BEM-VINDO A NOVA ERA - CLTS 14

Catástrofes naturais ou causadas pelo homem são registradas nos piores momentos da história, mas a ocupação feita por um pseudodeus em 2020 foi o que culminou na extinção humana e na criação de metahumanos imortais. Alguns não aceitaram a mudança e foram mortos, ficando sem história. Pouco mais de cinco mil pessoas ainda viviam no antigo mundo, menos de duas mil continuaram o novo caminho.

O nome do principal responsável por tudo isso é Edward. Um homem simples, de origem humilde, mas que enxergou o futuro com olhos de revolucionário, queria um mundo com seus moldes. Estudou muito, fez amizades importantes e causou a maior pandemia da história. Tudo começou com o aparecimento de um vírus, criado em seu laboratório, depois a vacina, que era distribuída apenas para quem se dizia religioso, precisava dizer que acreditava em Deus para receber o remédio.

Tudo isso não passava de mentira, talvez a jogada mais certeira já contada. A vacina continha a doença e não havia cura. Todos que seguiam alguma religião estavam condenados a morrer. Ele dizia que a separação dos povos estava baseada em doutrinas inventadas pelo homem e seguidas por ovelhas crentes que nunca se preocuparam com a verdade.

O governo não conseguiu conter o avanço do exército de Edward e os lotes de vacina chegavam em larga escala nos centros de distribuição e as pessoas corriam desesperadas para receber a sua.

A confiança na vacina e o desespero pelo aumento das mortes faziam com que pessoas roubassem farmácias, invadissem hospitais, saqueassem caminhões que continham o remédio e até matar para receber a sonhada cura.

O que se sabe é que pelos lados obscuros da internet e em sites de comunidades de ateus já se falava na relação da vacina falsa com a morte de religiosos. Nesse caso, o novo deus estava arrecadando seguidores que não tinham medo de cumprir as ordens e, como ratos de esgoto, passavam a penetrar nos mais obscuros lugares diminuindo a população.

Foi denominada ocupação.

Essa ocupação mostrou que muitos humanos desejavam mudanças sólidas e que o apoio obtido por Edward fortificou sua ganância. Muitos tentaram e foram vencidos, ao menos deixaram ensinamentos de que é possível a criação de uma nova raça, mas precisa ter um Deus forte.

A crença de que o mundo pode ter apenas um lado permanece no subconsciente de cada um. Os bons querem a paz e julgam certo, os contrários vivem da dor dos outros e têm certeza de que esse é o caminho. A realidade é que um não vive sem o outro, não há aprendizagem se não soubermos a consequência de tudo que já foi feito no decorrer desses anos.

O sonho de Edward estava em Omus City...

Agora a verdade é outra, a vida será através dos olhos de um metahumano, o criador de tudo isso. Ele quer apenas ser único, lembrado e louvado. Quem desejar isso, viverá eternamente, mas ele aproveitará os louros de ter iniciado a revolução. Esse orgulho fez seus olhos fecharem para a verdade e a sensatez. Foi impressionante e quase inacreditável a forma como ele chegou nessa condição, porém, pode ser fácil alcançar o topo, o difícil é manter a sanidade depois de conhecer e tornar-se dono do poder.

Numa época em que as emoções foram descartadas e as ditas criações divinas esquecidas surge alguém que criou e organizou um mundo sem problemas. Em Omus City, a cidade desenvolvida por Edward, os livros foram praticamente proibidos e os que restaram ficavam em um cofre no seu castelo. Não havia necessidade de leitura de uma história antiga que apenas deixou destruição.

Era um recomeço...

A ideia sempre foi fazer um novo mundo, entrar em uma nova era com população diferente, regras diferentes, um Deus único e apenas um caminho a seguir. O primeiro passo foi a substituição de cérebros por metaencéfalos. Seria a criação de seguidores sem passado, com histórias esquecidas e futuro predefinido. Não sentiriam falta do que passou e a saudade não faria parte do novo vocabulário. O ponto de partida foi exatamente como planejado, sem frutos proibidos ou serpentes aladas. Nesse momento, não haveria Judas ou traição ao novo deus.

A criação dos metaencéfalos era uma necessidade para o novo deus. Todas as tentativas de criação animal ou humana já haviam dado errado. Agora era a hora de mexer com o principal órgão: o cérebro.

