floresta e desvendar seus segredos. Descobri que havia um riacho por ali e nele me banhava. A água não faltava, mas a comida já estava no fim. O leite, porém, esse parecia que não acabava nunca.  

Já havia aprendido a sinalizar a trilha que fazia para não me perder da cabana, e tinha certeza de que alguém me seguia. Às vezes parava subitamente e ouvia quem me observava também parar, até um momento em que consegui me virar rapidamente e conheci meu seguidor. Um cão selvagem, ou melhor, uma cadela selvagem - assim eu pensei. Ela havia me adotado, me rastreava onde quer que fosse, e comecei a chamá-la Bá II. Em pouco tempo entendi o porquê do rastro de leite. Ela estava amamentando, mas eu não imaginava onde estariam suas crias. Bá II era triste, uma grande cadela triste por estar sem seus filhotes.


Passei os anos vivendo tal qual minha cachorra. Quase já não pensava como um humano e a vida na mata me bastava.  O velho Thomas jamais permitiu minha volta. Era um homem livre, afinal. Eu também era um homem agora. Um homem-cão-selvagem. Me alimentava com partes da caça de Bá II, que, apesar da idade, continuava ativa e altiva. Era surpreendente sua vitalidade. Parecia imortal. Às vezes invadíamos quintais dos povoados e matávamos alguns animais. Meu sangue fervia naquelas horas. Um enorme prazer me avassalava ao sentir na boca o vermelho e viscoso líquido quente de cada presa. E um dia então, surgiu uma terrível vontade de experimentar a carne humana.

O povoado de Cahawba era o mais fácil para caçar humanos por causa da sua população de ex-escravos. Ninguém se importaria se eles sumissem de repente. Bá II dava o bote e arrastava a vítima para um lugar escondido. Ali, devorávamos avidamente o que era possível. Na primeira vez foi uma  mulher que trabalhava no quintal da sua casa. Minha cadela rasgou-lhe o peito e eu abocanhei seu coração que ainda pulsava. Seus olhos permaneceram arregalados e mostrando um imenso pavor, mesmo depois de morta. Na segunda, nem precisamos buscar a carne. Ela veio até nós na mata à procura de caça. Bá II apenas saltou na sua frente e o caçador caiu, apavorado. Na queda desmaiou e acho que nem sofreu
quando teve o corpo dilacerado. Daquela vez devorei seu fígado com tanta gana que não me reconheci como gente. A cadela o rasgou mas não o quis. Apenas me observou saciando minha fome com a víscera sangrenta. Experimentei essas duas vezes e gostei tanto que repeti e repeti, até que, amedrontadas, as pessoas começaram a abandonar o lugar. Hoje Cahawba é uma cidade fantasma, como dizem.
 
Se me arrependo dessas mortes? Como poderia? Animais precisam se alimentar. E eu era tão animal quanto minha cachorra selvagem.

    
 

Ao voltar das nossas caçadas num anoitecer, avistei Mãe Bá sentada à porta da cabana.  Pensei em me esconder e evitá-la, afinal tinha sido igual ao meu pai, me abandonando. Bá II avançou na sua direção fazendo festa, como já se conhecessem. Bá abaixou-se, deixou-se acarinhar pela cadela e, olhando nos meus olhos, disse serenamente:

Sabia que seria bem cuidado, pequeno Sr. Thomas! 

Então vi as cicatrizes nos seus punhos. Marcas de cordas. Como uma escrava, ela tinha sido punida e mantida encarcerada por meu pai quando soube que tentou me ajudar. 
 
Naquela noite, contou entre risos que minha cadela na verdade era uma loba que havia encontrado na mata, ao lado dos filhotes abatidos. Que o leite que me alimentou quando bebê, e continuava me alimentando, era dela - mesmo passado tanto tempo. Disse que a loba era especial, e que eu também o era. 
 
Retornou para casa após uma longa conversa e nunca mais a vi com vida. Dias depois, encontrei Bá II machucada e ensanguentada. Seu faro tinha identificado o cheiro do sangue da Mãe Bá e correu até a casa do meu pai que, embriagado e sabendo que ela tinha me visitado na mata mais uma vez, a espancou ferozmente. Bá II o atacou na tentativa de livrar sua protetora da fúria selvagem do velho Thomas e, na luta, acabou o matando. Os empregados disseram à polícia que eu tinha um cão treinado para matar, que a culpa da morte do velho era minha e que também poderia ser culpado pelas mortes em Cahawba.
 

