JAIME, JAMAIS
 
 
Em uma cidade como qualquer outra no interior, havia um menino como qualquer outro do interior, chamado Jaime. Na casa de chão de terra uma pequena jararaca, fugindo da queimada da roça, resolveu se abrigar, e lá encontrou seu destino. Enrodilhada no cesto que servia de berço para criança, a jararaca foi encontrada pelo menino, que sem titubear a pegou pelo pescoço e a esmagou com suas mãos fortes e ossudas. Ele sentiu a pele fria e áspera do animal, sentiu o bicho se retorcer em fuga e raiva, e mais ainda, sentiu o estalar dos ossos, o romper da pele, o bicho parando de tremer até ficar inerte para sempre.
 
 
A mãe chegou, viu a cena, e fazendo vários sinais-da-cruz disse:
 
 
- Valha,meu menino valente! Matou com as próprias mãos, é?! Salvô seu irmãozinho!
 
 
O pai chegou da roça, olhou para o filho cheio de orgulho e disse:
 
 
- Oxi, mas já se vê que é de verdade homi! Agora posso confiar que vai ter um cabra de confiança cuidando da casa quando eu tiver lá pelas bandas do roçado!
 
 
Os outros meninos da vila vinham para ver o bicho morto, e o relato do menino-herói:
 
 
- A mardita ia quase pegando o Betinho, peguei ela pelo pescoço assim ó, e... – fazia o gesto de esmagar e torcer com as mãos.
 
 
Brilhavam os olhos dos meninos, queriam ser valentes como Jaime. As mães diziam “Sejam bons como o Jaime, seus peste!” Os pais diziam: “Pois sejam cabras-machos como Jaime, seus cabeça-de-vento!”
 
 
Jaime ficou famoso, o pai fez para ele um bornal com correia de couro de cobra. Os meninos da vila vinham chamar ele para brincar, só para ver o bornal e ouvir a história mais uma vez. Um dia encontraram uma toca de tatu:
 
 
- Jaime, tu consegue pegá esse tatu, consegue?
 
 
- Oxi, tá perguntando se peixe sabe nadar, é? – disse o menino, correndo para pegar um galho e cavando a toca até achar o bicho.
 
 
- Mata, Jaime, mata! – os meninos diziam em coro.
 
 
Jaime tentou espetar o bicho, mas o couro era duro demais. Tentou esmagar o pescoço, mas o bicho se enrolava, protegendo a cabeça. Então ele resolveu pegar uma pedra, a mais pesada que ele conseguia, e com a pedra o esmagou. Saiu sangue e tripa para todo lado. A meninada foi ao delírio!
 
 
- Jaime é o melhor!!!
 
 
E Jaime sentia-se o melhor. As “caçadas” foram se seguindo uma após outra, Jaime ostentando os pequenos troféus. O rabo do tatu virou o cabo da faca que ele usava na cintura, junto com o bornal de couro de cobra. 
 
 
Os meninos foram crescendo. O filho do seu Heitor da farmácia foi para a capital fazer o ginásio, o resto foi parando de estudar, assim como Jaime. Um a um começaram a trabalhar na roça, mas ainda arrumavam um tempo para as caçadas nos fins de semana. Uma vez seu Jorge disse que tinha uma onça rondando o gado, e lá foram os oito caçadores se enfiar na matinha atrás do bicho sem avisar a ninguém.  Jaime pegou escondido a espingarda do pai.
 
 
Tinham saído antes do sol nascer, seguindo o rastro. Encontraram o animal quase de noitinha, na entrada de um grotão. Alguns rapazes quiseram voltar, avisar os adultos que encontraram a onça, e que eles lidassem com isso. Outros não.
 
 
- Oxi, vá lá Jaime, tu consegue! – eles diziam.
 
 
Jaime inflou o peito de coragem e foi fazer o que sabia melhor: caçar bicho. Nessas horas uma frieza estranha se apoderava dele, os sentidos à flor da pele. Cada passo era calculado, suas juntas nem estalavam. Se esgueirou até uma pedra, olhou, mirou. Soltou o ar cautelosamente antes de puxar o gatilho. O som do tiro ecoou no vale todo, assustando os meninos. Eles não tinham certeza se Jaime conseguiria. Jaime, porém, nem titubeou: andou em direção à grota sabendo que tinha acertado o tiro, os meninos correndo para alcançá-lo.
 
