O HOMEM QUE QUERIA MATAR O DIABO
Parte 1
   
   O diabo existe. E, escuta só, eu vou matar o porquera. Ah, vou sim! Pode escrevinhá aí, seu moço. Eu sei que o desgramado é traiçoeiro e sempre costura as suas esparrelas no destino dos homens assim como quem não quer nada, na surdina. E estas costuras que faz, de tão bem-feitas, não deixam linhas soltas de sua passagem aqui na terra não. Ele é muito malandro, o cabra safado.


   A desgraceira que se deu com o beato Antônio Conselheiro e o povo do Arraial de Canudos, veja só vosmecê, foi coisa do Capeta. Vou te contar o acontecido bem do princípio.

   Foi bem assim: num dia quente como o inferno deve de ser, lá longe, na variante empoeirada que fazia trilha pra fazenda do velho João Pereira, vinha um cabra de a pé, trazendo de reboque um burrico cheio de tralhas no lombo.

   Olha, rapaiz, inté hoje eu não me esqueço a figura magra, meio esturricada de carnes a vestir um paletó branco, de chapéu de abas largas, também branco, que lhe caía por riba das fuças. De longe, vosmecê não dava um vintém pela criatura, pois se afigurava homem mofino, desses aí sem calibre pra se defender por conta de punhal.
   
   Mas a parecença de fraqueza do desenfeliz durou um tico de nada, visse? Foi a coisa mais esquisita que já vi nesta vida, porque eu lhe digo uma coisa curta e certa, seu moço, pode escrevinhá aí: aquilo não era procedimento sério de um vivente deste mundo!

  O excomungado andava numa lerdeza irritante, sabe? Calmo, de um sossego tal que dava nos nervos da gente. As alpercatas mal tocavam o chão e, por onde passava, a calmaria também se espalhava em torno dele. Os ventos não lhe bolinavam as roupas, os bichos e insetos calavam-se, as poucas flores deste sertão sofrido, na sua passagem, murchavam a olhos vistos. Inté o calor não lhe fazia frente. O cabra era de arrepiar, de meter medo mesmo na luz do dia.
   
   Assustado por demais da conta, larguei a enxada e corri até à fazenda. O velho coronel, arriado de tristeza na cadeira de balanço no copiar da casa grande, ruminava lá em pensamentos o que haveria de fazer pra mode de ajudar o filho doente.

   “Coronel, coronel, tem gente estranha vindo pra cá e não parece ser boa figura”, eu disse esbaforido quando dei no quintal, botando as galinhas em correria.

   O velho levantou, estirou o olhar na direção da estradinha, torceu a cara de leve, se virou pra mim e disse:

   “Bento, Chama o mestre Germano e o negro Idalino, ali perto do açude, e venha com eles. Quero os três armados. Quero os três de prontidão aí em qualquer canto pra passar fogo se houver perrengue”.
   
   Saí de carreira batida na intenção de cumprir as ordens do velho.

   Quando chegamos, já de armas em punho, o tal de branco já se botava de presença no meio do terreiro, de frente para o copiar da casa grande, e dava “boa tarde” pro coronel.

  “Diga lá pra que veio, moço. Se é pra me vender quinquilharia sem valia, pode dar meia volta e tomar rumo pra outro destino”.


   O de branco, se ofendido ficou, não deu sinal, esticou o pescoço à frente, levantado um pouquinho a aba do chapéu:

   Não venho lhe vender quinquilharias não, seu Coronel. Trago-lhe boas novas. Ouvi dizer por aí que o senhor tem um filho jogado na cama por causa de doença séria, quase moribundo. Não é verdade não?”

   O velho João Pereira só fez baixar a cabeça de leve.

   “Pois eu lhe digo, coronel, que posso curar o teu filho com as beberagens que trago comigo”.

   Na face enrugada, curtida de sol do velho, num repente formou-se um sopro de esperança, deixando o coitado inté meio abobalhado das ideias, pois o pobre deixou pra lá o despotismo de esquisitices em torno daquele maldito de branco.

   Aquele fio de esperança agarrado na cara do velho João Pereira me encafifou um tanto, num sabe? Do mesmo modo que me deixou descabriado o procedimento dos meus dois companheiros de armas. O mestre Germano e o negro Idalino não davam por conta o remanso estranho que caiu de repente por sobre toda a fazenda.

   Ora! Veja só vosmecê! Não perceberam a falta do vento assim que o “De Branco” botou os pés no terreiro. Não perceberam o comportamento das galinhas quietinhas no seu canto, sem ciscar nem cacarejar, ou o cachorro brabo do Nego Nereu, sempre tão barulhento com estranhos, botar o rabo entre as pernas e enfiar o focinho na terra.

   Claro, eles não viam o que eu via!

   E, moço, pode escrevinhá aí: o desgraçado do diabo sabia muito bem que eu era o único ali pra enxergar a verdade da sua natureza podre. É isso mesmo! O porquera chegou a me lançar um olhar meio enviesado, de rabo de olho, enquanto o velho João Pereira avaliava a força das palavras dele.

   Vixe, os olhos do Medonho chisparam, enegreceram por riba de mim como carvão e uma língua de cobra lhe escorreu do canto da boca pra decorar o sorriso mais cheio de maldade que jamais vi em qualquer outro vivente neste mundo de meu Deus. É sim. Juro pela minha santa mãezinha. Tremi de medo! Meu coração bateu forte acelerado dentro do peito.

   Rapaiz, aquilo era uma visão medonha de deixar o cabra frôxo na hora, visse?

   “E qual é o preço da beberagem?”, perguntou o coronel numa gastura que se via nos olhos.

