O CAMPEÃO - CLTS 14

Para minha surpresa, acordei mais um dia. Os sentidos latejavam ainda durante aquele lento despertar. Permanecia a sensação de cansaço e o insistente gosto de sangue que não abandonava a boca, percepções essas já corriqueiras após cada noite de combate.

— Senhor Lobato! Senhor Lobato! Ele já tá se levantando! — Pude escutar o aviso do lado de fora da cela.

Depois do ranger das velhas trancas sendo liberadas, o portão da cela se escancara abrindo passagem para que a figura sempre bem alinhada do velho Lobato pudesse entrar. Sua presença naquele ambiente coberto de feno, sangue e fezes frequentemente me trazia essa sensação de estranheza e incoerência.

— Aí está ele, nosso futuro campeão! Já estão chamando você de “Canino Sangrento, o imbatível”! Jamais existiu alguém como você nesses torneios. Dezessete vitórias seguidas, dá para acreditar?

Utilizei os grilhões que algemavam meus pulsos como um auxílio para reerguer-me. Estar de pé, mesmo que naquelas condições, me colocaria em uma posição mais digna para responder a aqueles elogios.

— E então, me conta como você está? — seguiu Lobato — Sente fome? Alguma fraqueza? Algum machucado que devemos nos preocupar para a luta de hoje à noite?

A preocupação com o seu produto principal era quase comovente. Conhecia já há alguns anos esse velho e seus negócios e, mesmo que participasse agora do outro lado do espetáculo, seguia reconhecendo esse irritante sorriso de satisfação em cada palavra que saia de sua boca. O otimismo nojento de quem ganhando ou perdendo irá enriquecer de qualquer jeito.

— Sinto fome — comuniquei, em rendição. A frágil carcaça que me pertencia já não sustentava qualquer orgulho. Precisava de energia para suportar as transformações naquelas seguidas noites de lua cheia.

— Pois bem, já vamos providenciar isso. Hoje vai precisar de uma força extra! Vamos enfrentar na semifinal uma fêmea que Tomazoni encontrou. Lembra do Tomazoni, lá do Goiás? A nova “Fúria” dele tem feito ótimas lutas. Muito rápida e agressiva.

O patrão continuava em seu monologo, intercalando entre discursos de instrução e motivação. Pouca relevância tinham essas palavras, naquele momento eu precisava apenas comer. Existia essa regra de alimentar os lutadores apenas quando havia eventos, assim tinham força para aguentar as horas de embate frenético. Em outros dias, o mínimo para que não morrêssemos era oferecido. Nos enfraqueciam propositalmente para que não resistíssemos ao aprisionamento e não causássemos danos em nossos senhores. Pelo menos enquanto estivéssemos conscientes.

Lobato decidiu se retirar no momento que a refeição chegou. Os serventes afrouxaram a extensão das correntes para que minhas mãos alcançassem os alimentos e os levasse a minha boca. Sem talheres: outra regra importante. Fiquei sozinho para que pudesse me esbaldar naquele banquete, um dos escassos momentos que fazia sentido desfrutar naquela minha nova desprezível vida.

Mais tarde, após todos estarem alimentados, um importante momento era dedicado a apresentações dos lutadores para os apostadores, que nos analisavam apontando fraquezas ou deformações que pudessem influenciar em nosso valor. Em meu favor, as dezessete batalhas me custaram apenas marcas de talho na pele e uma orelha decepada, impedida de ser recuperada mesmo com as cicatrizações em velocidades sobrenaturais. Postados ao centro da arena de terra batida, a exposição de nossos corpos sujos e nus era parte importante do show. Pude pela primeira vez conhecer a Fúria III e, diferente do que me narraram, sua aparência não-transformada indicava uma adolescente que há algum tempo abandonara qualquer esperança ao entrar naquele mundo. Não havia enxergado um reflexo tão fiel a minha própria imagem nos últimos tempos.

***

— OK, OK! Temos meia hora até a lua aparecer no céu! Hora de começar a preparar nosso campeão!

A “preparação” consistia em enfiar uma coleira em meu pescoço por uma longa haste de metal e conduzir-me até um contêiner a beira de um domo protegido por rígidas grades. Uma das muitas arenas improvisadas pelos endinheirados senhores naquele recôndito terreno.

Trancafiado naquele cubículo, podia distinguir o som dos espectadores se acomodando em seus caros assentos reservados. Sequer havia escurecido quando passei a sentir a tensão começar a se espalhar pelas minhas costas, em ondas que pouco a pouco se intensificavam da nuca até a base da coluna. Chegou a hora.

