OS REPLICADORES - CLTS 14

PRÓLOGO

Em 2039, ano em que recebemos o primeiro contato comprovadamente alienígena, as potências mundiais financiaram o que viria a se tornar o mais ambicioso e caro projeto da aviação espacial, a Éna (nome grego que significa "um"). Em um ano, tempo recorde para empreendimentos desse porte, os países mais desenvolvidos do mundo, junto com o esforço internacional, financiaram, projetaram e fabricaram a espaçonave mais moderna feita pelo homem. Cientistas, astrônomos e físicos das mais diferentes áreas embarcaram nessa jornada. O objetivo? Rastrear o sinal e fazer contato com essa civilização e entender quem eram e o que queriam. Entre a tripulação, cinco brasileiros e é pelas impressões e pontos de vista deles que será contada essa história.

AURORA

Adele acordou assustada. Teve um pesadelo com um episódio passado na sua infância. Uma briga na escola com Betty, a menina mais popular, que implicava com ela. Mesmo sendo uma lembrança ruim e angustiante por si só, o pesadelo realçou os piores aspectos e os elevou a uma categoria insuportável. Com a cúpula de sua cápsula aberta, pois ela deixara o estágio de hibernação há um tempo (por isso o sonho, visto que dormia), retirou os eletrodos em seu peito e em sua cabeça e posicionou o seu pulso no medidor, aferindo pressão, pulsação e oxigenação do sangue. Durante o sono induzido a câmara de hibernação reduzia drasticamente suas funções vitais e metabólicas para preservar energia. Isso era vital em viagens espaciais longas como aquela.

Tarciso terminava de fazer os ajustes nos comandos da sonda marciana RCD-013. Tudo tinha de estar pronto para daqui a sete dias terrestres. O que pode parecer muito tempo para nós aqui na terra, mas não no espaço. Operando com a ajuda de OTTIS, o sistema de inteligência artificial responsável pela operação de toda a nave, o engenheiro não teve dificuldades para se certificar de que tudo estava sob controle.

Hermione, 24 anos, a mais jovem do grupo de tripulantes brasileiros, era botânica e seria uma das responsáveis pela terraformação de Europa, lua de Júpiter, quando completassem a missão em sete anos.

Da tripulação, que contava com cinquenta pessoas, somente dez voltariam à terra para anunciar a todos o que descobriram. O restante partiria em outras expedições, que aconteceriam com ou sem a Éna, mas foram antecipadas por conveniência.

Aproximando-se de Marte, OTTIS captou um sinal muito forte, que avariou alguns instrumentos da nave que entraram em modo de emergência. O próprio OTTIS fez os reparos necessários, mas escondeu informações cruciais dos cientistas a bordo, como ter decifrado o conteúdo da mensagem. Mas alguns, dentre eles o capitão Harold Clarck, passaram a desconfiar de informações repassadas pela I.A. que não conferiam com uma varredura mais aprofundada em seus bancos de dados.

-Alinhando angulação. Propulsores ligados. Aterrissagem em Marte em 10, 09, 08, 07…

-A desaceleração da nave ocorre como previsto. As condições atmosféricas encontram-se estáveis...03, 02, 01. A nave aterrizou em solo marciano com sucesso.

-A sonda acaba de ejetar seu escudo protetor. Abrindo o paraquedas em 10 segundos.

Tudo ia bem em Marte, como era esperado. Missões tripuladas ao planeta vermelho já não eram novidade desde 2024. Paulo, 27 anos, o infectologista, quarto membro da tripulação brasileira, procurava seus amigos compatriotas no refeitório, após se servir da boa e nutritiva seleta de legumes plantados em solo vermelho. Quer dizer, as áreas cultiváveis tinham pouco ou quase nada em comum com a terra dura e pedregosa do quarto planeta a partir do sol. Mas a engenharia genética e a botânica, com os transgênicos, alcançaram feitos tão grandiosos que foram exportados para a terra, que sofria uma escassez de seus recursos naturais, sem precedentes na história humana.

