CABEÇA DE OVO, FOCINHO DE PORCO - clts 14

CABEÇA DE OVO, FOCINHO DE PORCO

Já havia algum tempo que Marcelo encolhido olhava a antiga cruz na beira do caminho. A vermelhidão da tarde perdia espaço para as sombras noturnas que ganhavam vida alimentada pelo seu temor.

Aquela estradinha deixou de ser importante quando os pequenos sitiantes do Mato Frio venderam suas terras em busca de melhor sorte na cidade. Toda aquela região agora pertencia a uma grande mineradora.

Para o menino era um caminho sem volta, perdeu noites de sono antes que por fim chegasse àquele momento. Pensava em desistir, a solução poderia ser pior que o problema. Sua alma tomada pela angústia o impelia a seguir adiante.

O povo antigo contava histórias daquele lugar, diziam ser amaldiçoado, varias foram as assombrações avistadas ali. Cada pescador ou cachaceiro tinha uma bravata para se vangloriar.

Para o moleque de cabelo alaranjado, pele branca salpicada de manchas miúdas e corpo franzino o dia tinha sido bem normal. Como sempre, sofreu nas mãos dos colegas da escola, vítima preferida das maldades alheias chegava em casa sangrando e o pai lhe dava outra surra, tinha que aprender a ser homem, resolver seus próprios problemas, quando a mãe se queixava aos professores, o castigo era em dobro. Com isso Marcelo aprendeu a suportar em silêncio seu sofrimento. Suportar sim, aceitar, jamais. Por isso tão drástica atitude.

A única pessoa que parecia lhe entender era a avó. A velha cigana já não tinha bom juízo, em suas andanças pelo mundo conheceu todo tipo de miséria, o Mato Frio tornou-se seu porto seguro, o cantinho onde podia descansar. O pai de Marcelo nunca desejou tais façanhas, se apaixonou, foi contra sua gente, tornou-se um pequeno negociante fazendo também sua vida naquele pedaço de chão. Em companhia da avó, Marcelo passava horas brincando com os espalhafatosos vestidos coloridos, com os diversos lenços de seda, mas principalmente ouvidos histórias sobre seres místicos habitantes além. Uma que muito lhe interessou era dali mesmo, dos rincões de sua terra.

Dizia-se que numa família bem pobre nasceu um menino, ele não trouxe alegrias, não era normal, feio que dava dó. Tinha uma perna maior que outra, as mãos lhe faltavam dedos, nas costas uma corcunda, a cabeça enorme com olhos pequenos, sua boca rachada praticamente unia-se ao nariz. A parteira de susto quase o deixou cair.

Mãe alguma acha defeito nas crias, por mais sofrido que foi o nascimento, o sorriso lhe embelezava a face. O pai horrorizado ameaçou jogar aquilo no rio, com certeza não ia vingar.

Mas sobreviveu, levou muito tempo para se equilibrar nas pernas tortas, seu andar coxo dava um ar bestial, não tinha voz, apenas grunhia. Após alguns anos, o álcool perdeu o poder de amenizar a repudia, o pai foi embora.

Mãe e filho foram viver num cantinho esquecido lá do Mato Frio, onde cuidavam de algumas galinhas e duas cabras, mais o que os sustentava, era a bondade alheia.

Quando ganhou força, o menino passou a ajudar a mãe na lida.

A curiosidade macabra do povo, levava sempre alguém a visitar o sítio. O tempo fez o garoto perder o nome, ficou conhecido como Cabeça de Ovo. As outras crianças em sua maldade infantil zombavam:

“Cabeça de ovo,

Focinho de porco

Relincha feito um cavalo.”

“Cabeça de ovo,

Focinho de porco

Relincha feito um cavalo.”

Ele não entendia, apenas ria de tudo, qualquer coisa tornava-se motivo de risos, assim se expressava, com efeito, parecia um animal ferido.

Em sua inocência, a necessidade de estar com outras crianças o fazia fugir dos cuidados da mãe, cada vez mais acompanhava seus carrascos para longe da segurança.

Quando retornava das escapadas, sempre sujo, trazia consigo novas cicatrizes, tanto no corpo quanto na alma, tudo pelo desejo de findar a solidão, aquele vazio que aperta fazendo o folego se acabar. A dor jamais seria bastante.

Ao sentir a ausência do filho, sua mãe entrava em agonia. Desesperava sabendo que em algum ponto da mata, ele novamente seria vítima dos maus-tratos daqueles cruéis ignorantes.

Numa dessas tardes, não suportando a dor em seu peito saiu chamando por um nome que ninguém mais conhecia, mesmo o menino já se entendia como Cabeça de Ovo.

Ela passou pelo riacho, atravessou a capineira, saiu na estradinha de poeira vermelha. O sol se escondia além das montanhas, a tarde fria chegava justificando o nome daquele recanto. Continuou com passos apressados. O silêncio aos poucos dava lugar a zombaria.

As lágrimas deslizaram em seu rosto.