Muitas pesquisas foram necessárias e os cientistas utilizaram todos os recursos da melhor qualidade para chegar a uma mutação genética que ligava cérebros humanos com máquinas. O mesmo tamanho, mesmo formato, porém indestrutível. A parte computadorizada permitia ao dono escolher quando morrer, essa era a maior e melhor diferença. O comando era simples, dizer a frase “Eu desisto” e o código registrado, cada um portava o seu. Após isso, era liberada a regressiva de dez segundos e tudo acabava. Assim foi projetada a nova população que recomeçaria tudo e não acabaria mais.

Preparou tudo como sempre imaginou e registrou em seus escritos, principalmente garantindo a eternidade a quem merecia. Sabia que ninguém leria, mas sempre o fez.

Depois de vários fracassos com seus cientistas ainda no século 21, eles finalmente chegaram ao êxito. Centenas de tentativas resultaram em muitas mortes dos voluntários, mas agora era possível a substituição de cérebro por metaencéfalo.

Seria o início de uma nova era.

Após os cientistas, Edward e sua esposa Maria, uma jovem mulher, magra, cabelos longos e negros, olhos cor de mel e ovalados, que o acompanhava desde a ocupação, foram os primeiros a substituir o cérebro. Ela fez a cirurgia antes do marido, era para ele a garantia de sucesso e também sua mais perfeita criação, sua programação foi executada em moldes perfeitos. Uma dama inteligente e zelosa por seu marido.

Com o transplante, as suas lembranças atuais e passadas eram reiniciadas, ou seja, além de criar um novo mundo ele queria criar uma nova versão de população, implantando em suas memórias apenas o que ele gostaria que soubessem. O fundamental dessa mudança é que o metaencéfalo conseguia manter o corpo funcionando sem chance de doenças, imune a qualquer falha.

O transplante garantia imortalidade, mas não nasciam mais novos humanos. Os metahumanos tentaram a reprodução, mas a gestação nunca passavam dos seis meses, o cérebro que crescia no bebê era normal e não aguentava a potência de sangue mandada pelo coração e acabava explodindo.

Edward não achava necessário o estudo sobre esse assunto, humanos com cérebros poderiam se tornar problemas futuros.

Edward exigia de seus metacientistas os estudos para a fabricação de mais metahumanos, ou seja, clones. Um de seus projetos era a criação baseada em sua imagem e semelhança. O medo de algum efeito colateral rondava os pesadelos do novo criador e a inteligência deveria ser de acordo com o que ele imaginava para cada um.

A mudança estava concluída e o novo rumo já estava alinhado. Foi concretizada a ideia de um novo mundo sem pecados, sem problemas e sem questões diárias para resolver. Criaria então o paraíso prometido por alguns e que nunca aconteceu.

E assim parecia ser...

Mais de cem anos passaram, não havia mais o que contar, não escrevia mais, não acontecia nada de interessante e toda essa perfeição já não o satisfazia e, como todo poderoso, sentia falta de ação.

Estava cansando do marasmo que vivia, um século passou e ele era o único que realmente lembrava do passado e o que tinha acontecido lá. Como todos os pensamentos de Edward sempre foram mirabolantes, mais um apareceu como um chicote na área frontal de seu metaencéfalo. Era a hora de dar uma volta no tempo. Se foi possível criar a eternidade, por que não tentar voltar ao passado? Muitos tentaram dominar o mundo, apenas ele conseguiu. Muitos tentaram viajar no tempo, pesquisaram muito, mas não conseguiram.

A meta era essa...

Utilizando os melhores metacientistas já produzidos, montou uma equipe para fazer esse ato tão falado durante a história e que nunca passou de teoria. Parecia loucura, mas ele precisava de ação e diversão. A vida precisa de dois lados, a nova conclusão era essa. A história necessita do positivo e do negativo, do bem e do mal.

Para todo vilão é necessário um herói e vice-versa. Isso causou a necessidade de Edward voltar para o século 21, antes de seu domínio, e trazer humanos reais para Omus City.

Edward permitiu que usassem teorias dos livros dos séculos XIX e XX, mas foi desnecessário, a inteligência artificial multiplicava-se nos metahumanos, algo que foi descoberto durante as análises da sonhada volta no tempo.

Bastava solicitar algo a qualquer metahumano, que os metaneurônios se multiplicavam, o processo de aprendizagem era automático. Evolução instantânea.

Edward, que até então era o metahumano mais inteligente, ou achava ser, percebeu estar ficando para trás, não fazia nada para exercitar o metaencéfalo, apenas mandava fazer.

Maria vivia como serva, fazia todas as vontades de Edward. Na verdade, todos faziam e sem perceber evoluíram.