A área habitável de Marte, correspondia a 12 mil metros quadrados, os quais eram protegidos por uma cúpula ultra resistente feita de exacálico, um material fabricado com elementos extraídos do próprio planeta. Renato, 35 anos, o quinto tripulante brasileiro, colocava o capacete e preparava-se para adentrar o subsolo, de onde entraria em uma câmara para acessar a atmosfera inóspita e coletar fragmentos de solo e rochas para análises. Em uma hora começaria uma tempestade de poeira que só se estabilizaria em uma semana. Ele sabia que tinha que ser rápido. Mas o trabalho exigiria 20 minutos, no máximo. Então uma discrepância absurda foi observada. O solo rachado foi rasgado por um veio liso que não estava ali antes. Como o leito de um rio seco. Tão liso e homogêneo, que não se parecia com nada que pudesse ser encontrado em Marte. Ele seguiu aquele rastro que terminou abruptamente no sopé de uma pequena colina. Retirou um aparelho, acoplado em seu uniforme, e o apontou para aquela deformidade anômala no solo do lugar. O objeto, que parecia uma pistola de choque, analisou o solo naquele ponto e depois de um feixe de luz vermelha, um alarme acendeu no painel e confirmou o que Renato mais temia. Matéria orgânica. Mais especificamente uma gosma, como a das lesmas da terra. Uma criatura viva tinha passado por ali. E quando tentava entender qual o significado da descoberta, algo grudou em seu capacete de forma tão violenta que ele caiu no chão. A fraca gravidade no entanto fez seu corpo quicar e elevar-se há uma altura de um metro até que ele voltasse a sentir o chão. Ainda lutava com a criatura que o atingira e o embate o deixava solto no ar como uma bola de plástico boiando na água. Tudo que via eram dentes pontiagudos e tão resistentes que estavam conseguindo quebrar a proteção do capacete.

Em segundos o alienígena dissolvia a sua carne com saliva ácida e o digeria aos poucos. A sua forma, que se assemelhava a de um réptil de grande porte, se inflava conforte sugava os órgãos e fluídos da sua presa. A cabeça, comparada com a de um animal terráqueo, seria parecida com a da Moreia. Os olhos laterais esbugalhados eram assustadores. A mandíbula se movia num arco de quase 180º. Em cinco minutos todo aquele ser humano foi absorvido pelo animal terrível. E em dez, o animal aumentou seu tamanho em vinte vezes, numa metamorfose medonha e barulhenta.

EQUINÓCIO

Após 7 dias a expedição seguiu viagem com a próxima escala programada para daqui há um ano, quando pousariam em Europa (satélite do planeta Júpiter). Como Renato foi designado para se estabelecer em Marte, mesmo sentindo falta de uma despedida por parte do amigo, seus conterrâneos não suspeitavam que algo pudesse ter acontecido à ele. As cápsulas de hibernação foram ativadas novamente e 20 dos agora 40 tripulantes hibernavam (10 ficaram em Marte), dentre os que hibernavam estavam os brasileiros. O restante da tripulação, agora ativa, hibernaria depois da missão na lua de Júpiter. No entanto, OTTIS parecia ter um plano diferente para aquela missão em especial. Enquanto confundia os códigos para atrasar a decifração das mensagens, que aumentavam a frequência com que eram recebidas quanto mais avançavam no espaço, a I.A. programava o desligamento das cápsulas de hibernação com antecedência de 06 meses. Suas intenções ainda eram obscuras. O que se sabia é que aqueles 40 seres humanos viajavam no espaço à mercê de forças ocultas e foram lançados para um perigo extremo que sequer poderiam imaginar.

Após a interrupção da hibernação uma reunião extraordinária foi anunciada. Os programadores e engenheiros haviam decifrado partes das mensagens alienígenas. E elas eram hostis e reveladoras e envolviam OTTIS. Ao perceber que fora desmascarada a I.A. causou uma pane geral na nave, a deixando à deriva nos céus. Todos os sistemas se desligaram e o pânico foi geral. Tarciso usou uma lanterna e a sua coragem para entrar na central de sistema integrado da nave e arrancar a placa mãe que controlava tudo. Desativar OTTIS. Enquanto isso Hermione usando seus smart glasses, ouvia as mensagens decifradas, narradas para conhecimento de todos em português, inglês e espanhol: “Vocês humanos, sempre nos pareceram tão desprezíveis e indignos de nota, que jamais nos chamariam a atenção se não fossem suas explorações cada vez mais ousadas às luas de Júpiter e Saturno. Se não pararem agora, vão acabar descobrindo da pior maneira, que sim, existe vida inteligente fora da terra e vocês não estão sozinhos.”

