A CAIXA - CLTS 14

Acredito ser o quarto dia, eu tenho fome, sede, minha memória com certeza está afetada e eu não consigo entender muito bem o que está acontecendo. Aqui faz frio, não enxergo nada, não ouço barulhos. Pela única fresta que eu consigo alcançar subindo nesse velho banco, só percebo o horizonte. Gritei muitas vezes, mas nunca recebi retorno.

Não ouço ninguém, acredito que não haja ninguém, eu não sei como eu vim parar aqui.

Eu vejo amanhecer, eu vejo anoitecer, mas ninguém vem ver como eu estou. Quem me colocou aqui? O que eu fiz para estar aqui? Isso parece uma prisão de 4 paredes, mas não tem portas, o que é isso?

Apenas uma abertura no alto de uma parede, um pedacinho de rua, ou seja lá o que houver do outro lado. Estou confuso, existe um espaço em branco. Será que fui drogado? Por que estou preso?

Simplesmente acordei neste lugar horrível e desde então nem um mísero som, nadinha, uma completa e gigantesca solidão. Eu sei que sou casado e tenho uma filha, mas o que aconteceu com elas? Será que ninguém notou a minha ausência? O que está acontecendo? Eu estou enlouquecendo. Tem alguém aí? Tem alguém aí?

Nada, como sempre, eu não sei porque eu insisto em gritar. Vamos Mark, pensa. Eu estava em casa, com minha esposa e minha filha, rotina normal, empresário na bolsa de valores, vida confortável, nada de mais. Levantava, saía, voltava. Pensa Mark, o que aconteceu para você parar aqui? Será que eu fui sequestrado?

Socorro alguém me ajude! Por favor, eu não aguento mais.

Onde estão as pessoas? Preciso sair daqui! Não tem comida, não tem água.

Oh senhor, se existe algum ser me ouvindo, me ajude! Por que está acontecendo isso comigo?

Vou morrer aqui, meu corpo dói, meu estômago dói, tenho muita fome, estou desesperado, eu não tenho mais forças, se conseguir dormir talvez a fome passe um pouco.

Isabelle o papai te ama filha, que saudade! Quero minha vida de volta, nunca fiz mal para ninguém. Deve ter sido pelo meu dinheiro, deve ser um sequestro, mas se não tem portas, por onde entrei? Será uma conspiração? Não consigo mais raciocinar direito.

Eu sei que hoje é o quinto dia, ou pelo menos eu suponho que é, eu vejo a claridade e vejo escurecer, sinto esse cheiro úmido, tão úmido que quase consigo sentir o gosto. Minha respiração está fraca, muita tosse, deve ser a umidade e o chão gelado onde durmo.

O único ruído, é o som da minha voz enquanto falo, com certeza é coisa de maluco. Mas o que é certo ou o que está certo, eu não sei mais, se em algum momento achei saber, me enganei. Em um dia na minha casa, no meu trabalho, e de repente aqui, definhando, morrendo, num lugar que eu não sei onde é, e um por que que eu talvez nunca saiba.

Lembro de lutar no primeiro dia em que acordei, bati nas paredes, é por isso que as minhas mãos estão machucadas, agora me lembro. Eu preciso me lembrar, minha sanidade está comprometida. No segundo dia esperei, apenas esperei. No terceiro dia, lembro de estar com muita fome e muita sede, minha garganta doía e minha voz se perdeu de tanto gritar.

No quarto dia veio o completo desespero e os porquês sem respostas.

Agora é o final do quinto dia e eu não tenho ideia de como será amanhã, mas sem comida, sem água, com os meus dedos infeccionados, as coisas não ficarão melhores, pelo contrário, acho que estou com febre. Eu já arranhei, bati, gritei, meu corpo todo tem feridas, devem ter sido causadas pela umidade e com toda essa imundície que tem aqui em minha cela sem banheiro, não me surpreendo. E ainda tem esse cheiro terrível que queima como fogo.

Minhas lágrimas já secaram, acho que hoje é o sexto dia ou sétimo, não tenho certeza.

As forças se foram, não sobrou nenhuma, nem para falar, mas eu continuo, às vezes somente com gemidos. Fui preso, mas não tem carcereiros? É um sequestro, mas querem que eu morra?