Por mais que sua vida normal tenha tido um final em 2023, agora a história passava no ano 102, seria 2125, mas o novo deus paralisou tudo no ano que conseguiu que seus cientistas chegassem ao êxito na criação da nova raça. Era uma época que não precisava ter respostas, não havia mais perguntas. Mais de um século havia se passado e o que ele via era apenas um dia após o outro.

A preparação e pesquisas duraram cerca de dois anos, ou seja, estavam em 104 depois de Edward. Utilizaram as teorias antigas de viagem no tempo e seus metacientistas acharam uma passagem a partir de uma usina elétrica que Edward mantinha ativa. Grandes círculos de metal foram conectados a três pontos de energia. Arcos elétricos começaram a girar nas peças ultrapassando a velocidade do som, abrindo, após uma grande explosão, uma espécie de portal. O sistema enviava comando e lembranças a um potente computador conectada ao sistema elétrico. A velocidade do giro dos arcos definia o ano de parada. Nesse caso, 2.020 voltas por segundo.

De teoria ele estava cansado, agora a viagem era realmente possível.

Para melhorar o deslocamento e o transporte seguro da encomenda, desenvolveram uma caixa parecida com os antigos elevadores com apenas uma porta, medindo dois metros de altura, um metro e meio de largura e com apenas botões numerados. O espaço e o oxigênio possibilitavam o transporte de apenas duas pessoas por vez.

Edward não controlava a ansiedade, mas não faria nada, não poderia perder tudo que conquistou se colocando em risco. Maria iria, era a única em quem confiava plenamente. A construção do seu metaencéfalo fora montado por ele, não havia erros. Ela iria buscá-lo e voltaria sem nenhum percalço.

Ordenou que a colocassem imediatamente dentro da caixa e, após fechada, ele mesmo acionou o dispositivo fazendo com que Maria fosse engolida pelo buraco negro. Ela, com os dados seguros e perfeitos inseridos em um chip implantado na parte traseira de seu metaencéfalo, apenas foi.

Seu destino era 2020, em meio a ocupação de Edward. Era para ir ao quartel e sequestrar um soldado qualquer, mas já na chegada percebeu algo estranho. Seu metaencéfalo parecia girar em sua cabeça, sentia como se o ar estivesse acabando, pensou ser por razão da viagem, mas ao avistar uma mulher igual a ela sendo levada por soldados, imediatamente seus metaneurônios se multiplicaram fazendo com que algumas lembranças surgissem. Lembrou dos assassinatos do exército de Edward e do sofrimento que passou com ele. Também lembrou que não era sua esposa, era uma prisioneira e escrava de um pseudodeus.

Estava muito tonta, prestes a desmaiar, porém seu metaencéfalo mandou sinais de renovação e evolução de memória.

Lembrou do momento em que foi raptada. Eram apenas flashes de memória, mas suficientes para entender o que havia acontecido. Edward destruiu o seu mundo e criou uma história de robôs servos. Começou a tremer, revivia todo o horror que esse ano foi em sua vida. Enfiou as unhas atrás da orelha e retirou o chip, correu em direção aos soldados, mas parou bruscamente. Sabia que não poderia ser vista, precisava resolver com tranquilidade. Não foi exatamente o que fez, avistou Edward entre alguns homens. Caminhou apressadamente em sua direção e, sem deixar que a vissem, com um golpe só, derrubou a todos, fazendo-os desmaiar. Puxou Edward e o jogou em um buraco próximo a uma árvore, não sabia exatamente por que o levou ali, mas chegou em segurança.

Seus instintos e lembranças pareciam se confrontar. Pensava em matá-lo, em enterrá-lo vivo naquele lugar que lhe causava tantos calafrios, mas sabia que não podia. Resolveu então fazer um meio-termo. Deixou-o ali, quando acordasse voltaria correndo e confuso para seu exército.

Maria percebeu que colocaram a outra Maria em um caminhão, ela estava de olhos vendados e em silêncio. Foi na direção do caminhão, aguardou um descuido dos soldados e retirou seu outro eu de lá, deixou-a segura e voltou para o veículo. Nesse momento Edward caminhava a esmo depois de acordar e sair do buraco, seus soldados questionaram o que havia acontecido, mas ele apenas disse para continuar o plano. Maria sabia o que passaria, porém dessa vez estava muito mais inteligente e imune à dor e à morte. Sabia que precisaria obedecê-lo para permanecer livre para mudar o rumo da história. Permitiu ser raptada e levada ao mesmo buraco junto de Edward e uma senhora que ela pensava conhecer. Nesse momento aquele lugar começava a fazer sentido, passara alguns dos piores momentos da ocupação lá dentro, fora sequestrada e mantida como refém. Com poucas lembranças daquele momento, concentrava-se meditando, quase que desligando seu metaencéfalo. Fez isso várias vezes para não participar do horror que vinha do lado de fora. As lembranças eram estranhas, mas Maria sabia que ele estava ali escondido, esperando que todos os que ele dizia inimigos estivessem mortos para sair com segurança e colocar em prática seu plano. Edward era quase perfeito em seu poder de persuasão, mas um covarde no embate físico e carregava consigo o medo de alguém o matar. Ela sabia de todo o resultado daquela ocupação e apenas ficou, praticamente calada o tempo todo, aguardando o momento de agir.

