-*- Terra da morte anunciada -*- CLTS/14

Os olhos entreabertos, ainda, mas por pura teimosia, puderam assistir a rara nuvem negra no céu, tingido, há muito, de azul. Ela caminhava apresada, antes que se dissipasse, porém, mijou. Uma porra de uma gota de água minguada que não logrou alcançar. Pôde observar, contudo, sua trajetória, bailando solitária em espiral, inabalável, como a luz que ofusca tudo ao seu redor. O centro das atenções. Bailou ligeiro, até se chocar com o solo e ser consumida imediatamente pela força implacável da árida areia que revestia o chão. Os olhos fecharam. O corpo, entregue, sucumbiu, como que concordasse que a alma que protegia, houvera blasfemado o corolário inquestionável do destino.

***

1. O CÉU ESTAVA NEGRO. Negro como nunca antes, nesta vida dominada por estes humanos, houvera sido. Apenas a lua em sua posição indelével era testemunha. Vez ou outra, os vagalumes ousavam sasaricar à frente, como quem queriam indicar a direção. Severino. É, esse Severino da família dos que morre de emboscada antes dos vinte, de velhice antes dos trinta e de fome um pouco a cada dia, como sentenciou certa vez João. É, exatamente este João que se perdeu em meio a tantos Joãos, que já nem nos lembramos mais.

Pois bem. SEVERINO, absolvendo o trepidar da carroceria do velho pau-de-arara, jogava sua mirada para trás. Não via nada além dos grandes faróis dos caminhões que os seguiam, bem como a garoa que caía sobre a caatinga e deixava a estrada de terra batida fluorescente, formando pequenas e efêmeras poças ao sabor das irregularidades do caminho. Os rostos dos companheiros de viagem, eram ofuscados pelos faróis dos caminhões. Por isso preferia apreciar a margem da estrada e suas pequenas árvores de galhos retorcidos, tal qual a trajetória de sua vida.

Vergões amarelos rabiscavam o firmamento. “Capaz que chova”. Pronunciou Sebastião, tentando capitar inutilmente os ralos pingos d’água com sua caneca de lata de óleo. O que não deixava de ser uma típica ironia sertaneja, já que se sabia que não caía água há muito por aquelas bandas. Tão somente vinha, isso é quando vinha, uma merejada garoa que perdia feio para o orvalho da manhã. O que era certo, no entanto, eram os relâmpagos, que mostravam para aqueles pobres diabos o que era a eletricidade.

Reginaldo fazia sinal de silêncio. Significava que o destino estava próximo. Já se podia ver a madrugada cedendo às primeiras luzes rubras que emergiam detrás das montanhas ao longe. Os grilos e cigarras sibilavam entre os mandacarus. Uma coruja soltava um rouco canto de agouro. Não precisou de nenhum relâmpago para que soubessem exatamente a feição de todos, irradiados pelo mesmo temor de qualquer campesino ao ouvir aquele canto. Aquele maldito canto de coruja agourenta.

O caminhão parou lentamente. As luzes apagaram. Ouvia-se o silêncio profundo, sem sequer alguém anunciar a sua necessidade. Até os grilos e as cigarras entendiam. Só não a coruja e a porra de seu insistente canto rouco.

- Podem descer negada – gritou Reginaldo. São essas as terras do coronel Antônio.

Antes de que Severino descesse, pode ver os rabiscos de luzes no céu delatando Sebastião escorando a foice na cerca de arame farpado. Enquanto o trovão abafava as batidas do martelo de Reginaldo. Aos últimos momentos daquela madrugada a cerca havia sido rompida e as terras do coronel ocupadas.

2. OUÇAM CAMBADA – disse Severino. Já passou um dia desde a nossa entrada nas terras do coronel Antônio, e eu não vi nenhum “guaxeba” rondando a área. O que eu ouvi foram várias barrigas roncado. Essas são as melhores terras deste sertão. Preá, catitu e teiú é o que não falta por aqui. E eu que não vou morrer de fome.

Todos olharam para Reginaldo, esperando sua reprovação, ou melhor sua reação, ansiando, no entanto, bem lá no fundo, a sua improvável aprovação. Sebastião batia com a unha do dedo indicador na caneca feita de lata de óleo, o que não deixava de ser uma melódica composição que ilustrava bem a tensão do momento. Reginaldo continuou com as costas escorada no pé de braúna. Sereno, impenetrável, como sempre. Sabia exatamente como liderar aquele povo. Sua liderança não advinha de nenhum dom divino. Residia no seu poder de decisão. Conjugar a necessidade daqueles coitados e dar a eles a esperança, fazendo o que era certo na hora certa, era o que lhe rendia a posição de liderança.

- O novato é corajoso. Admitiu Sebastião.

Reginaldo raspou a garganta e cuspiu o bolo de fumo no chão. Todos entreolharam-se.

- Você tem uma arma. Indagou Reginaldo a Severino.

- Tenho meu facão. Do que mais poderia precisar?

Reginaldo sorriu - Sebastião – gritou ele – acompanha o faminto. Um preá não faria mal a ninguém. Mas tomem cuidado há sempre um pistoleiro pronto para atacar um Sem-Terra descuidado. Sarapião – continuou – organiza esses barracos é bom que ninguém esteja disperso quando vier o despejo.

