A casa da curva do rio
 
Há certos locais na Terra que não deviam ser habitados. Lugares onde as coisas têm fim, mas nunca início, onde coisas apodrecem, mas nunca florescem. Ninguém sabe muito bem como esses lugares se formam, mas as pessoas sabem que eles existem. Quem estiver atento vai perceber que o ar ali é mais denso, que a temperatura é mais fria ou mais quente do que deveria ser, e que o corpo todo se revolta à permanência ali. Um tremor interno se instala, a pele se arrepia, o sangue foge das entranhas como mágica.
 
 
Mas o ser humano geralmente está muito ocupado em comer e cagar para perceber tais sutilezas. Ele precisa viver, se alimentar, se abrigar, e quem se importa se ali o cheiro não é agradável e a própria luz parece mais embaçada?
 
 
A água é o solvente universal da natureza, ela recebe, dissolve, transporta. A água tem suas próprias regras, a água trabalha, mas ela também cansa. E quando ela cansa tudo aquilo que ela carregava consigo fica pelo caminho, coagulado, viscoso, impregnado.
 
 
Havia uma terra, e nessa terra havia um morro. A água chovia, se infiltrava até o coração do morro e ressurgia mais abaixo na encosta, virando um rio. O rio surgia tímido, acelerava, engrossava, depois cansava e se esparramava. O rio fazia curvas e vencia a planície, mas em certa localidade uma força se interpunha entre o rio e o mar, e ali o rio descansava antes de conseguir, finalmente, fluir. Quando chovia o rio se esparramava pela vegetação, banhava tudo, espalhava ali sedimentos finos do morro e das encostas, para só depois de vários dias voltar para sua morada.
 
 
Homem descobriu que terra era boa ali. Homem fez roçado, fez aldeia. Homem morreu para defender seu roçado. Sangue de homem tocou aquele chão pela primeira vez. Certos locais não deveriam ser habitados. Mas homem precisa comer...
 
 
Então outro homem fez roçado e usou os ossos do antecessor como adubo. E vieram outros homens pelo mar, pedindo terra para plantar. Homem não quis dividir, mas os homens do outro lado do morro acharam melhor se aliar aos homens do mar com tacape de fogo. Naquela noite, mais uma vez, sangue tocou a terra na curva do rio. A terra na curva do rio gostou de mais sangue, sangue a deixava mais forte. Então homem do mar ficou por ali. Certos locais não deveriam ser habitados. Mas homem precisa colonizar...
 
 
Homem precisava trazer mais gente, fundar vila, plantar cana. Homem derrubou a mata do morro pra fazer casa, cabo de enxada e carvão. Homem ficou forte, invencível. Mas então veio a febre e os mosquitos, uma nuvem deles. Homem morreu na própria poça de suor e fezes. Dezenas deles sobre o chão, sem sepultura. A terra da curva do rio comeu carne de homem, e viu que era bom. Certos lugares não deveriam ser habitados. Mas homem precisa lucrar...
 
 
O tempo passou, a água já não brotava com tanta força na nascente. Pelo contrário, corria veloz pelas encostas e se acumulava nos baixios por mais tempo que o normal. A curva do rio desapareceu sob um pantanal. Ali se desenvolveram aguapés e flores, peixes e jacarés, garças e jaguatiricas novamente. Mas homem trouxe mais homens de depois do mar, dessa vez acorrentados. Homem acorrentado tinha cor da noite, e sabia que ali não era um lugar para se morar. “Água morta”, homem negro falou, “Água morta pertence aos mortos”. Homem branco não quis saber, homem branco queria plantar. Colocou negro pra cavar canais e drenar água do pantanal. Os animais morreram, todo peixe, ave e jacaré, e homem branco nem dava conta de comer tanto bicho. A terra da curva do rio então provou carne de bicho, e viu que era bom. Certos lugares não deviam ser habitados, mas homem precisa se multiplicar...
 