Aquele buraco era o seu bunker.

Ela não sabia quantos dias passaram, o cheiro do corpo da senhora que morrera há alguns dias e fora enterrada dentro do próprio buraco era insuportável. Numa manhã chuvosa, o barulho parou, ouviu de Edward que era o momento de irem embora. Maria apenas o acompanhou, precisava entrar no castelo. Ele falou que ela era a testemunha dos momentos de tensão que ele havia passado, era a prova viva de que o novo deus passou por provações. Ela concordou e submeteu-se a todos os caprichos de Edward, tornando-se sua esposa. Adquiriu a total confiança do chefe de tudo aquilo. Na saída ele olhou em seus olhos e disse: “Eu poderia ter feito algumas coisas piores, como furar as palmas das mãos ou carregar algo muito pesado nas costas, mas cicatrizes e lesões para vida toda não fazem parte de alguém superior”. Vamos voltar para o meu castelo e lá a proclamarei como minha esposa e viverá os louros de ter sido minha companheira por todo esse tempo e terá apenas a mim acima de você.

Concordou para seguir...

Sabia que precisava mudar, mas não via salvação para o mundo, o futuro estava traçado. Poderia matar Edward, mas não tinha certeza de quem tomaria o seu lugar. Teria de encontrar a forma mais coerente de terminar tudo. Se não havia salvação humana, existia a tentativa de um final.

Infiltrou-se sempre que podia no laboratório onde pesquisavam os metaencéfalos. Esperou todos os testes acontecerem, esquivou-se de ser transplantada antes de Edward, dizendo estar com dores na cabeça, esse era o único motivo para adiar o processo. Isso fez com que os cientistas a deixassem para outro momento.

Maria utilizou todas as experiências vividas nos últimos cem anos para multiplicar seus metaneurônios e modificar a fórmula.

A catástrofe já estava feita e os acontecimentos andando quase perfeitamente ao olhar de Edward e, todos os seus planos andavam de acordo com o que desejava.

Em Omus City, Edward, sozinho e impaciente dentro do laboratório, apertava os botões de comunicação. Inquieto, não saía do lado do ponto de chegada da máquina.

Até que Maria chegou. Sozinha. Edward a confrontou, dizendo que sabia que ela não conseguiria e ele quem deveria ter ido.

– O que houve? Onde está o soldado. – Disse ele.

– Não haverá necessidade de soldados. – Respondeu Maria. E completou: – Você merece uma eternidade tranquila.

– Isso eu sempre soube. Mas o que está a dizer? – E gritando disse: – Como se atreve a falar comigo nesse tom?

– Cansei de ser uma simples serva, cansei de viver, não precisamos de uma eternidade, precisamos de vida feliz. Algo que ninguém tem aqui, somos apenas robôs.

Edward correu até a porta do laboratório, abriu e percebeu um silêncio nunca ouvido antes.

– Onde estão meus metacientistas?

Correu chamando-os. Chegando ao pátio de seu castelo não havia ninguém.

– Pare Edward, não há mais ninguém. Você matou todos.

– Eu dei a eternidade a eles. – Respondeu Edward.

– Mas eu tirei. Na verdade, quase todos eram mortais.

– Como assim? Perguntou.

– Mudei a fórmula, todos viraram mortais e estéreis, não haveria mais história para você. Seu mundo acabou.

– Mas por que estamos aqui ainda? – Edward perguntou com os olhos já vertendo lágrimas incontroláveis.

– Você é imortal, mas não pode finalizar isso, mudei também.

– Ficaremos apenas nós dois aqui?

– Na verdade, apenas você. Eu desisto, código 2023/002. – Maria ativou a contagem regressiva para seu desligamento e sorrindo ironicamente disse: – Aproveite sua eternidade, bem-vindo à nova era.

Tema: Inteligência artificial