3. ARMADILHAS ERA A ESPECIALIDADE DE SEVERINO. E isso não era lá nenhuma vantagem, pois, armadilha devia de ser a especialidade de qualquer sertanejo, afinal não é um hobby é, antes de tudo, um instinto de sobrevivência. É o que define aquele que alcança a velhice, aquele que alcança o casamento, aquele que adquire o direito de ter filhos.

Enquanto Severino escavava a terra em uma trilha qualquer de preá, afim de fazer uma armadilha, Sebastião batia com a unha do dedo indicador na maldita caneca feita de lata de óleo.

- Oxi, oxi, que cabrunco é este macho – Se arretou Severino – Assim você vai espantar os diabos dos preás.

- É um amuleto de família macho. Foi do meu avô, depois foi do meu pai, agora é minha. É para dar sorte. É do tempo que óleo vinha em lata, não nessas porcarias de plástico que existe hoje em dia.

Severino continuou agachado perfurando o solo com o facão. Escutou um forte estalo e não adivinha da unha de Sebastião batendo na maldita caneca de lata. Era muito mais alto. A caneca estourou e não foi por causa da unha de Sebastião. Um tiro havia atravessado a caneca e atingido o tórax do amigo que jorrava sangue feito uma biqueira. Dessa vez a caneca não havia dado sorte. Severino rabiscou o vento com sua arma, com a mesma destreza de quem corre atrás de bicho na caatinga fechada e tem que costurar o caminho com o facão, em tal velocidade que não perca o seu rastro. Não soube o que acertou. Apenas sentiu a pancada na nunca que deixou tudo escuro.

4. ACORDOU.

“Pobre diabo

Não vale o feijão que come

Lhe tirei foi da fome

Assim é que me trata

Maldita família ingrata

Não digo nada, mas sem dizer eu digo

E quando digo não desdigo

À sua família dei abrigo

E agora?

O amigo se faz inimigo

Não digo nada, mas sem dizer eu digo

Assim é que me trata?

Maldita família ingrata”.

O coronel Antônio Bonavides sempre foi admirado por seu linguajar culto. Há quem diga que o dito cujo houvera feito sua própria defesa na Comarca de Nossa Senhora das Dores. E isso não é tudo. Foram duas horas de discurso em cordel, em rimas corretamente entalhadas, capaz de invejar qualquer integrante da Academia de Letras. Capaz de convencer o júri que absolvição lhe dera.

Pois bem. Em que pese o bom manejo do idioma, o coronel vivia em desgosto. Desde a mais tenra juventude um tiro no quadril, obrigou-o ao apoio de uma bengala. Não teve tempo para casamento ou filhos. E para piorar no alto de seus noventa e cinco anos, tinha que proteger suas terras, cujas dimensões desafiavam qualquer lógica matemática, das frequentes invasões. E a tragédia ainda era pior, pois era o último do Bonavides e herdeiro algum desfrutaria de sua fortuna, o que tornava a defesa de seu território um fardo muito maior a ser carregado. Mas, afinal, era seu dever enquanto cidadão de bem, proteger o que era seu.

E o desgosto havia de ser dobrado. Severino filho de Zacarias cuja vida deu na juventude para proteger o coronel de uma emboscada, estava entre os invasores. Aqueles invasores decerto não tinham gratidão, pois toda a economia da região girava em torno das atividades econômicas desempenhadas pelo coronel. O que a bondade do coronel tinha em troca? Invasão de suas propriedades. Acaso haveria culpa ser o coronel o escolhido a prosperar em meio aquela pobreza?

- O que lhe faremos coronel? – perguntou Josué. Gerente dos negócios do coronel.

O coronel acendeu o cachimbo. Tragou-o. Enquanto Severino balbuciava qualquer coisa abafado pela mordaça que lhe cobria a cara.

- Ora Josué. A compaixão não me alçaria a voos tão altos. Servirá de exemplo. A espada da justiça deve pender sobre o pescoço do homem traidor.

***

5. LAMBISCOU A TERRA TENTANDO ROUBAR A UMIDADE DA SOLITÁRIA GOTA CAÍDA. Em vão. Só areia havia, que lhe queimou sem piedade a língua desidratada. Não sabia se era o arame farpado ou as varejeiras que lhe comiam as canelas. As mãos amarradas para trás, impedia qualquer boa ideia de suicídio. Aquele maldito sertão plano sem um precipício para pular.

Haviam três dias que os pistoleiros do Coronel Antônio Bonavides o deixaram a mercê da própria sorte no sertão. Naquelas malditas terras desprovidas de água nem cobra existia para lhe abreviar a vida. Ali. Naquelas malditas terra. Vivia quem queria morrer e morria que queria viver.

Rastejou feito um teiú o quanto pôde.

A lua sempre grande, clareava a noite. Os olhos comidos por mosquitos só enxergavam uma brecha. Como aquelas boas brechadas em Luzia tomando banho no banheiro de lascas de madeiras. Por aquelas malditas brechas podia ver os faróis dos caminhões que seguiam na estrada ao longe e o voo rasante da maldita coruja com a porra de seu canto rouco agourento.

Tema: Sobrevivência

Alex Possamai
Enviado por Alex Possamai em 15/02/2021
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