"A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas."
Guimarães Rosa


 
     
          A
 menina se divertia vendo sua sombra se alongar e se encolher conforme o balanço se movimentava para cima e para baixo. O som de seu riso gostoso se misturava ao ruído que o vento fazia em seus ouvidos. Desde que havia se mudado para aquela casa, Melissa passava a maior parte do tempo brincando no balanço rústico que já estava ali quando ela e sua família chegaram, algumas semanas antes.

Era uma casa grande e muito antiga, mas bem conservada e, como dizia sua mãe, era uma casa que exalava história. Tinha sido a sede de uma importante fazenda, até que suas terras foram dando lugar à expansão urbana e ela acabou encravada no meio de um elegante bairro de classe média. Apesar de ocupar uma área de terreno dezenas de vezes menor do que a antiga sede ocupava, o imóvel tombado como patrimônio histórico foi mantido com todas as suas características e com uma grande área à sua volta, um quintal espaçoso e repleto de árvores. Foi ali que, sob a sombra de uma árvore frondosa de copa larga, a menina encontrou o balanço feito com um pedaço de madeira que servia de assento preso à duas grossas cordas que pendiam do seu tronco mais robusto.

Há dias Melissa vinha buscando coragem para uma grande proeza que tinha imaginando, queria saltar do balanço quando estivesse o mais alto que conseguisse chegar, pois achava que daquela forma experimentaria a mesma sensação de voar que os pássaros têm. Naquela manhã pálida, a menina usava o pouco peso de seu corpo para dar impulsos ao movimento de vai-e-vem tentando chegar o mais alto possível. A cada subida, sentia o vento soprando fresco em seu rosto e ria ao ver as pontas de seus pezinhos contrastando com o azul do céu. De repente, sentiu que o momento tinha chegado, estava indo mais alto do que de costume, então, sem nenhum temor, se lançou no ar, caindo de joelhos alguns metros à frente, com o coração disparado pela aventura e sem notar os joelhos ralados.


Havia acabado de experimentar a melhor sensação de toda a sua vida e agora que tinha realizado seu primeiro voo, queria repetir muitas vezes, quem sabe conseguisse ir ainda mais alto.

À suas costas, o vai-e-vem do balanço ia perdendo velocidade aos poucos ainda fazendo o tronco da velha árvore gemer. Ao se virar em direção ao brinquedo, Melissa percebeu algo estranho e, antes de se aproximar, olhou ao redor para confirmar se ainda estava sozinha ali. Não havia mais ninguém no quintal além dela, porém há alguns metros de onde a menina estava, uma sombra se delineava no chão, a sombra de uma criança sentada no balanço vazio.

Melissa esperou o balanço ficar totalmente inerte e se aproximou, quando parou ao seu lado, viu que agora havia duas sombras replicadas no chão, uma delas projetava um corpo em pé, que ela reconheceu sendo o desenho sua própria silhueta, a outra desenhava claramente o perfil de uma criança um pouco maior do que ela, um menino talvez, sentado no balanço. Ela tocou nas cordas que estavam bem esticadas tentando movê-las para observar se a sombra no chão se movia também, contudo o brinquedo continuou estático e ela sentiu que sobre o banquinho de madeira havia o peso de alguém. Intrigada com aquela situação, Melissa rodeou a árvore buscando entender o que estava acontecendo e, enquanto dava a volta completa, como se a sombra observasse seus movimentos. A menina terminou o contorno ainda sem entender nada e naquele momento ouviu a risada gostosa de uma criança travessa.  

- Quem é você? Como você faz isso? - a menina perguntou, mas a única resposta que recebeu foi mais uma sonora risada.

A sombra desenhada no chão começou a se alongar e diminuir levada pelo movimento do balanço que ganhava velocidade outra vez e, da mesma forma como Melissa tinha feito minutos antes, o balanço agora vazio chegava cada vez mais alto, muito além do ponto em que a menina tinha chegado antes. A força com que o balanço se movimentava fazia o galho da árvore ranger alto e o som se misturava ao som de gargalhadas infantis, como se houvessem muitas outras crianças ao redor. Um segundo depois, a menina viu a sombra se soltar do balanço e cair em pé alguns metros à sua frente, exatamente como ela tinha feito. Agora a sombra não estava mais esticada no chão como cabe as sombras permanecerem, estava em pé, um vulto escuro e sólido que voltou a cabeça para a menina, deu uma risada alta e correu em direção ao interior da casa.

Melissa saiu em disparada, correndo com grande dificuldade para alcançar a mancha escura que se movimentava mais rapidamente do que seria possível a uma criança.  