   O excomungado encalacrado naquela figura mofina pegou uma garrafa verde de um aió preso no lombo do jumento e falou bem assim: “Coronel, isto aqui não boto preço em dinheiro não. É coisa preciosa e vai devolver a vida pro teu filho. Dou a garrafa em troca de um préstimo de vosmecê”.

   Arre égua, logo vi que aquilo não era procedimento de cabra sério. O coronel pensou um pouco, espremeu a cara matutando onde aquela criatura queria chegar e saiu com essa pra cima do Enfezado:

   ”E quem lhe garante que, no desespero, não posso tomar esta garrafa de vosmecê à força?

   O Arrenegado, na posse daquele caboclo mirrado, espichou o pescoço, estufou o peito de cutelinho e devolveu o desaforo na bucha: 

   “Tome tento coronel, vosmecê não se atreveria de mexer comigo”.

   Isso mesmo que vosmecê ouviu, foi bem isso que o excomungado disse ao velho João Pereira, mas não pense que foi na mesma voz que tava conduzindo a conversa não. O desafio saiu da boca da criatura molambenta por uma outra, decidida, rancorosa, firme, de quem tem comando da situação, viu?

   Fiquei apavorado porque pensei que o coronel ia mandar passar fogo no desaforado, mas não deu a ordem não. E, olha, o coronel era homem valente, não era cabra de engolir desaforo daquela marca. Graças a Deus, ele teve o juízo de atinar com as ideias de que, com aquele ali, o buraco era mais embaixo.
 
   “O que é que vosmecê quer em troca da garrafa?

   O De Branco devolveu o remédio pro aió e esfregou as mãos.

   “Muito bem, vou direto ao assunto. Vosmecê é dono da madeireira de Juazeiro, não é não? Então eu quero que o senhor não entregue a partida de madeira que Antônio conselheiro encomendou pra fazer a igreja lá no Arraial de Canudos.”

   O coronel achou aquilo um despautério.

   “Mas o beato já pagou a madeira adiantado!” 

   O De branco não se deu por vencido e botou intimação: 

   “Coronel, vosmecê é quem sabe. Se vosmecê quer o teu filho vivo até amanhã à noite, então faz o que eu tô dizendo”.

   Aí, o velho respirou fundo e disse: 

Olha, moço, não gosto de me meter em política porque tenho certeza que isso vai dar confusão. O prefeito só tá esperando o beato se arreliar e botar gente de armas nas estradas.”

   O Enfezado só se fez em sorriso, sorriso de malícia das grandes, num sabe? E falou bem assim: 

   “Que se dane Antônio Conselheiro e aquele bando de esfomeados sem serventia”.

   O velho João Pereira olhou pra dentro da casa, escutou a tosse catarrenta do filho vazando pelas janelas, escutou o lamento triste de Dona Mariquinha, outra criatura de Deus mais desesperada ainda junto ao filho. Olhou pra nós com uma cara de quem pedia desculpa porque, naquela hora, sabia bem que ia fechar negócio com o excomungado dos infernos.

   “Tá bom, eu aceito, deixe a garrafa e se vá. Vosmecê tem a minha palavra”.

    O Tinhoso pegou a garrafa de remédio e jogou pro coronel. E, antes de ir puxando o burrico com ele, me lançou um olhar que ainda me causa gastura inté hoje quando eu me alembro. Ele deu uma puxadinha na aba do chapéu em cumprimento, com aquele sorriso maligno na cara, de língua de cobra no canto da boca, e me jogou essa nas fuça: 

   “Nos vemos por aí nessas veredas, moço”.

   Misericórdia! Dizem que fiquei branco igual papel e perdi a fala. De fato, foi assim mesmo. Não tive tento de responder àquela criatura não. O medo era mais forte.

   Bom, daí por diante, como vosmecê bem sabe, a situação começou a feder pro lado de Antônio Conselheiro. Alguém espalhou notícia de que o beato ia invadir Juazeiro com um bando de jagunços armados inté os dente pra mode de tomar a madeira encomendada à força. Foi um Deus nos acuda. Muita gente fugiu da cidade. Tenho certeza que a boataria que se espalhou foi obra do excomungado também. O juiz Arlindo Leoni enviou carta pro governador da Bahia contando o sucedido, pedindo um ajutório urgente no caso.

    Agora, deixa eu te contar o que aconteceu no outro dia, na fazenda do velho João Pereira. O Bode Preto cumpriu o prometido. A garrafada, de sei lá o quê, endireitou o espinhaço do filho, botando ele de pé novamente. Só que eu não fiquei muito contente não, visse? Sou cabra religioso e aquela cura não procedia de boa coisa.

   Fiquei, na verdade, bem arreliado com o coronel de ter afrouxado o juízo, ter caído na esparrela do Maldito. Meu pai sempre me ensinou que não se deve cair nas artimanhas do diabo. Ele não podia ter feito acordo com o Tinhoso bem em frente das nossas fuças, num sabe? Parecia inté que nós tava de acordo também. Não! Não tava certo não!

   Bom, o fato é que acabamos falando umas besteiras de boca pra fora um pro outro e decidi pegar as minhas tralhas pra cair no mundo. Não queria mais viver num lugar onde o dono era coiteiro do Diabo.

   Então, joguei pernas naquelas estradas à procura de outra fazenda onde trabalhar. Vai daqui, e vai de  acolá, come poeira aqui, toma chuva de lá e nada de conseguir pouso em troca dos meus serviços. Passei fome, visse?

   E nessa aí de passar necessidade, sem rumo certo, é que fui bater com as fuças no Arraial de Canudos pra pedir ajuda. Antônio Conselheiro, com aquela enorme barba inté quase a bater na cintura, um homem santo enviado por Deus pra tirar o sertanejo daquela miséria, me deu um teto e trabalho pra fazer.

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Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 22/03/2021
Reeditado em 26/03/2021
Código do texto: T7213454
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