O Protetor da Floresta - CLTS 14

O Protetor da Floresta

- Aitniê. - Disse em voz alta o indígena que guiava o barco, quando avistou a primeira luz do sol tocar o céu. Causou um reboliço no pequeno convés atrás de si.

- É o quê? - João se pos de pé num pulo desejeitado. Pos uma mão no cabo dum revólver na cintura e a outra agarrou a borda do barco. Olhava para todos os lados, nitidamente assustado.

- Significa 'Bom dia'. - O índio respondeu achando graça. Todo os tripulantes acordaram com a sua saudação.

- Vai se foder índio. - João disse cuspindo na'gua.

- O nome dele é Ubiratan! - Zé 'Tinhoso' o corrigiu com sua voz rouca. Sua expressão anulava qualquer objeção que o outro tivesse. Era o líder do bando.

João era o novato, no total eram cinco malfeitores navegando rio acima em busca de algumas madeiras para o 'contato'. Zé esticou os ossos e foi até a ponte ter com o 'capitão'. Todos já estavam de pé.

- Onde estamos?

- Sei lá. - Ubiratan respondeu sorrindo, sacudindo os ombros. Antes de qualquer reação, apontou para um mapa estirado no painel. - Por aqui. - Seu dedo estava perto da área marcada pelo Contato.

- Logo logo tá nas vista! - Zé disse virando as costas. - Saruê, Pequeno… prepara as ferramentas. João, fica de oio nas margens. Vou prepara um trago pra nois.

- O, graças a Deus! - Saruê disse erguendo as mãos indo para o seu afazer.

Uma conversa fiada tomou conta do barco rapidamente, depois que Zé abriu uma garrafa de cachaça e o copo foi de mão em mão, uma dose pra cada. Duas para o chefe, como de costume. João era o único que cumpria as ordens, seus olhos iam de uma margem para outra sem descanso, participava minimamente da conversa. O barco de pesca seguia num ritmo constante e tedioso, Ubiratan gostava de falar para espantar o sono e matar o tempo.

- Fala aí "Biratan", diga o significado de seu nome, diga. - Pequeno pediu apontando para o João.

- Lança Dura! - Ubiratan disse e todos riram.

- Essa desgraça faz sucesso com as quenga, acredita? - Saruê olhava para João. - Nois conta isso nas Birosca já vem umas treis pra confirmar. - Gargalhou.

- Bora ajeitar essas serras, seus carniça! - Zé disse em meio às histórias.

O sol estava a meia altura quando Ubiratan avistou as copas coloridas das árvores.

- Oh lá Zé!

- Bora ganha um dinheiro! - Respondeu animado pegando uma Serra elétrica pra si.

Dez minutos depois o barco foi amarrado na margem. Ubiratan desembarcou rapidamente e entrou no mato a esquerda, carregava um pedaço de corda e um saco de fumo nas mãos.

- João, fica de zóio no barco até ouvi a serra canta, beleza?

- Po'deixa chefe! - Estava se afeiçoado ao grupo.

- Bora cambada! - Zé foi seguido pelos demais, todos carregavam uma Serra e facões.

Alguns passos depois, sumiram na mata fechada. O índio reapareceu andando de costas, desenrolando a corda com cuidado no chão cortando-a.

- Que isso? - João perguntou curioso.

- É pro Demônio da Floresta. - Ubiratan respondeu sério. - Por onde eles foram?

- Curupira? - João explodiu numa gargalhada - Puta que pariu - Ele não conseguia parar de rir, mesmo com o índio o encarando sério. - Foram por ali. - apontou em meio uma torção causada pelo riso exagerado. Ubiratan sumiu no rastro dos demais.

Algum tempo depois o barulho da serra se fez mata adentro, era hora de agir. João ainda sorria, tirou o excesso de lágrimas dos olhos e deu mais uma olhada nos arredores antes de iniciar a caminhada. No segundo passo, viu a ponta da corda deixada por Ubiratan e resolveu segui-la. Dez passos a frente achou um punhado de corda enrolada, escondendo um pacote de fumo lacrado. Deu um riso largo e pegou a prenda olhando em volta, desconfiado. Sorriu mais uma vez e foi até às serras.

O serviço foi mais rápido do que Zé esperava, havia apenas duas dúzias de jacarandás na área, "árvores da flor roxa", como disse o Contato. O bando preparou os troncos em formatos iguais e os arrastaram para a margem, Zé estava mal-humorado. Ubiratan, desconfortável.

Como calculado, no final da tarde o barco estava descendo o rio puxando as madeiras encomendadas. Ubiratan guiava para a segunda marcação do mapa.

- Esse contato seu é fraquinho, hein Zé. - disse entediado.

Zé estava olhando a margem com uma perna apoiada na borda e o pensamento distante.

- Um punhadinho desse vai dá nada pra nois. - Saruê endossou

- Eta Febre do rato! Confia em mim mais não é? Oxem! - Zé se voltou para eles. - Esse Cabra é peixe grande. Disse que se nois levasse esses tronco pra ele, ele ia arrumar um serviço grande pra nois!

- Ma rapais, e tu vai fica no preju é? Alugar barco, as serras, o óleo, tu tá se arrombano pra trabaia é? - Pequeno indagou.