 
O animal agonizava com um tiro na garganta, fazendo um som meio rugido meio gorgolejo, o barulho arrepiando quem estava lá para ouvir. Jaime engatou mais uma bala, dessa vez de perto, e estourou a cabeça do bicho com um tiro final. O grupo foi à loucura!
 
 
- Oooooxente, Jaime, mas num é que tu matô ela MEEERMO!
 
 
Foi quando eles ouviram um miado, quase imperceptível na algazarra geral. Jaime pediu silêncio, todos pararam. Eles ouviram mais uma vez, bem baixinho. Jaime adotou aquela estranha postura de andar quase agachado sem fazer barulho, os outros gelaram, imóveis.  Seriam duas onças? Será que dessa vez Jaime também iria acertar?
 
 
Jaime apontou a espingarda para trás de uma moita e ia atirar, quando viu um filhote de onça ali escondido.
 
 
- Cê vai matar vai, Jaime? – eles perguntaram.
 
 
- Mió matá antes que cresça! – ele respondeu.
 
 
E então pegou uma pedra de bom tamanho, a ergueu e arremessou contra a cabeça do filhote.
 
 
- Arre, Jaime, porque cê num atirô?
 
 
- E eu lá ia gastá bala cum isso?!
 
 
Naquele dia eles voltaram da mata como heróis, carregando a carcaça da onça e do filhote. Jaime quis carnear sozinho os bichos e curtir o couro, para vender. Mas o filhote, ele pediu para a mãe preparar assado, e comeu sozinho. Ele se deliciou com aquela carne macia, e sentiu que merecia aquele privilégio. Fez um cordão com os dentes da onça, para dar sorte.
 
 
E foi aí que sua sorte realmente mudou. Sua bravura foi reconhecida pelo delegado, que o chamou para trabalhar. Já tinha idade de aprendiz, e em poucos anos no serviço já era sargento. Seus amigos o invejavam e o povo confiava nele. Fosse de onça ou fosse de gente, Jaime os protegeria.
 
 
As moças também se encantavam pelo forte e valente Jaime, muitas sonhavam em se casar com ele. A filha de um mascate foi uma delas. Um dia, quando as carícias entre os dois aqueceram, ela pediu para parar. Jaime ficou indignado!
 
 
- Como assim, tu num me qué?
 
 
- Não agora, amado de Deus, não aqui...
 
 
- Eu podia tá cum quarqué menina da cidade, eu escolho tu e tu me vem cum essa?
 
 
- Não, paixão, é que...
 
 
- Se tu num me quiria, porque veio cá?
 
 
E continuando as carícias, violentamente conseguiu o que queria. No fim, ainda cuspiu em direção da moça e disse:
 
 
- Rapariga!
 
 
Quando chegou em casa, chorando, a menina contou à mãe.
 
 
- Oxente, tá doida, minina, nem me inventa uma prosa dessa! Jaime é moço de respeito, ele num faria isso não! – respondeu a mulher.
 
 
Ninguém acreditou na garota. Jaime falou aos amigos que a moça quis, mas ele não. Os amigos fizeram questão de espalhar, fazendo a moça ser expulsa de casa. O pai lhe deu uma surra “pra aprender a num mintir” e a não “ficá de safadeza antes do casamento”.Nunca mais se teve notícia dela.
 
 
Pouco tempo depois, Jaime casou com a recatada filha do açougueiro, ninguém lembrava mais da indecente filha do mascate. Jaime pedia todo dia à mulher a melhor peça de carne que pudesse ter no jantar. A carne estava cara, mas ele não se importava: queria sempre malpassada e feita na hora. Ele se fartava de carne, mas sempre lembrava da carne da onça, que não havia igual. Ele tentou voltar a caçar, indo cada vez mais fundo na mata, mas não encontrava nenhuma onça. Então caçava o que encontrava, e experimentava cada carne na esperança de encontrar algo tão delicioso. Nesses jantares de caça sempre chamava os velhos amigos para compartilhar a carne e as histórias, gabando-se de cada fato, absorvendo cada gota de idolatria que eles lhe ofereciam tão prontamente.
 
 
Certo dia um homem estranho se mudou para as redondezas. Ele não trabalhava na cidade, vivia de um pequeno roçado e da caça de pequenos animais. Nessa época pequenos furtos começaram a acontecer na cidade. Ovos de um galinheiro, peças de roupa de um varal, uma enxada de um roçado. As pessoas imediatamente culparam o forasteiro. “As coisa num tão mais como antigamente!”, elas diziam.
 