 
Homem branco fez comércio e plantação. A fazenda foi  crescendo, mas a terra já não dava mais seu mel para a cana. A fazenda foi virando vilarejo e o vilarejo foi crescendo. O chão de terra foi sendo coberto por paralelepípedo, e já poucas árvores restavam. Aqui e ali casinhas de sapê eram erguidas para os trabalhadores, sempre longe da curva do rio, porém. A curva do rio era perigosa, eles sabiam. E quando nas tardes de verão o céu se fechava em tempestade, todos entravam e fechavam bem as frágeis portas, rezando para que a coisa da curva do rio não chegasse até eles...
 
 
***
Mas então gerações se passaram e o vilarejo cresceu. Ninguém ouvia mais as sandices dos mais velhos, e seus netos resolveram então construir mais além um pouco, perto da curva do rio. A cada geração uma fileira a mais de casinhas surgia, até que chegou lá do sul o “Russo”, como chamavam Franz. Dono de uma vasta cabeleira loira, quase branca, cheio de sardas por trabalhar duro na estiva, era um homem calado que falava com forte sotaque. Ele comprou um terreno grande no fim da rua, próximo à curva do rio, e se pôs a construir. Fez uma casinha de três cômodos muito ajeitadinha e resolveu trazer lá do sul a velha mãe, dona Águida.
 
 
“Mulherzinha do nariz empinado”, diziam as vizinhas sobre a velha. Não se misturava, não ia no mercado do bairro, saía cedo das missas para não ter que conversar. Algumas diziam que era porque ela não falava português, mas era uma mentira que ela não fazia muita questão de desmentir. A verdade é que a velha odiava aquele lugar, ali fedia e o calor era insuportável, mas não tinha com quem ficar lá no sul. O filho a trouxera, e cuidava bem da mãe, mas não ficava dia sequer sem ouvir:
 
 
- Que espelunca tu fizeste pra viver! Lá no sul nossa casa era muito maior! Toda na madeira tratada, tu não fostes capaz de construir uma boa casa de madeira para tua mãe?!
 
 
- Aqui não se faz casa de madeira, mãe...
 
 
- Não fazem por quê?! Deve ser porque essas mulheres imundas daqui têm preguiça de encerar um assoalho!
 
 
- Pode ser, mãe...
 
 
- Mas por que essa casa tão pequena? Não dá nem pra colocar uma penteadeira nesse “quarto” que tu fizeste pra mim!
 
 
- Desculpa mãe, eu só tinha dinheiro pra construir assim, mas eu juro que...
 
 
- Jura nada, seu inútil! Falei que esse negócio de vir pro Rio ia dar errado, não podia trabalhar na roça como todo mundo lá em Santa Maria?!
 
 
- Não tinha emprego, mãe...
 
 
- Não tinha pra um bunda mole como tu!
 
 
Franz sabia que a mãe estava errada, mas por dentro aquela vozinha zombava cada vez mais dele:
 
 
Inútil...”
 
 
Imprestável...”
 
 
Precisava mostrar, precisava provar, precisava calar aquela voz. Decidiu de uma vez por todas construir a maior casa da rua.
 
 
“O porquinho diligente faz sua casa no tijolo e o lobo, furioso, sopra, sopra e perde o fôlego...”
 
 
Franz trabalhava na estiva de segunda a sexta, e na construção de domingo a domingo. Resolveu acrescentar cômodos à sua casa. Uma sala bem ampla. Mais dois quartos, mais um banheiro. Um dia, extenuado, Franz se distraiu e acabou deixando a cavadeira decepar-lhe o dedão. A terra da curva do rio provou suor e sangue, e viu que era bom. Certos lugares não deviam ser habitados. Mas o homem precisava construir...
 
 
Construiu um quarto maior para a mãe, com uma bela penteadeira. A velha fez que gostou, mas reclamava:
 
 
- As janelas são pequenas, aqui não entra sol! E o chão é frio demais no inverno e as paredes quentes demais no verão. Lá em Santa Maria que era bom, devíamos voltar.
 
 
- Não mãe, nós não vamos voltar!
 
 
- Olha como fala com sua mãe! Quer me matar de desgosto?! Estou pensando no teu bem. – dizia a chorosa anciã.
 
 
“Inútil...”
 
 
“Imprestável...”
 
 
Resolveu construir mais dois cômodos: mais um quarto e uma cozinha maior. E um banheiro extra. E colocar fundações para um segundo andar. E colocar piso em tudo, e pintar.
 
