DOUTOR D.

Se eu morri, foi por distração somente. Isso mesmo, paciente leitor. Que sina ingrata essa minha, veja só. Estava atravessando a rua para ir à feira e não vi o carro, me acertou em cheio, virei um pacote estirado no chão. Porém não seria um pacote que um curioso parasse para juntar, no mínimo ficaria olhando. Esse tipo de curioso a gente sabe que tem um monte. Eu ainda agonizei, cuspi e engoli sangue, foi triste, sensação horrível. Aí depois teve um alívio, sabe? A dor passou e foi como se uma eletricidade percorresse continuamente meu corpo, oscilando entre mim e uma estranha entidade. Se afirmei que morri, foi porque almejei mesmo estar morto.

A verdade é que as coisas se confundem um pouco neste ponto, pois a minha morte não foi uma morte comum; não, não, vou começar de novo. Tenho problemas em me fazer entender nesta parte, eu mesmo ainda não entendo direito o que aconteceu aquela noite.

Vejam só: –Estava eu na varanda da minha casa, tomando um vinho, comendo um bom queijo, apreciando o ar fresco da noite enluarada; tudo estava muito bem. Clima agradável, alguns vizinhos festeiros tocavam um samba numa roda animada e as crianças brincavam nas calçadas e na rua, que ali era tranquila, com pouca circulação de carros. Quando terminei de entornar a metade da garrafa escutei um barulho vindo de dentro de casa, algo caindo no chão, depois piorou. Pratos se estilhaçavam, pelo menos deduzi que fossem pratos, e móveis eram jogados e arrastados. Corri pra dentro, hesitei na soleira da porta, fiquei com medo, pois escutei uma baforada estrondosa ecoar, como se estivesse lá dentro um animal. Estava completamente escuro, procurei o celular, para usar a lanterna. A rua estava sem energia elétrica, culpa de um bêbado que acertou um carro num poste uns 4 quarteirões dali. Deixei o celular cair quando senti o roçar no meu braço. Os pelos longos e grossos eriçaram os meus ao contato. Gelado, paralisado, prendi a respiração, segurei o grito. A coisa segurou meus braços, os mantendo presos atrás das costas e tapou minha boca, para que eu não gritasse. Depois me jogou contra o armário, partindo a minha cabeça contra uma das portas e me causando o desmaio.

Quando acordei já era de manhã, sentia muita dor, a cabeça sangrava e percebi que estava ferido também do lado esquerdo da barriga. Um corte profundo, ardia muito, em volta da ferida tinha pelos e uma lasca de unha que tirei. Dos meus vizinhos, ninguém escutou nada, nem saiu pra me acudir. Não posso explicar a razão disso, mas liguei pra ambulância e fui pro hospital.

Depois deste confuso evento meus amigos, é que tudo começou a piorar, ficar estranho mesmo. Digo que meus hábitos passaram a ser outros e não tinha explicação pra nada do que eu estava fazendo. Eu me esquecia das coisas e nesses lapsos é que me pegava nas situações mais escabrosas. Como na noite em que, sem saber como, fui parar numa fazenda, afastada de casa uns 50 quilômetros. Na propriedade o cenário era o seguinte, irmãos, –eu deitado em um celeiro e à minha frente um rastro de sangue que seguia até a porta. Como acordei tonto e cambaleante, puxava caminho como um bêbado, aguentando como podia as dores, que de tão intensas, nem sei como expressar. Os batimentos cardíacos acelerados, os sentidos apurados. O que mais incomodava era conseguir ouvir até as pastas de um rato arranhando a madeira dos caibros da estrutura do celeiro.

Quando abri a porta vi a atrocidade, que provavelmente eu mesmo cometera. Animais mortos desmembrados, extirpados, mastigados. Cara, eu tô passando mal. Um embrulho no estômago, meus olhos turvam, argh! Pronto, desculpem, não consegui segurar, saiu. De certo vocês teriam a mesma reação, por isso sei que me entendem, ainda mais convencido ser eu o responsável por essa barbárie. Poderiam ter sido gambás, ou gatos e porcos do mato. Do jeito que estavam só era possível deduzir pelas suas pelagens, as que estavam aparentes. Depois disso eu sai atordoado pela estrada pedindo carona.

Ensanguentado, eu ainda sentia o gosto daqueles animais. Eu sabia que os tinha consumido. Só de imaginar a cena, sinto repulsa. Caindo sobre eles e os devorando vivos, os desmembrando com as patas presas aos dentes enquanto as separava dos seus corpos, os abrindo e consumindo suas vísceras. Não sei o que eu havia me tornado, mas temia cada vez mais pela minha vida e pela vida das pessoas que eu amava.

Ah, estimado leitor. Há de me desculpar muitos erros e esquecimentos ao longo da narrativa deficiente de um mero idiota que tenta de alguma forma ser lembrado. Um desses esquecimentos deveras imperdoável, meu próprio nome. Me chamo Diocleciano, não sei porque me deram essa merda de nome. Pelo que pesquisei foi um imperador romano, esse tal. Não posso ter a menor simpatia pelo meu nome, visto que nem conheci as pessoas que o deram, sabe, meus pais. Tudo que conheço deles está em caixas de fotografia e histórias que a minha avó contava quando criança. Devido ao costume de alguns colegas de faculdade, o que começou por brincadeira acabou pegando e assim, quando me formei, todos me chamavam de Dr. D. O que achei graça até, e o título permaneceu até os dias atuais, incutindo respeito e nome à profissão da advocacia.