“Cabeça de ovo,

Focinho de porco.

Cabeça de ovo,

Focinho de porco.

Relincha feito um cavalo.”

No centro de um círculo cruel, ele sorria abobalhado enquanto ovos eram atirados em sua direção. O fedor era sentido de longe.

“Cabeça de ovo, focinho de porco...”

A mãe partiu em defesa do filho. Por mais fraca que fosse sua presença amedrontou os valentes.

Um dos garotos arremessou o último ovo. Ela investiu contra o agressor. Outro jogou uma pedra e depois outras.

A mulher caiu desacordada, era só mais uma brincadeira. Cabeça de Ovo relinchava enquanto sua mãe agonizava.

Por muito tempo esperou que ela se levantasse, mesmo depois de ser levada ele permaneceu aguardando.

Passaram alguns dias e fincaram uma cruz na beira do caminho.

O menino já não tinha pra onde voltar, ficava na mata ao lado da cruz.

A avó de Marcelo contava que a mata adotou o menino, Cabeça de Ovo era protegido pelas sombras dos dias frios, ele conheceu a maldade na pele e jurou que defenderia aqueles que mais precisassem.

Quem tivesse o coração aflito, deveria chamar seu nome atirando três pedras na cruz. Mais as coisas não eram tão simples, o coração daqueles que o invocasse deveria ser puro ou teria o fim que desejou a quem o magoou.

Estar ali na boca da noite, com frio, atirando pedrinhas numa velha cruz de madeira na beira da estrada, chamando pelo Cabeça de Ovo era a coisa mais ridícula que tinha feito na vida. Começava a acreditar que os moleques da escola tinham razão. Era mesmo um otário, melhor se conformar com sua sina de inútil.

Quando se deu conta que toda aquela história era só para lhe fazer sentir melhor, seu coração se tornou mais triste. Com a fúria da desilusão arremessou uma última pedra que resvalou na madeira se perdendo no meio da mata.

Alguma coisa agitou os arbustos, o som das folhas secas sendo pisoteadas lhe deu calafrios. Um cavalo relinchou distante. Seja o que for que se movia entre os ramos parecia agora estar do outro lado. O animal relinchou mais perto. A frustração deu lugar ao medo. Seu desejo de justiça estava prestes a se concretizar, porém o arrependimento lhe fez correr.

Evitou olhar para trás, sentia-se observado, dos cantos mais escuros vultos disformes estendiam suas garras medonhas, ele caiu permanecendo imóvel. A criatura relinchava cada vez mais perto. Recusava abrir os olhos para encarar seus medos, devagar algo se aproximava, o temor era tanto que as carnes do corpo vibravam em doloridos espasmos. Sentiu no peito um enorme peso, seu coração foi se apertando até quase cessar seu bater. Sem movimentos tentava respirar com dificuldades. Alguns minutos ali pareceram horas, por fim a tranquilidade retornava.

Se encolheu assustado. A besta relinchou bem a seu lado. Não havia nada a fazer, pagaria seu tributo por ousar compactuar com as forças da escuridão.

Ergueu-se ainda com os olhos fechados, temia não suportar a terrível visão.

Resignado, sorriu aceitando o quão medíocre era sua vidinha.

Diante dele, um pangaré sarnento relinchava.

O resto do caminho até sua casa passou num segundo. Se alguém soubesse do acontecido jamais ergueria a cabeça. A vergonha não era a mesma das constantes humilhações que sofria, desta vez ele mesmo escolheu fazer papel de bobo. Teria que conviver com este segredo.

Retirando um pouco da poeira do corpo, sentiu a segurança de sua casa. Entrou trancando a porta atrás de si. Tomaria um banho prometendo nunca mais acreditar nas besteiras contadas pela avó desmiolada.

Três pancadas fortes fizeram com que voltasse a realidade. Abriu a porta com a certeza de que algum dos garotos o virá chegar. O horrível cheiro de podre fez seu estomago revirar. Do outro lado da rua, uma estranha sombra desaparecia num terreno baldio.

Aquela noite de angustia seria seguida de mais um dia de provação. Na escola reencontraria seus algozes.

Mesmo sendo um pouco tarde, o colégio não estava aberto. Os alunos se amontoavam perto do grande portão de lata verde. Grupos se formavam falando a meia voz. Entre eles, também alguns professores.

O diretor, com os óculos na mão esfregava os olhos avermelhados.

- Queridos alunos, hoje não teremos aulas. Comunico que infelizmente nosso aluno Ricardo sofreu um grave acidente. Ele deixará saudades entre nós. Lembraremos dele com aquela vivacidade, um menino muito alegre, exemplo a ser seguido. Todos voltem a suas casas. Peço que sigam em grupos, pois o animal ainda não foi encontrado.

Naquela manhã, ao sair para escola, Ricardo, o mais cruel dos meninos foi pisoteado por um cavalo raivoso. As autoridades procuravam sem êxito, apenas Marcelo tinha visto tal criatura.

tema - folclore

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 28/02/2021
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