 
“O porquinho diligente faz sua casa no tijolo...”
 
 
Naquele ano se mudou para o início da rua a morena jambo vinda do ceará, a Ana. Instalou-se em um cortiço para moças que ficava na outra rua e arrumou um emprego de doméstica. Ela e Franz se conheceram no ônibus, voltando do trabalho. Resolveram se casar.
 
 
- Esta interesseira quer roubar nossa casa! – dizia a velha Águida
 
 
- Não fale bobagem, mamãe, Ana é uma moça ótima!
 
 
Todas as tentativas de aproximação e mediação, porém, falharam. A velha odiava a nora, e dizia que a moça era infiel. A velha todos os dias acordava e ia tricotar na sala grande, sentada na cadeira de balanço. Aos poucos ela foi deixando bem claro quem mandava ali e qual era a parte da casa que cabia à nora: a cozinha e um dos quartos. Ana reclamou com Franz, que resolveu então fazer o que sabia fazer: construiu mais cômodos na casa para a mulher, e deixou a ala antiga da casa para a mãe.
 
 
A casa na curva do rio foi então crescendo de dentro para fora, em camadas, em volta da construção inicial de três cômodos. Os quartos, salas, banheiros e corredores foram ficando cada vez mais abafados e sombrios. Franz abriu basculantes para a lateral do rio para tentar iluminar alguns cômodos, mas por ali só entrava mau cheiro e insetos, então eles permaneciam sempre fechados.
 
 
Mas o conflito na casa não cessou, nem com as duas mulheres tendo cômodos só para si. Em cada ala da casa Franz tinha que ouvir novas reclamações as pequenas vozes em sua cabeça cresciam.
 
 
“Inútil...”
 
 
“Fraco...”
 
 
“Corno...”
 
 
Um dia Franz chegou em casa e Ana não estava mais lá. Resolveu partir, sem bilhete e sem despedida. A mãe disse que ela tinha ido embora com um homem negro e alto, e Franz acreditou. A mãe dizia que tinha sido melhor assim, sem aquela vagabunda na casa, que ele tinha tido muita sorte dela não ter conseguido roubar tudo que ele tinha.
 
 
Ele resolveu se fechar. Secretamente, começou a beber. Voltava para casa cada dia mais tarde. Um dia ele chegou e a mãe estava reclamando que a casa estava fedendo muito e que ele tinha que fechar os basculantes com tijolo. Ele olhou em volta: tudo o que construiu tinha sido em vão. Não conseguira provar para a mãe que era importante, não conseguira manter nem a mulher por perto. A mãe, porém, não percebia a expressão miserável no rosto do filho, nem como subitamente ele fora ficando cada vez mais vermelho, até gritar:
 
 
- CHEGA!!! CALA A BOCA, MULHER, EM NOME DE DEUS!
 
 
Águida ficou atônita, o filho nunca gritara daquele jeito, nem com ela, nem com ninguém. E então Franz caiu duro no chão, se debatendo. A velha chamou os vizinhos, que o levaram pro hospital. Franz tivera um derrame, ficara com o lado esquerdo paralisado. Quando o trouxeram para casa ele ficou de cama, sendo cuidado pela então amorosa mãe.
 
 
- Meu filhinho... – ela dizia – veja o que aquela rampeira fez com você...
 
 
Entrevado...” ele ouvia em sua mente
 
 
Inútil...”
 
 
Broxa...”
 
 
Franz logo no segundo dia fez questão de tentar levantar, não queria ser um imprestável. Mas a força não havia voltado à perna esquerda e ele desabou pesadamente. Com a cara no chão pensou em gritar por ajuda, mas estancou: não queria ser tratado como um inválido. Foi quando ele viu, embaixo da cama, aquele aglomerado de pêlos. E um par de olhos. E uma fileira de dentes cobertas por uma camada de saliva espumosa.
 
 
Saia já daqui, porquinho...” ele ouviu em sua mente.
 
 
Rapidamente tentou se levantar, mas a força vacilou novamente e ele apenas conseguiu emborcar o corpo e se debater como um peixe para longe da cama. Atrás dele, um lento arrastar de unhas pelo chão.
 