Pra descobrir finalmente o que eu era tive que fazer uma viagem. Procurei um amigo de longa data, que cursara a faculdade comigo, se chamava Eduardo. Quando contei a ele as coisas estranhas que estavam acontecendo, cético como era, claro, não acreditou. Então lhe pedi que naquela noite desse um jeito de me amarrar e ficar observando minhas maneiras, que com certeza as causas da natureza animalesca que me fizera agir daquela forma, seriam reveladas.

Sem poder discutir comigo, Eduardo preparou tudo. As correntes foram chumbadas na parede da garagem, onde eu fiquei recostado, tendo um colchão sob mim e um travesseiro para aliviar as costas. Cadeados grandes foram usados para prender as correntes às argolas de ferro dos braços. Sentado na minha frente, tomando um suco de laranja e comendo um sanduiche natural, meu amigo ria me vendo naquela situação.

–Cara, isso tá me lembrando muito as histórias de lobisomem que a minha vó nos contava na fazenda. Tinha uma que era bem assim. Um sujeito lá, chamado Adonias, que desconfiava que era um lobisomem, pediu pra ser acorrentado, como você.

–E como acaba essa história? Perguntei, por curiosidade.

–O cara vira lobisomem, mata o sujeito que tava vigiando ele e todo o vilarejo. Depois foge.

–Caraca, mano! Foge, louco. Vou te devorar também, provoquei. Mas como Eduardo não parecia acreditar nenhum pouco nas histórias sobrenaturais contadas ao redor de uma fogueira, tudo não passou de descontração e risadas. Seguimos a noite, relembrando momentos, rindo, bebendo, até chegar a hora. E a hora chegou, irmãos.

Eduardo me contou tudo que aconteceu comigo aquela noite. Na manhã seguinte eu ainda tentava digerir tudo. Ele me disse que determinada hora, já era de madrugada, mais de 3 da manhã, comecei a ficar incomodado com as correntes e forçá-las para me soltar. Ele esforçou-se para me acalmar, mas depois de um tempo me encontrava completamente descontrolado. Ele correu o mais rápido que pôde para pegar uma espingarda e dardos tranquilizantes que o pai usava quando mantinha um pequeno zoológico na fazenda. Ao voltar eu terminara de arrebentar a corrente da mão esquerda. Então o acertei no rosto lançando a argola presa na corrente. Antes de o golpear ele tremia apontando a arma pra mim, sem coragem de atirar. Depois claro, tudo fica nebuloso, sendo que a única testemunha do evento apagou e nada mais pôde ser relatado.

Só uma coisa ainda foi confirmada e não só por Eduardo, mas o vídeo que ele fizera do seu celular atestava todas as suas palavras e eu via o vídeo agora. O vídeo começava mostrando uma igreja antiga, com uma torre e uma cruz na ponta. No telhado dessa igreja de madeira eu estava pousado, como um abutre. Tinha sangue escorrendo da minha boca e das minhas presas salientes escorria uma baba espessa. Se aquela criatura monstruosa era eu, meu Deus, o que deve ter sido dos desgraçados que tiveram a infelicidade de esbarrar comigo? Eu continuava sendo eu mesmo de algum jeito. Meu rosto, meu corpo. Com a única diferença dos pelos no meu corpo e algumas deformações no meu rosto, como os caninos proeminentes. Além das orelhas maiores que o normal e os olhos que saltavam do rosto, causando uma agonia tremenda ao se olhar. Uma magreza extrema do meu corpo fazia salientar alguns ossos, principalmente na face, onde as formas lembravam a de uma caveira coberta de pelos.

Eu rugia e uivava, com os braços dobrados sobre as pernas, cheirando o ar, olhando para todos os lados. Quando uma desafortunada alma, a de uma senhorinha que acabava de sair da igreja, apareceu, eu pulei em cima dela. Depois disso o celular caiu no chão e tudo se apagou. Eduardo me conta que correu para ajudar e impedir que eu estraçalhasse a velha. Claro que foi tarde demais para ela e não teve nada que ele pudesse fazer, a não ser observar aterrorizado, enquanto eu esquartejava a velha e comia os pedaços, como se fosse um leão atacando uma zebra nas savanas africanas.

Eu continuo a correr. Mudando sempre de cidade pra cidade. Levo a vida como um vagabundo cigano, não querendo causar mal a quem quer que seja, mas me sentindo impelido sempre a esse mal. O atropelamento pode ter quebrado meus ossos, minha cabeça, perfurado alguns órgãos. Mas este demônio que me possuiu naquela noite, que ainda permanece um mistério pra mim, me mantem vivo de algum jeito. Sei que mesmo que eu meta uma bala na cabeça ainda arrastarei essa carcaça diabolicamente animada.

Os noticiários sempre mostram minhas vítimas. Até agora foram 3, neste recente endereço. Menos de uma semana na cidade. O que adianta ficar fugindo? Só aumento o raio de alcance das vítimas. Sempre tento lidar melhor com tudo isso, me vendo como um predador que precisa caçar pra se alimentar. Pobres gazelas, zebras, antílopes; corram, o lobo está chegando.