- Fecha essa boca, desgraça! O cara que tá bancano tudo, seu porra. Da minha parte é só a mão de obra podi de voceis! - Zé se satisfez com a expressão de admiração dos demais. - E o miseravi ainda vai dá 100 conto por cada tora! - Concluiu rindo de seu trunfo.

- Tu é o Cabra da peste memo hein. Rapais, que negoso doido é esse!? - Pequeno estava admirado, igual aos demais.

Cada um disse alguma coisa sobre a sorte de ter pego um contato desse tipo e começaram a imaginar e discutir sobre qual seria o trabalho futuro, prometido.

Zé estava preocupado antes, quando estavam na margem preparando as toras, achou que era uma armadilha da polícia ambiental e/ou do IBAMA, o trabalho era o melhor que ele já pegou nessa vida de malfeitor. Na verdade iria receber R$ 200 por cada tronco e agora que seu bando acreditou no R$ 100, seu lucro seria maior ainda. Quando o barco entrou no "canal esquecido" Tinhoso relaxou de vez. Ali sabia que estava seguro, aquelas águas eram esquecidas pelas autoridades.

No início da noite avistaram o porto clandestino, exatamente onde o cliente marcou no mapa. Zé desceu sozinho, um capataz bem vestido o recebeu e mandou um qualquer seu contar os troncos e levou Zé num canto. Dez minutos depois todos estavam montados em seus cavalos com os bolsos cheios, em direção a Birosca mais próxima dali.

Zé ainda repetia as palavras do homem em sua cabeça, "Meu patrão mandou dizer pra encontrar ele no mesmo lugar, daqui seis dias".

Não se aguentava de empolgação. O bando chegou a galope numa cidadezinha precária. Uma avenida bem iluminada, tomada de comércios fechados e no final uma Birosca acesa com mesas para fora e clientes beberrões.

O bando chegou barulhento, tomou duas mesas e animou o lugar que já estava pronto para encerrar o dia mas, diante da disposição dos recém chegados, foi obrigado a estender o horário. Antes de mergulhar na cana e fumo, Zé Tinhoso passou o olho no bar e nos clientes, não queria ser importunado por gatunos. Não viu nada além de molengas chorões, então mergulhou de cabeça junto com seus homens na 'mardita'. Mais tarde, algumas 'Damas da noite' se juntaram ao bando e a coisa animou de vez.

No alto da madrugada os rapazes foram levados para os quartos cada um acompanhado por uma dama. Cada um tomou um quarto. Depois de satisfazerem seus clientes as senhoras saiam de cena, deixando-os sozinhos, dormindo.

Os quartos ficavam no andar superior, lado a lado, dividos por uma parede de taipa. Ubiratan não estava bem, fingiu dormir para dispensar sua senhora e sozinho, não conseguia dormir de jeito nenhum, um desconforto o tomou. Ouviu a porta de seu vizinho abrindo e fechando e o som de passos curtos e risadinhas, escada abaixo. Um minuto depois ouvi a porta se abrir de novo mas, não os passos, aprumou os ouvidos e teve certeza que seu vizinho estava se engasgando. Se levantou num pulo e correu até ele. A má iluminação impedia de ver quem era.

- Oxe cabra tá morrendo aí é? - Disse se aproximando da cama e virando o homem de lado. - Que porra é essa? - perguntou quando sentiu um líquido quente saindo de seu colega. - Socorro! - Gritou quando sentiu o cheiro de sangue.

Ouviu um grunhido no outro quarto.

- Que diabo é isso? - A voz de Zé se fez no corredor.

- Vem cá Zé olha isso…

- Crendeuspa… - A voz de Zé começou e deu lugar a um grito sufocado.

Ubiratan saiu do quarto correndo e viu com a luz da lua que entrava na única janela do corredor, seu chefe ajoelhado segurando a garganta que se desmanchava por entre seus dedos.

- Sai daqui demonio! - João gritou do último quarto. Alguma coisa o jogou no chão.

Ubiratan estava desnorteado, gritou por socorro novamente enquanto corria até o quarto de João. Viu a silhueta de uma criatura pequena sobre seu colega cochichando alguma coisa em seu ouvido. Era tarde demais

Essa era a única certeza que o índio tinha.

Caiu de joelhos diante da porta aberta enquanto explicava que deixou uma prenda, suplicava por perdão. O som da garganta de João se torcendo até quebrar fez um calafrio desesperado percorrer seu corpo. A criatura o encarou das sombras, em um segundo se pos diante dele, era pequena cabelo espetado e vermelho como fogo aceso, tinha um riso malicioso de dentes pontudos e amarelados a pele esverdeada usava apenas uma tanga de couro. Os pés virados para trás. Ubiratan tremia descontroladamente.

- Aiacaqui ... ai-có [ Cortamos só algumas árvores] - Ubiratan conseguiu dizer com muito esforço

- Aiacaqui aiacá [ Cortei só algumas cabeças] - O Curupira respondeu com uma voz sombria, fria como gelo, enquanto passava suas garras debaixo do queixo do infeliz e ria com seu sangue jogando.