Montaram um grupo de caça para me capturar no bosque. Abalado com a morte da Mãe Bá, e com minha loba escondida e severamente ferida, me tornei uma presa fácil. Fui amarrado, ridicularizado por causa dos trapos que cobriam meu corpo queimado pelo sol e arranhado pelas aventuras nas matas,  e mais uma vez fui violentamente arrastado pelos braços, agora para fora da mata. Me deixei ser levado. Não queria que eles ficassem por lá muito tempo e encontrassem Bá II. Ela precisava ser protegida.

  


Estou no corredor da morte há um mês. Minha sentença não demorou para sair: Culpado e com execução imediata! O desejo do meu pai de me saber morto vai se concretizar, mesmo sem sua presença. Faremos companhia um ao outro no inferno.
 
É chegada a hora. O padre já veio ouvir minha última confissão. Não lhe disse nada, nem pedi perdão pelos meus atos. Estou inexplicavelmente calmo. Penso em Mãe Bá e em Bá II. Sempre me protegeram e sou grato pelo que aprendi com elas. Também penso na minha mãe, que não cheguei a conhecer. Para ela peço perdão por meu nascimento ter sido a causa da sua morte. Sei que ela me amou. Minha Bá sempre me disse isso.

Caminho junto aos guardas pelo corredor, lembrando das noites enluaradas na clareira do bosque. Ao lembrar também das canções de ninar que Mãe Bá entoava, meu coração se enche de paz.

Me acomodam na cadeira e apertam os cintos. Colocam eletrodos no meu crânio e perna direita. Uma esponja molhada é posta sobre minha cabeça e a sensação da água refresca minha alma. Sinto meu corpo leve como num voo e recuso a venda nos olhos. Não os abrirei porque não quero despertar do meu sonho. Pensarei nas minhas guardiãs e partirei feliz. Escuto o sinal para a primeira descarga elétrica. Confesso que tremo um pouco, mas sei que logo tudo acabará. Ouço o ruído da alavanca que aciona a eletricidade e as faíscas cor de prata da primeira descarga me iluminam. Sei também que esse primeiro momento é para me fazer desfalecer antes das descargas finais. O sofrimento é menor, justificam. Mas não funciona. Estou acordado e sinto o pulsar do sangue circulando pelas minhas dilatadas veias.  A segunda descarga elétrica chega e, após um espasmo, meu corpo se ergue da cadeira, arrebentando todos os cintos que me prendem, e um uivo sai da minha garganta em lugar de um grito.

Ouço a voz de Mãe Bá:

Será um grande homem, pequeno Sr. Thomas. O mais forte de todos e o mais respeitado nesse mundo.

Uma Lua prateada invade a sala de execuções. A plateia presente para o espetáculo da minha morte grita e corre desordenadamente e eu corro para barrar-lhes a saída. Sangue se espalha por todo o lugar devido a precisão dos cortes com minhas garras. Um homem é partido ao meio com a força com que bato a porta de ferro quando ele tenta sair. Uma mulher é esmagada sob meus peludos pés e o salto fino de uma outra lhe perfura a têmpora direita quando esta tenta se desvencilhar de mim. Os guardas permanecem paralisados, enquanto meu corpo assume por inteiro a forma aprisionada por muito tempo. Me lanço contra os meus algozes arrancando-lhes as vísceras com um só golpe, devorando seus corações e entranhas, bebendo seu sangue e os aniquilando sem dó, enquanto brado:

Bá! Sou o mais forte de todos! Sou um deus da mata! Meu nome é Ângelo Nightshade Thomas e eu sou um lobisomem!

Fujo. As florestas, Bá II e a Lua me aguardam em festa, porque hoje renasci!


 


Tema: Licantropia



Imagens: Google
 
 
*Curiosidade:
Cahawba (Hoje Cahaba) é uma cidade próxima a Selma - ambas no Estado do Alabama-EUA, e é, de fato, uma “cidade fantasma”. Inundações sazonais regulares ocasionaram a derrocada da economia local e a consequente evasão dos seus habitantes. Uma das fontes informa que, em 1860, 64% da população de Cahawba era afro-americana, ainda considerados semiescravos.
Marise Castro
Enviado por Marise Castro em 08/02/2021
Código do texto: T7179754
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.