O Jardim de Lúcifer - CLTS 14

O homem de barba rala caminha com rapidez, seus passos erráticos irradiam medo e insegurança. Sua respiração está ofegante e ele não confia mais nos seus sentidos. O suor que escorre dentro de seu traje desconfortável parece se misturar com as mensagens contraditórias que sua mente processa: algo sobre uma mulher que um dia lhe deixou esperando para um jantar a luz de velas e o medo de encontrar a coisa que habita aquele lugar maldito.

Sempre foi assim, nas piores situações, nos conflitos mais desgastantes ele costumava ficar focando e desfocando do problema. Uma espécie de jogo mental. Se isso de fato ajudava em alguma coisa ele nunca parou para pensar. E ali naquele lugar estranho não era diferente, lembranças de coisas antigas se misturavam com a expectativa e a tensão de se deparar com algo que ele sequer sabia nomear.

É muito tarde para se arrepender de ter aceitado tal empreitada. Ele está muito longe de casa e sequer sabe que lugar é esse aonde veio parar. Enquanto corre de maneira atabalhoada fica pensando se o melhor não seria simplesmente fechar os olhos e só abri-los quando tudo aquilo já tivesse sido deixado para trás.

Os belos jardins já haviam ficado para trás, bem como uma parte importante de sua sanidade mental. Agora algo incompreensível estava atrás dele.

***

Quando aquela coisa surgiu próxima à órbita de Marte o mundo ainda discutia quem tinha razão na escaramuça envolvendo as duas maiores potências. Uma coisa idiota, mas com muitas mortes. A hegemonia sobre algumas ilhotas no oceano Pacífico compensava o sangue derramado? Tinha sido um conflito rápido, mas o suficiente para mostrar ao mundo que ainda havia um longo caminho a ser percorrido até a convivência justa e harmoniosa entre os seres que dominavam o terceiro planeta a partir do Sol.

Pouco tempo após o conflito sino-americano a Terra foi atingida, durante alguns milionésimos de segundo, por uma poderosa rajada de ondas de rádio Este evento iluminou radiotelescópios espalhados na Ásia, América do Norte e África. Os sinais rastreados indicavam uma região do sistema solar próxima ao planeta Marte.

As fotos obtidas pelos telescópios espaciais Copérnico e Lao-Tsé sugeriram inicialmente a presença de um miniburaco negro, mas isso não se confirmou. Aquele estranho evento emitia sinais de rádio em uma frequência específica e em ciclos que, em hipótese alguma, poderiam ser naturais. Aquilo que surgiu repentinamente em nosso sistema solar não parecia ser uma força da natureza.

Nunca se soube quem lhe deu o nome e nem como surgiu, mas de repente todos só chamavam aquela coisa de Olho de Lúcifer. A rede mundial de computadores ficou congestionada com os milhões de informações e especulações compartilhadas entre as pessoas. Comunidades de todos os tipos discutiam o que era aquela coisa que surgiu do nada e que havia deixado os cientistas, governantes e autoridades religiosas em polvorosa.

Muitos tinham medo de afirmar, mas aquilo próximo de Marte provavelmente havia sido criado por uma inteligência desconhecida e era um evento com forte potencial para causar grande comoção social.

Explosões rápidas de rádio sempre estiveram entre os maiores mistérios do universo. O problema é que elas sempre foram rastreadas a partir de conglomerados estelares distantes. Essas agora estavam praticamente em nosso quintal e demandavam uma completa e cautelosa investigação.

***

Após mais de setenta milhões de quilômetros e três longos meses de tédio, checagens constantes de múltiplos instrumentos e muitos exercícios físicos para diminuir a perda de calcificação, três solitários astronautas divisavam pela escotilha da nave a presença avermelhada de Marte. Lá embaixo estava um planeta muito frio, árido e rochoso. Próximo a ele, com um diâmetro apenas ligeiramente maior do que o seu satélite Deimos, encontrava-se algo desconhecido, com um aspecto bonito, mas também ameaçador.

Pouco mais de um século após o início da era espacial um artefato humano aproximava-se de um fenômeno completamente desconhecido para a ciência humana. A comunicação entre a solitária nave e sua base na Terra levaria longos dez minutos e meio. Qualquer dificuldade ou problema que pudessem surgir não seriam resolvidos em tempo real.