Fui acometido por algumas dezenas de transformações, mas jamais me acostumei com o tormento de cada uma delas. Sentia um fervor que incendiava os músculos por baixo das camadas de pele. Articulações. Tendões. Sentia minha caixa torácica se amplificar a cada batida mais enérgica do coração. Era como se meu corpo quisesse encontrar espaço para alocar a besta que vivia dentro de mim.

A saliva espessa escapava pelos cantos da boca escancarada em um volume anormal. Queria gritar, mas era inútil. Ninguém me acudiria naquela situação. Eles queriam o lobo, e só se satisfariam quando um de nós estivesse destroçado em suas presenças. Os maxilares estalavam a cada expansão, e a pressão enorme dentro do crânio já embaçava qualquer orientação de espaço. Debatia-me de um extremo a outro do contêiner sem que a dor aliviasse. Tocava em minhas mãos e constatava o alongamento forçado de cada dedo. Os grossos fios da pelugem irrompiam poro a poro de meus membros para em instantes formar uma armadura animalesca. A fome e o ódio se intensificavam. Desnorteado, minha aguçada audição captava os sons da plateia, ovacionando cada uivo que se libertava de minha garganta. A cada minuto que avançava a transformação, sentia o solo sob minhas patas amolecer. Jamais fui capaz de notar o momento em que a transição se completava e perdia a consciência de minha humanidade.

De repente lá estava, tragado em um fluido composto de vazio e escuridão, entregue a própria sorte.

***

— ...e aí, depois de tantas horas de pressão, a Fúria ficou encurralada entre você e a grade. Que pena que você não se lembra disso! Todos aqueles pedaços de carne voando em direção ao público, as pessoas se protegendo e desviando, hahah! Quando terminou o massacre, eu fui conversar com o...

Não conseguia mais sentir ódio de Lobato. Nem de sua fala, de sua pessoa ou de como conduzia seu negócio profano. Isso me demandaria uma energia que parecia não saber de onde retirar.

Ele sempre fora um homem de poucos escrúpulos, sabia disso desde que anos atrás aceitei trabalhar para ele como um de seus caçadores de monstros pelo interior do estado. Lobato vinha de uma família com linhagem importante e mística, por assim dizer. Por gerações faziam esse trabalho nas sombras evitando que chegasse à luz a existência desse homens-lobo que circulavam pelas matas do país, vitimando centenas de pessoas. Mantínhamos a eles as miseras condições de lendas. Centenas de grupos de caçadores surgiam e, em algum ponto da história essa missão desandou. Por ganância, talvez. Quem sabe maldade. Nunca descobrirei.

Sabia disto mesmo após ter sido ferido por um desses monstros e ser forçado a seguir nesse circo. Essa foi a utilidade encontrada para mim depois da maldição estar instalada. Essa era a semivida que o destino havia me traçado: mesmo sem qualquer vontade, permanecer vivo sob a identidade do agora Canino Sangrento. Os maus tratos e o cárcere foram tão efetivos que meu antigo nome ou minha antiga vida pareciam ilegíveis em minha memória.

Jamais alguém com a mesma condição que eu havia ficado por tanto tempo invicto. Escutava por entre as barras da cela que nossa expectativa de vida era de em média 3 a 4 lutas. Notava o espanto das pessoas em relação as minhas performances, Canino Sangrento era tratado como um fenômeno, uma força extraordinária. Mas também como uma aberração, um equívoco do que seria o tratado natural do mundo, um nome que vinha acompanhado de cochichos de pesar e medo.

Meu desafio final no torneio seria enfrentar o Lobo Branco, um senhor aparentemente com o dobro de minha idade, mas que conseguiu passar por um longo período em liberdade nos campos até ser capturado. Poucas feridas aparentes em sua pele envelhecida, mas muitas feridas abertas no azul de seus olhos. Provavelmente não tinha encarado tantas lutas quanto eu, mas era visível seu cansaço, sua desolação.

Cada final de tarde era um ritual de despedida. Os minutos finais de consciência faziam com que eu repensasse cada passo que me levara até estar ali. Tinha feitos tão grandiosos que nunca chegariam ao conhecimento do mundo, que ficariam guardados naquele cerco de lendas, compartilhado apenas entre gente mesquinha e sádica.