 
“Se você não sair eu vou assoprar e assoprar, até sua casa derrubar...”
 
 
Franz conseguiu alcançar uma poltrona e se erguer, arrastando a perna morta, até que se sentou e encarou a criatura. Mas não havia nada ali. Um trovão roncou ao longe e ele se deu conta que estava escuro demais para aquela hora do dia. Vinha uma tempestade...
 
 
***
Quando chovia todo mundo no bairro ficava em alerta, em especial os moradores daquela pequena rua sem saída que dava na curva do rio, a essa altura já rebaixado à categoria de valão. Muitas vezes o nível do rio começava a subir antes mesmo da chuva, e os moradores passaram a usar o olfato para identificar o que eles chamavam de “cheiro de rio”, que na verdade era o sedimento do fundo sendo revolvido pelo aumento do volume e da velocidade das águas. E quando a água revolvia o lodo do fundo, coisas costumavam aparecer.
 
 
A casa de Franz era a mais vulnerável de todas, pois o muro e as fundações da casa estavam diretamente na curva do rio, onde a água fazia a curva com violência em dia de tempestade.
 
 
O nível da água subia e às vezes invadia o quintal de Franz, mas nunca tinha invadido a casa. O quintal era um vasto matagal de capim, que Franz já desistira de tentar manter limpo. Teria que cimentar o terreno se quisesse manter o mato longe, e não tinha dinheiro para aquilo no momento.
 
 
Mas naquele fim de tarde a água venceu o limite do batente e entrou. Na verdade ela entrou antes, pelo ralo do banheiro: uma água turva e fétida começou a aparecer no box e a subir lentamente, transbordando pelo resto do banheiro e pelo corredor. A água da porta dos fundos veio logo depois, se encontrando com a do banheiro e formando uma só lâmina de lama cobrindo pouco a pouco cada centímetro do piso branco daquela casa. Dona Águida gritava, desesperada, tentando, em vão, empurrar a água com um rodo para fora. Até que, em determinado momento ela desistiu, e apenas chorou. Franz não podia fazer nada, mas também não queria fazer nada, sentado na poltrona e sentindo a água chegar a seus pés e subir pela sua canela.
 
 
 “Foda-se essa casa”, ele pensou. “Foda-se isso tudo!”.
 
 
Foi quando ele ouviu a voz de Ana no corredor. Ela cantarolava uma canção do ceará com aquele sotaque lindo dela, e Franz de repente se encheu de vida novamente. Resolveu ir atrás, dessa vez certo de que conseguiria, e conseguiu: se levantou e saiu arrastando a perna esquerda pelo corredor. E lá estava a silueta dela, na luminosidade fosca do fim de tarde tempestuoso, aqui e acolá se iluminando com os relâmpagos. Ele arrastou sua metade morta atrás dela, enquanto ela se movia para longe dele lentamente, ainda cantando. Ana prosseguiu pelo corredor, passando pela sala, onde Águida rezava um terço, desconsolada, em sua cadeira de balanço. Águida não se incomodou com a presença da nora, mas se espantou com a presença do filho de pé.
 
 
- Volta pra cama, menino! Sai dessa água imunda! Vamos rezar pra passar.
 
 
Mas ele não deu ouvidos, apenas continuou. Ana prosseguiu em direção à cozinha. Franz foi atrás. Ela atravessou a cozinha em direção à porta dos fundos e ao quintal, que já se tornara um com o rio. E então ela entrou na correnteza. Franz foi atrás. Ele a seguiria até o fim do mundo, pra longe daquela casa maldita, mas sua mãe o agarrou, desesperada, mandando ele voltar. Ana se virou uma última vez, o chamando. Ele percebeu que tinha algo errado com ela, uma marca no pescoço, e então estancou. Olhou para a velha mãe, agarrando seu pulso como uma torquês, aquelas garras ossudas cobertas por uma pele ressecada, dizendo:
 
 
- Você está doido!? Volta pra casa!
 
 
E então quando ele olhou novamente a correnteza já tinha levado Ana.
 
 
Franz olhou a casa. A casa estava dentro do rio. Alguns lugares não deveriam ser habitados...
 
 
 
 
 
 
 
 
Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 21/02/2021
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