Três homens tripulavam a ATENA. Homens muito diferentes entre si e que tiveram apenas o tempo do treinamento para se conhecerem: um mês. Provavelmente eles não eram os mais capazes que havia no grupo multinacional selecionado, mas foram os únicos que se ofereceram para aquela jornada quando os demais haviam se mostrado receosos.

Três astronautas ansiosos mal viam a hora de começar a descobrir um pouco mais daquilo que, até agora, se mostrava fora de tudo o que já havia sido catalogado em termos de mistérios do espaço.

As primeiras imagens enviadas foram captadas a uma distância que se presumiu ser segura, de apenas seis mil quilômetros. Percebia-se de maneira nítida uma estrutura parecida com um redemoinho, alaranjado nas bordas e escurecido no centro. Era inegável que aquilo lembrava em muito um globo ocular, mas era justo também dizer que ele causava uma forte impressão de estranhamento que sobrepujava a beleza de sua forma.

Na Terra essas imagens resultaram em um aumento significativo na frequência às igrejas.

Usando uma órbita na altura de Fobos e Deimos a ATENA enviou um pequeno veículo dotado de detectores para captação de raios cósmicos, magnetômetros, câmeras de diversos tipos e equipamentos para detecção de partículas variadas. Os dados obtidos propiciariam meses de análise e debate para a equipe em terra.

A segunda parte da investigação pressuponha uma abordagem humana. E assim foi feito. Um dos tripulantes permaneceria na ATENA e os demais iriam ao encontro do fenômeno.

O módulo de exploração encontrava-se a menos de quatro mil quilômetros de distância quando o inusitado aconteceu. Sem nenhuma espécie de sinal que pudesse ser detectado ele simplesmente foi sugado em direção àquele vórtice espacial. Em segundos, de maneira completamente inexplicável, ele sumiu das telas.

A estação de comando na Terra levou aproximadamente dez minutos para receber a informação do sumiço do módulo de exploração. Outros dez minutos foram necessários até o sinal de comunicação por laser ser recebido pela ATENA. O teor da mensagem era claro: se após vinte e quatro horas, tempo da Terra, não houvesse nenhum indicio dos dois astronautas desaparecidos, um artefato contendo uma pequena ogiva nuclear seria disparado em direção ao Olho de Lúcifer.

***

Dentro do módulo, dois astronautas despertam de um estranho sono. Ainda atordoados descobrem que quase todos os equipamentos estavam misteriosamente inativos. Navegação, comunicação e pesquisa estavam inertes. Apenas o suporte de vida funcionava integralmente. Alguma coisa parecia ter desligado tudo dentro da pequena cápsula.

Havia uma intencionalidade em tudo o que tinha ocorrido até então. Estava claro que algum tipo de inteligência extraterrestre os havia capturado. Onde eles estavam? Que lugar era aquele? Existia uma atitude hostil? Qual era o objetivo de tudo aquilo? As perguntas iam se acumulando...

Em uma rápida confabulação decidiram que uma exploração do ambiente se fazia necessário.

Mesmo achando que a atmosfera daquele lugar era semelhante a da Terra os dois exploradores resolveram sair utilizando os trajes para atividade extra-veicular. Não se sentiam muito confortáveis dentro deles, mas a segurança era essencial naquelas circunstâncias. Completamente vedados, permitindo uma melhor movimentação e contando com baterias, ar e sistemas de filtragem de gás carbônico duplicado os novos trajes fizeram os astronautas se sentirem mais confiantes.

Os primeiros passos fora da segurança da nave mostraram que eles pisavam em uma relva muito macia, tão macia que pensaram em se despir dos trajes e ficarem rolando nela. A paisagem que se vislumbrava encantava aos sentidos. A sua frente estava um imenso jardim onde pontificavam flores multicoloridas em nichos espalhados harmoniosamente. Pequenas árvores em cores violácea, azulada e amarelada entremeada por muros de cerca viva perfaziam um mosaico de rara beleza. Um céu azul claro e sem nuvens fornecia a pincelada final para aquele quadro.

Os exploradores, de maneira cautelosa, coletaram folhas, lascas de árvores e areia. Colocaram tudo em recipientes hermeticamente vedados.Dois fatos lhes chamaram a atenção: não perceberam a presença de insetos ou outras formas de vida e nem notaram movimento nas folhas das árvores indicando a existência de ventos. Aquele era um mundo esquisito.