— Senhoras e senhores, preparem-se para o grande evento dessa noite histórica! — pela primeira vez escutei um narrador anunciar as lutas. Aquele embate seria realmente importante.

As vertebras da coluna trincavam ao se dilatarem. Fogo entre minhas juntas.

— ...será que o Canino Sangrento conseguirá manter sua série invicta de 18 vitórias contra a brutalidade do Lobo Branco?

Os sentidos aguçados. A fome extrema. A surgimento de garras e presas prontas para matar.

— ... já consigo ouvir o urro de nossos astros! Eles estão prontos para a guerra, esse é o momento pelo qual todos estávamos esperando! Vamos encharcar essa arena de sangue esta noite...

A escuridão se apossa de minha mente.

Que Deus tenha misericórdia de minha alma.

***

— Ei Humberto, está acordando?

Fazia muitas eras que não escutava aquele nome. Desenterrei a cabeça de meu peito para conseguir encarar a origem da voz.

— Está acordado? — repetiu Lobato.

Pensei em me reerguer e ficar ao mesmo nível do senhor, mas algo impedia meu sucesso. Meu corpo suspenso parecia mais extenuado que o usual.

— Que ótimo que conseguiu acordar. Nós vencemos, campeão. Você nos conseguiu a glória máxima que sempre sonhamos.

Não havia o risinho entre as pausas nas palavras de Lobato, e alguns segundos me distanciaram do real entendimento. Ao tentar me reerguer novamente, senti as coxas no chão buscando um impulso de membros que não mais faziam parte de mim. Uma interrupção brusca ocorria cima de onde antes estavam meus dois joelhos, enfaixados de maneira tosca por um pano encardido. Fixei os olhos longamente no nada que agora consumava minhas pernas, sentindo unicamente a dor da falta.

— Foi uma das noites mais brutais que já presenciamos. Mas conseguimos!

Nestes últimos momentos, senti uma pequena fagulha de humanidade naquele miserável. Compreendia o porquê de seu desconforto. Ambos sabíamos o que aconteceria comigo, um lutador aleijado. Essa história já havia se repetido muitas vezes naquela realidade quase paralela ao mundo normal.

— Vocês já têm outro lutador? — pensando alto, foi a pergunta que escapou por minha boca.

— Ouvimos boatos de um macho que atacou um rebanho, cerca de trezentos quilômetros daqui. Amanhã iremos partir em jornada atrás dele. Tenho coisas para resolver por aqui antes disso.

Lobato, um covarde, mal conseguiu permanecer me encarando diretamente.

— Você...tem família? Algum lugar para ficar?

— Só me deixa longe desse lugar. Dessa jaula — falei sem pestanejar.

Existia pequenos contentamentos em enxergar a fragilidade do patrão diante de mim. Assim como essa doce certeza de que, em minutos, todo o sofrimento seria cessado por fim.

— Senhor Lobato — continuei — se me permitir a ter essa honraria, gostaria que o senhor fosse o responsável por me dar esse descanso.

O rosto do velho trocou de tom tão rapidamente que podia jurar que iria desmaiar. Lobato vivia em um altar de privilégios tão grande que se esquivava de qualquer possibilidade de sujar as mãos. Ele apenas mandava e gerenciava os ganhos. Então que, em meu golpe final, ele pudesse experimentar um pouco do que é carregar tantas mortes em suas mãos. Que sentisse o gosto do sangue das chacinas que patrocinou, escoando até a última gota de nossos corpos.

— Você tem...certeza que quer que eu faça isso?

— Mais do que tudo.

Naquele dia não houve banquete, e estava tudo bem. Mais do que isso. Os serventes, ex-companheiros de jornada, fizeram-me chegar até um campo aberto, de frente para algum morro de uma cidade que não tive oportunidade de conhecer. Afinal de tudo, era bonito. Um tremulo e amedrontado Lobato se posicionou as minhas costas. Seria pedir demais a aquele frouxo dignidade para ver minha vida se esvair de meu rosto.

O cano de ferro levemente tocou meu crânio para que o disparo não fosse desperdiçado. Fechei os olhos, buscando mergulhar novamente naquele fluido escuro que me rodeava a cada transformação, os únicos instantes de paz e serenidade que conheci desde o raiar da maldição.

Finalmente, Humberto e Canino Sangrento seriam libertos.

TEMA: LICANTROPIA

Nunes Pedroso
Enviado por Nunes Pedroso em 13/02/2021
Reeditado em 15/03/2021
Código do texto: T7183494
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.