Quando Melissa entrou em sua casa ofegando pelo esforço, viu que a sombra já estava no alto da escada e que parecia esperar por ela, como se a estivesse instigando a uma brincadeira de esonder e pegar. A menina tomou folego e correu escada à cima, ao chegar ao patamar do primeiro andar, viu a sombra entrar em seu quarto e bater a porta. Melissa caminhou devagar até seu quarto e quando abriu a porta e olhou para dentro do cômodo, não viu nada ali. Curiosa, entrou no quarto tomando o cuidado de deixar a porta aberta à suas costas. Depois de uma boa olhada em tudo sem encontrar qualquer sinal da sombra, percebeu que havia algo estranho sobre sua cama, um brinquedo que ela nunca tinha visto antes. Ao se aproximar, descobriu que se tratava de uma boneca com os cabelos castanhos amarrados em dois rabinhos na lateral da cabeça assim como os seus cabelos estavam sempre presos, o vestido de algodão estampado com pequenas borboletinhas azuis era igual ao que ela vestia naquele dia e os dois grandes olhos castanhos eram idênticos aos seus olhos, até a pequena marca de nascença que ela tinha em seu rosto, a boneca também tinha. Por um instante ela pensou que aquele brinquedo poderia ter sido um presente da mãe e segurou a miniatura de si nas mãos reconhecendo no rosto de plástico os detalhes de seu próprio rosto até que, de repente, as folhas da janela se abriram com força, bateram na parede e ficaram balançando nas dobradiças produzindo um rangido assustador.

Um pouco assustada com tudo aquilo, Melissa decidiu que era hora de sair dali. Abandonou a boneca no chão para ir à procura de sua mãe, porém, antes de dar o primeiro passo, ouviu o som já conhecido da risada que tinha ouvido lá fora e que agora vinha de dentro de seu guarda-roupas. Aquilo a deixou muito assustada, mas antes que ela pudesse sair dali a porta do quarto se fechou sozinha e a menina ouviu chave girando na fechadura, deixando-a presa ali dentro.  

Melissa tentou gritar, mas de sua garganta apenas um gemido de medo brotou, um som tão baixo que jamais seria ouvido por sua mãe e que foi encoberto pelo som de risadas que começou aumentar rapidamente. Agora ela tinha certeza que as risadas vinham do interior de seu guarda-roupas, como se dezenas de crianças estivessem presas lá dentro. Apavorada, menina se encolheu em um canto contra a parede.

A porta do guarda-roupas começou a se abrir lentamente revelando uma densa escuridão em seu interior até que dois olhos brilhantes e amarelos surgiram movendo-se para fora. Melissa sentiu que seu coração ia parar de pânico quando os olhos amarelos se desprenderam da escuridão. Eram os olhos da sombra que caminhava em sua direção, ajoelhou-se ao seu lado e com o hálito gelado da morte sussurrou em seu ouvido. 

 

          A mãe de Melissa encontrou a filha algum tempo depois, muito pálida, encolhida num canto do quarto, atônita, tremendo de frio e febre. De seus joelhos ralados escorria grossos filetes de sangue e, por mais que ela tentasse tirar a menina daquele transe, a criança permanecia inerte, com os olhos vidrados, sem dizer qualquer palavra.

Socorrida e levada ao hospital sem que soubessem dizer por quanto tempo havia permanecido na estranha situação em que foi encontrada, a menina foi submetida a vários exames sem esboçar qualquer reação. Depois de analisar tomografias e ressonâncias, os médicos apenas puderam dizer que haviam detectado uma mancha escura ocupando parte do cérebro de Melissa, porém, não tinha sido possível fechar o diagnóstico.

Nos dias seguintes, a mancha desconhecida continuou se espalhando até tomar todo o cérebro de Melissa que, em poucas horas, teve sua morte cerebral declarada pela equipe médica. Apesar da dor e da tristeza, os pais aceitaram desligar os aparelhos e permaneceram ao seu lado pelas últimas horas de sua vida.  

Após o falecimento de Melissa, a família decidiu se mudar daquela casa, não poderiam continuar ali com todas aquelas lembranças. O quarto da menina, que permanecia intacto desde o dia do incidente, foi o último a ser desmontado e, enquanto encaixotava as coisas da filha, a mãe encontrou uma boneca que ela não conhecia no mesmo lugar em que a menina tinha sido encontrada. Sem ter a menor ideia de onde aquilo tinha vindo e incomodada com a semelhança entre a boneca e sua filha, a mulher optou por deixá-la ali mesmo.

Ao deixar a casa, com o coração apertado e os olhos pesados pelas lágrimas acumuladas, a mãe olhou uma última vez para o quintal que Melissa tanto gostava e, por um instante, viu o balanço vazio se movendo e as sombras de várias crianças correndo ao redor da árvore centenária.              
 




 
Fefa Rodrigues
Enviado por Fefa Rodrigues em 30/03/2021
Reeditado em 12/05/2021
Código do texto: T7219914
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