Os astronautas caminhavam cautelosamente por entre o labirinto de cercas vivas quando, ao dobrarem uma pequena bifurcação, se depararam com algo que os fez estancar de súbito.

O que os exploradores divisavam à sua frente era algo inusitado e surpreendente: uma estátua de um homem montado em seu cavalo. A harmonia dos detalhes chamava a atenção, os entalhes de uma precisão que saltava aos olhos. “O artista que fez essa escultura deve ter tido um trabalhão danado”, essa frase proferida por um dos astronautas foi seguida por outra: “é como se ela estivesse quase viva”.

Aquela estátua parecia não ter sido feita com nenhum material conhecido. Não era algum tipo específico de pedra, não era metal ou argila, muito menos plástico o que foi usado para a sua construção. Havia algo naquele conjunto que incomodava aos dois astronautas. Demorou um pouco até atinarem com o que era. O que havia lhes deixado pasmos era a posição em que se encontrava o cavaleiro e seu animal: eles foram retratados no exato instante em que estavam iniciando um retorno. Como se o escultor tivesse decidido que o cavaleiro deveria voltar imediatamente. O mais certo não seria esculpir ambos em uma posição altiva e não naquela que parecia mais uma fuga desesperada?

Eles já tinham caminhado centenas de metros naquele imenso jardim e sentiam a curiosidade arder. O que significava uma estátua de um cavaleiro perdida em algum lugar próximo da órbita de Marte? Aquilo não fazia sentido.

O que eles iriam avistar logo adiante os deixaria com a curiosidade mais aguçada ainda.

Era nítido que a escultura que eles viam não retratava um ser humano. Olhos incrivelmente grandes e situados quase ao lado da cabeça lembravam muito alguns lagartos do deserto. A expressão de pavor na face daquela estátua deixou os dois exploradores com a respiração em suspensão. A criatura esculpida tinha uma estrutura física maior que um ser humano e em uma de suas mãos segurava um objeto estranho, muito parecido com um relógio de parede, só que com quatro ponteiros.

Os dois astronautas, treinados para analisar friamente dados e situações diversas encontravam-se perdidos em mil conjecturas. Nenhum dos dois falou em medo, mas em cada um deles surgiu uma sensação desagradável desencadeada pela percepção de um perigo real, como se uma coisa ancestral estivesse presente naquele lugar, algo que se situava para além da compreensão humana.

Seguindo em sua jornada o que eles viram em seguida faria a alegria de toda a comunidade de paleontologistas do mundo. Três seres, um macho, uma fêmea e seu filhote estavam ali, como que congelados. O macho segurava de maneira agressiva um osso longo, provavelmente o fêmur de algum grande mamífero, logo atrás dele a fêmea segurava no colo o filhote. Estava mais do que claro que aquelas criaturas eram semelhantes aos ancestrais dos humanos atuais. Baixos e atarracados pareciam estar se defendendo de algum tipo de ameaça.

O que aconteceu nos próximos minutos não teria uma explicação fácil.

Os astronautas discutiam acerca do significado das estátuas encontradas, sobre quais seriam os próximos passos daquela missão que parecia fadada ao fracasso. Em um dado momento um deles rapidamente desviou o olhar para algo situado atrás de seu parceiro. Levantou o braço para apontar alguma coisa e parou. Em um tempo muito curto parou de falar e ficou imóvel.

O astronauta restante imediatamente deixou de ouvir a voz de seu companheiro na radiofonia do capacete. Percebeu que este assumia uma posição de completa paralisia. Tocou com força em seu braço e não obteve reação alguma. Gritou alto pelo rádio e não escutou nada. Ao tocá-lo sentiu que seu traje estava com a textura modificada e mostrava-se agora endurecido como se fosse feito de pedra.

Toda a tensão acumulada desde o inicio daquela missão entornou de vez e o astronauta sobrevivente saiu daquele lugar em um arremedo de corrida. Enquanto se precipitava de maneira desordenada agradecia aos céus pelos novos trajes serem mais leves e facilitarem uma melhor movimentação.