Adele, perita em comunicação, buscava padrões nas partes decifradas pelos peritos para fazer ela mesma a tradução do restante das mensagens. Estava se saindo bem, agora que uma parte importante das mensagens fora revelada, era só questão de tempo para a total transliteração. De repente uma pancada surda e abrupta alterou o silêncio e perturbou a sua concentração. A falta de ar já afetava um pouco os seus sentidos. Se as coisas não se normalizassem, em questão de algumas horas todos estariam mortos. A iluminação de emergência no corredor piscava. Adele atravessou a passagem do seu casulo até o local de onde ouviu o barulho. Todas as portas automáticas dos compartimentos, para se abrirem manualmente, precisavam do acionamento de uma chave e do destravamento de uma alavanca. Adele destravou a porta com dificuldade. A alavanca era pesada. Ao entrar no local ela deparou-se com Renato sentado em uma poltrona. A lanterna que ela carregava caiu e ela tremia inteira. Renato se contorcia e gritava, gemia, com as mãos na barriga e caiu no chão vomitando sangue. Ela pegou a lanterna caída e correu. O que ela poderia fazer por ele? Não estava negando ajuda. Iria pedir ajuda para ele.

Tarciso finalmente conseguiu acessar a placa mãe da nave e desativar OTTIS. Ele não poderia mensurar ainda o tamanho do estrago deixado, mas garantiria a sobrevivência de todos. OTTIS não estava mais no controle.

Hermione, agora que tudo se normalizara, correu para encontrar com os outros. Na cabine, como uma estrela brilhante, ela observava Júpiter. A correria e o falatório entre todos, para que o controle da situação fosse finalmente assumido e pudessem continuar com o sucesso da missão, era um estímulo que trazia alívio. Eles ainda não sabiam que em questão de minutos todos na nave estariam mortos.

Adele, trazendo uma informação valiosa para todos, acelerava o passo para exibir no computador de bordo o áudio que gravou nos seus smart glasses, traduzindo uma mensagem crucial, cujo conteúdo mudaria todo o rumo da expedição. Era tarde demais para Renato. Mas o que ela poderia fazer? Ele vomitou uma criatura rastejante que guinchava como os atormentados do inferno. Ficaria ali para morrer também? Acionou a tranca da porta da cabine para abri-la, mas antes que conseguisse foi puxada para trás. O réptil monstruoso, da espécie que atacou Renato em Marte, cravou suas garras e dentes nas costas de Adele. Ela lutava, girava, se desdobrava, mas pouco poderia fazer. Por fim teve a ideia de bater com as costas na fuselagem da nave para tentar soltar o bicho. Mas um estrago grande já havia sido feito e uma boa parte do lado esquerdo das suas costas fora devorado e a perda de sangue a fez perder os sentidos. A criatura a comia em pedaços grandes, cravando seus dentes poderosos que trituravam ossos como se fossem gelatina.

Vinte minutos após Adele ter sido comida pelo réptil, o animal, inchado, teve suas células sequencialmente transformadas pelas células da humana. Copiadas em toda a sua estrutura, a células de Adele replicaram idênticas e a sua genética, copiada integralmente no ser rastejante, assumiu a forma da humana de antes, nua, coberta por uma gosma espessa e transparente. Mas aquela, definitivamente, não era mais Adele.

SOLSTÍCIO

Em Europa, Éna aterrizava finalmente. Dos tripulantes, nenhum ser humano a bordo. Apenas dez daqueles monstros gosmentos que assumiram as formas de dez humanos. A nave voltava à terra levando uma falsa esperança à raça humana. Na lua jupiteriana os répteis desciam da nave, recepcionados por humanóides de pele cinza, todos com mais de dois metros de altura. Vestiam roupas cintilantes que resplandeciam a atmosfera brilhante da lua. Em sua língua natal um dos habitantes da lua falou: – Fizeram um ótimo trabalho, meninos. Um ótimo trabalho.

Em alguns anos, o sonho do homem de desbravar novos mundos virou-se contra ele e tornou-se em pesadelo. A terra transformou-se em uma colônia da lua Europa e aquela mensagem descoberta por Adele e que poderia ter mudado o destino da humanidade, infelizmente morreu com ela. Os poucos humanos que lutavam contra a extinção total se escondiam e se protegiam com unhas e dentes, planejando uma nova fuga do planeta. Eles temiam pelo seu futuro. Afinal, foi em busca de novos mundos e de respostas que eles tiveram esse trágico fim.

TEMA: VIAGENS ESPACIAIS