Que espécie de sádico é este, que joga um ser humano assim, num quadrado desses, um buraco sem saída, sem nenhum motivo? Sem nem ao menos vir aqui para ver se morri?

E se quem morreu foram eles? Meu Deus!... Ninguém virá? O mundo acabou?

Minha esposa e minha amada Isabelle, me perdoem. Não poderei fazer mais nada, tenho certeza que não aguentarei por muito tempo, eu prefiro morrer. Acho que é noite, então bons sonhos filha, papai te ama, mas agora preciso dormir.

Em outro lugar, a grande tela de transmissão na parede escurece e as luzes se acendem focadas em um púlpito:

- Então senhores alguma pergunta?

- Eu tenho! Como isso é possível Doutor, e, porque não manter a memória original?

- Estimados senhores da imprensa, algumas memórias originais devem ser de certa forma, não apagadas, mas sim, selecionadas, ou em alguns casos, induzidas. Observem da seguinte forma, os psicopatas na sua maioria são desprovidos de culpa ou qualquer outro tipo de sentimento empático, humano ou de arrependimento, sendo assim o aprisionamento não tem o efeito punitivo desejado sobre eles. Já em pessoas tidas como normais, como no caso do SR. Mark como bem pudemos observar, tendo em vista que seu cérebro tem o registro de sua vida sendo levada de maneira correta e sem nenhum registro de violência ou qualquer outro desvio de conduta, ou crime; O organismo dele reage conforme qualquer ser vivo nas condições em que ele se encontrava. Colocado em uma situação desconhecida, de evidente desconforto físico, sem qualquer motivação conhecida, sem contato externo, sem orientação e sem alimentação. Nenhum ser humano resistiria, certo?

- Evidente Doutor!

- Porém, aqui está o diferencial de nosso sistema, para toda a condenação por crimes hediondos, não existirá mais injeções letais, ou quaisquer outros tipos de execução, que necessite que outro ser humano precise passar pelo trauma de terminar com a vida de outro ser vivo, seja ele o criminoso que for. Não haverá carcereiros, não haverá despesas absurdas e nem mesmo prisões ocupando espaços imensos e levando violência e medo à população, não haverá rebeliões, inocentes feridos e não haverá mais facções comandando o crime organizado de dentro das prisões.

- Doutor, permita – me, o Sr. falou que não haverá prisões, mas como seria isso? Pois, pela transmissão, por menor que seja o local, ainda assim imagino que serão várias destas celas, se é que assim podemos chamá-las, terão de ser supervisionadas por carcereiros, certo?

- Para responder à sua pergunta peço por gentileza que me acompanhem até a próxima sala.

- Como vocês podem perceber, aqui no Hospital Prisão Saint Louis, mantemos nossos detentos sob completa supervisão, observem o senhor Mark, ou melhor, o corpo físico de senhor Mark. Neste leito, ele está sendo monitorado. Batimentos cardíacos e movimento cerebral, são controlados a todo o momento. O alimentamos através de sonda, exatamente como um paciente comum. No entanto, em seu cérebro foi implantado um receptor, pensem nele como um cérebro artificial, este passa a trabalhar no lugar do original e transmite ao detento, imagens ou situações e estímulos, projetados especificamente para sua punição. Estes fios ligados ao receptor cerebral são os responsáveis tanto pela recepção do transmissor no cérebro, recebendo a pena, quanto pela transmissão que os senhores estavam assistindo em nosso auditório. Superlotações, contaminações e violência em presídios serão problemas resolvidos de forma simples e eficaz.

A pena é definida em júri, com todas as etapas que a lei oferece, assim que o veredito é definido, o receptor é instalado e cada um recebe a punição ou estímulos, conforme gravidade de seu crime. obviamente o processo, envolve muitos profissionais renomados, desde juízes a neurocirurgiões. Tudo para que tenhamos transparência e eficácia.

- Realmente doutor temos que concordar ser impressionante! Mas como sabemos se a pena será cumprida? Já que pelo que observamos, o Sr. Mark está no sétimo dia, e parece não resistir muito mais tempo. Sete dias me parece rápido, dependendo do crime. Não seria mais correto deixa-lo como está? De qualquer forma, o fato de estar sedado e paralisado, já não seria punição suficiente?