***

Sua mente fervilha, ora focando, ora desfocando do horror que acabara de vivenciar. Lembranças pueris de seus anos de adolescência misturam-se com esboços de explicações sobre o que aconteceu ao seu companheiro. Um tipo de energia capaz de causar um dano neuronal permanente? Um microrganismo com propriedades parasitárias desconhecidas? Uma tecnologia com o poder de mapear instantaneamente o código genético de qualquer espécie gerando uma alteração morfológica? Algo intencionalmente maligno?

Ele está cansado e tem medo de estar perdido. Sequer sabe se está indo na direção certa de onde sua nave pousou. Uma dúvida de repente o assalta: a nave é um refúgio seguro contra aquilo que está atrás dele?

Ele não viu o que os atacou, não sabe dizer como é a criatura alienígena, mas sabe que ela está por perto. Algo escondido na porção mais recôndita do sua consciência faz com que ele feche os olhos. Ele não pode e não deve olhar o que está se aproximando. Não existem ilusões agora, pois sabe que não há como enfrentar essa entidade.

Ele fecha os olhos com toda a força do seu medo. Apesar do traje sente que algo parece lamber seu corpo, como se uma língua em forma de bruma lhe invadisse a epiderme. Uma sensação indescritível de ausência de realidade lhe acomete. Ele tenta desfocar o pensamento daquilo que lhe parece amalgamar a sanidade e luta para se refugiar em suas lembranças.

Sua mente voa para uma piscina de águas azuis muito límpidas, risadas e cheiros familiares lhe assaltam, um rosto de mulher surge, uma noite estrelada. Mesmo assim sente-se invadido, como se o lugar mais profundo de sua humanidade houvesse sido revirado de ponta cabeça, como se as mais ínfimas conexões sinápticas que compunham o seu cérebro estivessem sendo dissecadas. Por um breve segundo achou que aquela criatura diáfana estava tentando entendê-lo, como se ele também representasse um grande enigma para ela.

Tão rápida como chegou, a percepção de irrealidade cessou. O astronauta sobrevivente sente que a entidade foi embora, mas para onde ela retirou-se?

Sua mente luta para avivar uma lembrança, algo que explicaria parcialmente a criatura que habita aquele lugar. Ele tem certeza que já leu ou ouviu alguma coisa sobre aquele estranho ser, mas por mais que se esforce é inútil e não consegue lembrar de algo mais consistente.

O astronauta restante consegue finalmente achar a pequena nave de exploração, mas sequer tem tempo de regozijar-se com isso já que sua consciência apaga assim que entra nesta. Ao voltar a si ele se encontra a bordo da ATENA. Deitado em um estreito leito ele se depara com o rosto assustado de seu outro companheiro de missão.

Inexplicavelmente aquela estrutura formidável havia sumido das telas da ATENA. Na Terra ninguém conseguiu dar uma explicação razoável para o que tinha ocorrido. Naquela região do espaço só havia agora Marte e seus dois pequenos satélites.

Restava à humanidade voltar a atenção novamente para os seus problemas domésticos...estes não haviam deixado de existir.

***

Sentado na varanda de sua casa o astronauta, agora sem a barba rala, ainda guarda lembranças muito vívidas de todos os acontecimentos ocorridos naquele estranho lugar, de vez em quando ainda se indaga se aquela entidade não havia levado alguma parte importante dele com ela. Até quando ele iria sentir aquela sensação de incompletude?

Muitas perguntas haviam ficado sem respostas. O lugar onde ele esteve era uma espécie de astronave? Por que as amostras coletadas sumiram quando ele acordou na ATENA? Que força misteriosa faria surgir do nada um ambiente como aquele? Há quanto tempo àquela coisa vagava pelo universo? Qual era a intenção de tudo aquilo?

Ele agora não viajava mais entre as estrelas, contentava-se em ministrar aulas e em apreciar todas as tardes o pôr do Sol ao som de suas músicas favoritas. Algumas vezes ele se pega olhando para o céu e imaginando que em algum lugar do universo existe um jardim com a estátua de um astronauta.

Um dia o Olho de Lúcifer irá retornar e quando isso acontecer ele espera que a humanidade esteja mais preparada para responder a algumas questões.

Quando esse momento chegar ele já terá partido há muito tempo.

TEMA: viagens espaciais/sobrevivência

*Este conto é dedicado aos amigos da Base Lunar.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 20/02/2021
Reeditado em 26/02/2021
Código do texto: T7189148
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