 
Jaime foi verificar as acusações, mas no casebre do homem miserável não havia nenhum dos objetos cujo roubo havia sido relatado. Tempos depois veio morar também uma mulher com o forasteiro, e a cidade entrou em desespero. “Virô moda agora, é?!”, eles diziam. Mais e mais queixas de roubo: Panelas de cobre, um par de botas, uma saca de farinha. Mais uma vez, Jaime checava e nada encontrava. Mas ele sabia, no fundo ele sabia, que só podia ser o forasteiro.
 
 
Uma noite seus amigos de caçada disseram:
 
 
- Temo que dá um basta nisso, mostrá que aqui tem homi de fibra! Temo que mostrá que aqui num é lugá pra essa gente vagabunda. Daqui a pouco nossa cidade vira bagunça, casa de pecado, como é lá na capitar!
 
 
E combinaram de dar um “susto” no forasteiro. Chegaram de madrugada, com panos cobrindo a cara. Despejaram gasolina em volta do casebre. Dois homens entraram na casa chutando a porta, arrastando lá de dentro o homem e a mulher miseráveis, dando chutes e pontapés. Um deles acendeu o fogo, e o incêndio começou. A mulher gritava algo em uma língua esquisita, que eles não entendiam muito bem. Os homens tratavam de sufocar e imobilizar a mulher. O homem jazia aparentemente morto no chão.
 
 
- Mi bebé, mi bebé! – ela gritava, tentando se levantar e voltar para o casebre.
 
 
- Essa fia do cramunhão qué bebê, alguém traz pinga pra essa rapariga! – Jaime disse, e a turba gargalhou alto.
 
 
No meio do crepitar do fogo começando a devorar a madeira barata Jaime ouviu um som distinto, e fez um gesto para que os outros parassem. Andando em sua postura de caçador ele foi em direção ao do que restava ainda de pé do casebre, as chamas já subindo vorazes. Foi quando ele viu um pequeno cesto cheio de panos, com algo se mexendo e chorando lá dentro. Jaime entrou rapidamente, pegou o bebê no colo e saiu.
 
 
- Gracias, gracias señor! Dá-me mi hijo! – a mulher gritava, sem que eles entendessem o significado.
 
 
Tomado por uma estranha visão, Jaime olhou e viu diante de si não uma mulher, mas uma onça, pronta para atacar sua cidade, roubar seu gado. E sem pestanejar, ele encostou o cano da espingarda na fronte da mulher e atirou à queima roupa. Miolos e sangue atingiram o rosto dos homens em volta que, até então, estavam felizes com aquela caçada.
 
 
Ficaram todos mudos de espanto, mas ninguém ousou contestar. Jaime devia ter suas razões...
 
 
Jaime olhou a criança em seus braços, pouco mais que um recém-nascido, seu choro baixo parecia um miado. “Filho de onça, oncinha é”, ele pensou. Pôs a bebê envolto em trapos no chão e foi buscar uma pedra de bom tamanho..
 
 
- Oxi, cê vai matá é, homi de Deus?! -  Disse Tião, um dos amigos.
 
 
- Mió matá antes que cresça!
 
 
E sem titubear esmagou a pequena cabeça do bebê. O chorinho cessou de súbito. Só o crepitar alto das chamas no casebre inundavam agora os ouvidos dos presentes.
 
 
Tião gritou e saiu correndo apavorado. Os outros, como que em transe, olharam uns para os outros e repetiram: “É issaí, mio matá antes que cresça!”; “Já imaginô um bocado deles aqui?”
 
 
Jaime olhou aquele corpinho de criança-onça e lembrou do quão maravilhosa era aquela carne, a melhor que já comera. E teve uma vontade estranha de devorá-la ali mesmo, totalmente fresca e malpassada.
 
 
Pedro, como que despertando do transe, fez uma cara de espanto, virou para os outros e disse:
 
 
- Credo em cruz, isso ta errado! Cês num vão fazê nada, não é?!
 
 
- Ah deixa o Jaime... Ele é assim mermo! É um cabra meio bruto mermo – os outros disseram, anestesiados.
 