- Não, o cérebro está em pleno funcionamento, ele está vivo, consciente. Evidentemente dentro de uma consciência na qual nós o colocamos. Como vocês podem perceber, o cérebro é responsável por todos os sentidos, estímulos, sentimentos, ele é capaz de fazer sentir, a perna de um amputado, é capaz de coisas incríveis. O cérebro do senhor Mark não entende porque está preso, ele é um inocente. Desenvolveu ansiedades, depressão, fome, sede, frio até mesmo os ferimentos em suas mãos. Para ele, tudo é real.

O fato de não entender o que está acontecendo, é assimilado pelo organismo e ele realmente acaba definhando até a morte. Mas isso acontece bem mais rápido do que no sistema normal, pois o cérebro sabe quanto tempo um ser humano resiste sem comida ou água. Enquanto nas penitenciárias atuais, demorariam dias ou anos, em tal processo, usufruindo do dinheiro público e por vezes, continuando o ciclo de violência mesmo de dentro da prisão.

- Mas isso não lhe parece muito cruel doutor?

Nesse instante uma voz vinda de trás dos médicos e repórteres, chamou a atenção. Uma mulher elegante, vestindo um jaleco branco sobre um alinhado terno vermelho e salto alto, atravessa a sala em passos lentos e bem marcados colocando-se à frente de todos:

- Com licença doutor, posso responder esta questão?

- Claro Senhora, por favor.

Caros senhores, este homem é Mark Di Lazzari, tinha uma vida normal como a maioria de vocês, era um empresário de sucesso, tinha uma linda filha, Isabelle de 6 anos e uma esposa amorosa. Uma família feliz, todos bem-sucedidos. O que tudo indica, é que a vida perfeita que SR. Mark levava, não foi o suficiente. Em algum momento da relação, a esposa de Mark começou a perceber um comportamento diferente no marido, ligações de mulheres, mensagens, fotos. Tentou confrontá-lo várias vezes, mas sem sucesso. Pelo contrário, Mark dizia que a culpa era dela, por ser uma péssima esposa, sem muitas explicações. Logo após, passou a ser violento em casa, torturando-a psicologicamente e agredindo-a fisicamente, não uma, mas diversas vezes. A Sra. Di Lazzari depois de varias tentativas e muito sofrimento, conseguiu separar-se e foi embora.

O Sr. Mark não aceitava o fim do relacionamento. Era um homem acostumado a ter tudo que queria, obsessivo e manipulador.

Dois meses após a separação e com a certeza de que a mulher não retrocederia, foi até a casa da ex-esposa, pegou Isabelle para passar o final de semana. A Sra. Di Lazzari não achava correto afastar a filha do pai. Tentou manter a situação o mais normal possível para que não houvessem danos psicológicos à Isabelle e também, pensou que se fizesse de tal forma, Mark aos poucos acostumaría-se com a nova situação. Até então tudo aparentemente normal, mas o Sr. Mark havia planejado algo e acabou fazendo o que somente um psicopata sem escrúpulos faria. Levou sua própria filha para um local afastado da cidade e a esquartejou. Sim, foi isto que eu disse senhores, ele esquartejou sua filha de seis anos. E em meio à cena do crime deixou um bilhete que dizia: “Já que não quer ficar comigo, tirarei o que mais ama".

Ele ficou oito anos foragido, até que por um descuido, foi reconhecido por alguém que já havia visto seu rosto nos sites de procurados; E enfim capturado. Foi a júri popular e condenado a pena máxima, sendo designado para ao Hospital Prisão Saint Louis. Aqui desenvolvemos a melhor forma para a aplicação de sua punição. Ele sofreu com fome, sede, frio, dor, infecções e o seu organismo definhou durante 7 dias entrando em colapso, morrerá a qualquer momento. Algo que eu particularmente considero bem brando para o grau de horror a que ele submeteu Isabelle e posteriormente a ex-esposa.

- Seu depoimento é muito impactante, posso inseri-lo no artigo para o documentário?

- Sim, obviamente.

- Desculpe senhora, qual o seu nome e qual a sua participação no projeto?

- Sou a Doutora em neurociência, Alexsandra Di Lazzari, ex-esposa do senhor Mark Di Lazzari e criadora do sistema prisional denominado “A Caixa”.

Tema: Inteligência artificial e sobrevivência.