 
Os dentes de Jaime não eram apropriados para comer carne crua, então ele teve uma estranha vontade de que seus dentes fossem maiores e mais afiados. E assim se fez. Olhou para mais um amigo batendo em retirada, de cavalo, e desejou ser veloz como um cavalo para alcançar aquele covarde e comer a carne dele. E assim se fez. Caiu no chão, a cara lavada de sangue da criança, se retorcendo diante da mudança que vinha de dentro para fora. Cascos de cavalo lhe cresceram nos pés. Garras longas lhe surgiram nas mãos, os dentes afiados e mortíferos, os olhos luminescentes como de um felino, enxergando na escuridão como se fosse luz do dia. Completando a monstruosidade que era a externalização dos seus impulsos, um par de chifres cresceu para coroar sua cabeça.  Ele olhou para seu patético grupo de amigos, agora apenas três deles, tremendo e chorando diante da criatura bestial. Jaime sentiu ódio e desprezo por aqueles inúteis, e com um único golpe de garras lhes arrancou a cabeça, urrando em direção à estrada por onde o resto dos covardes fugia. Ele não iria persegui-los pela estrada, conhecia bem aquelas paragens. Foi por dentro da mata, direto para a cidade.
 
 
Na cidade, Tião chegara primeiro, procurando o Delegado para dizer:
 
 
- Jaime endoidô, ele mato os forasteiro lá na estradinha e matô o neném também!
 
 
-Oxi, mas que história é essa, Jaime jamais faria tal façanha! Eu confio minha vida a ele, e que bebê é esse que tu tá inventando aí, Tião?
 
 
- Pois, pode acreditá, seu Delegado, eles tivero um bebê, Jaime matô!
 
 
- Impossível! Tu ta querendo acabar com a vida de um cristão? Não fala isso em voz alta, homi de Deus!
 
 
Pedro chegou em seguida, branco que nem papel, gritando umas coisas sem sentido:
 
 
- Jaime comeu! Ele comeu!!!
 
 
- Comeu o quê, homi?! – perguntou o delegado.
 
 
- Ele comeu um bebê!!!
 
 
- Mas vê se pode! Cês dois andaro mermo abusando da pinga, né possível! – disse o delegado, indo calmamente fechar as portas e janelas da delegacia.
 
 
Foi quando ouviram ao longe um trotar de cavalos e um grito:
 
 
- Besta-Fera!!! Besta-Fera!!! Jaime virô Besta-Fera!!!
 
 
Era tarde da noite, mas o berro apavorado fez a cidade acordar e irem para as portas e janelas. Pouca coisa acontecia na cidadezinha, mas quando acontecia ninguém queria perder nenhum detalhe.
 
 
Tião e Pedro resolveram sair e também gritar o que tinham visto.
 
 
- Jaime virô assassino de criança! Jaime comeu um bebezinho!!!
 
 
Murmúrios das janelas e portas se ouviam:
 
 
 “Impossível!”
 
 
“Deve de tá tudo bêbado!”
 
 
“Jaime, jamais!”
 
 
E começaram a gritar para os homens:
 
 
- Sai daí!!! Vá durmir! Vá arrumá o que fazê, seu doido!!
 
 
Subitamente, vindo da mata ao lado da cidade, ouviu-se um urro de bicho e um trotar de cavalos. Uma algazarra infernal de cães latindo e uivando acompanhava o som tenebroso. Um par de olhos amarelos brilhou na escuridão, se aproximando velozmente.
 
 
- Besta-Fera!!! - Alguém gritou, e todos correram a se trancar em casa.
 
 
Porém já era tarde demais para aquele lugar. A Besta-fera os devorou; um a um, os devorou. A Besta-Fera sempre esteve lá, eles a protegeram, a escolheram, a idolatraram. Até que, enfim, viraram combustível para a fome insaciável da criatura. E quando não restou mais nada para se comer no vilarejo, nem bicho nem gente, a Besta-Fera voltou à forma humana, tomou um banho, se vestiu. Sentiu que poderia conquistar cidade por cidade. Quem sabe todo país?




Tema: Folclore.




Nota do autor:
A Besta-fera é uma criatura do folclore português, trazido para o Brasil na colonização. Não pertence a nenhum estado ou região brasileira específica, portanto. A palavra Besta-fera pode tanto se referir à criatura folclórica, quanto ser sinônimo de pessoa extremamente cruel, sem coração. Em Portugal a palavra também era usada para se referir a revoltas pupulares extremamente violentas.
Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 15/02/2021
Reeditado em 15/02/2021
Código do texto: T7185218
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