HER FRITZ - CLTS 15

Enquanto a noite assombra aqueles que não dormem, duas sinistras criaturas caminhavam pelos solitários corredores do Santa Dimpna.

- O homem deu um tiro na cabeça.

- Isso não muda nada por aqui. Nós continuamos na mesma. Antes estávamos esquecidos, e para nosso bem, vamos permanecer assim.

- Mas o dinheiro vai secar.

- Quem disse que o dinheiro vem de Vargas ou da capital?

- Nós tínhamos um presidente louco.

A conversa entre o médico e seu assistente parecia tensa.

Dr. Álvares estava seguro que nada alteraria seus planos há tempos traçados; André, por outro lado, não tinha tanta certeza. Entre uma dúvida e outra, seguiam em direção ao misterioso laboratório do pavilhão B daquela maldita instituição encravada no meio da selva brasileira. Os dois já estavam ali por mais tempo do que desejavam e, em alguns momentos, mais pareciam internos perturbados, já que não passavam de números na planilha do soturno diretor. Eles queriam apenas finalizar a pesquisa, colher seus louros e debandar para as terras do Tio Sam.

Das mazelas praticadas, aquela era apenas mais uma experiência oculta sob os tijolos gelados do sanatório, nem menos ou mais cruel que outras.

* * *

No fim de 1945, enquanto a vencida Alemanha depunha as armas, soviéticos e americanos disputavam seus despojos. O maior tesouro da humanidade, sem dúvida alguma, é o conhecimento, e quem o possui domina os demais.

Her Fritz, como foi nomeado, era a mente por traz dos experimentos nazistas; segundo suas ordens, outros agiam. Tudo que se desenvolvia em Auschwitz e Belzec era guiado por seus desígnios, ele supervisionava protegido pelas sombras do Terceiro Reich e, por fim, certificava-se sempre da incineração de suas vítimas, nada lhe escapava.

O cientista macabro foi entregue aos americanos, era apenas mais um louco com crimes passíveis da pena capital. Encerraria com sua morte uma longa lista de atrocidades. As descobertas sobre a natureza humana seriam sepultas em nome da dignidade.

Aquele ser hediondo jamais cairia nas garras da justiça. Os vitoriosos tinham outros planos.

* * *

- O senhor não teme os rumores? As coisas que ocorrem nos outros pavilhões? Isto esta se tornando um caos, o diretor perdeu o controle.

- Os problemas administrativos do sanatório não são da nossa conta. Somos babás do chucrute.

Dr. Álvares não demonstrava emoções em suas palavras, permanecia frio, pobre de sentimentos.

- Ouvi algumas coisas dos outros enfermeiros. Estão falando que fatos estranhos acontecem nas outras alas. A morte ronda este maldito hospício.

- André, somos homens da ciência. Deixa de bobagens.

- Pode ser castigo de Deus pelas coisas que fazemos.

O enfermeiro tivera uma educação cristã, chegava a verter lágrimas quando implorava o perdão divino no oculto de seu quarto. Toda noite, em suas orações reconhecia sua culpa por participar da deturpação da obra de Deus.

- Se você continuar com essas besteiras, pedirei seu afastamento.

- Não são besteiras doutor, são fatos. Estou apenas tentando entender um pouco as coisas que nos cercam.

O médico poderia ter uma carreira brilhante no Rio de Janeiro, mas seus estudos no campo da neurologia, especialidade que dava os primeiros passos após 1950, chamou a atenção dos benfeitores daquela instituição. O salário era bom, os bônus pelos resultados alcançados poderiam lhe garantir uma ótima vida na Califórnia. Deixaria o Brasil e, principalmente, aquela selva contaminada pelos famigerados mosquitos.

* * *

No fim do corredor, longe dos gritos daqueles loucos injustiçados, uma pesada porta de metal escondia mais um dos sórdidos mistérios daquele antro de horror.

André cumprimentou os dois homens que guardavam a masmorra. Um deles destravou o mecanismo que a selava, o metal produziu um som estridente enquanto o interior era revelado.

Era uma antecâmara com vários dispositivos elétricos cintilando luzes diversas. Alguns funcionários de jaleco branco mantinham-se atentos a seus afazeres.

Dr. Álvares movimentava-se como um fantasma. Nunca estava de bom humor. Ao confrontar o velho Chucrute, não conseguia esconder a inveja de seu intelecto produtivo.

- Como se sente Her Fritz? -Era uma pergunta retórica, não esperava resposta.

Um estranho aparelho mecânico deslizou sobre rodas, indo parar diante dos visitantes. O meio homem encarou os doutores. Por mais que se vissem de tempos em tempos, sempre era desconfortável olhar aquela criatura enclausurada num tubo de vidro, imerso em líquido amniótico que constantemente devia ser renovado, porém ele estava na frente de um milagre da ciência. Aquela criatura permaneceu com viva após uma mal sucedida experiência que findou-se numa grande explosão. O Dr. Fritz perdeu parte de seu corpo. Suas pernas foram esmagadas por uma coluna de concreto, o braço esquerdo triturado teve que ser amputado após a gangrena, seu rosto e o lado direito do corpo queimado pela química de suas provetas misteriosas e, por fim, os órgãos internos foram saturados pelo veneno desconhecido.

Graças à prontidão de sua equipe e ao avanço de seus trabalhos, os restos agonizantes do brilhante cientista foram acoplados na rude maquinaria que, posteriormente, foi melhorada. O Reich dispunha da criatividade e da falta de escrúpulos, não existia ética quando se tratava do manuseio das subespécies que não fossem arianas. Assim o cruel gênio ganhou uma longa sobrevida, onde as brincadeiras com a anatomia humana poderiam lhe render bons frutos e inúmeros corpos mutilados.

- Estou como ontem, e como nos dias anteriores, também estarei aqui amanhã, do mesmo jeito. - respondeu Her Fritz sem mover os lábios.

A voz estridente do cientista era emitida por um pequeno alto falante acoplado naquilo que deveria ser o tórax de um homem normal. Um tradutor embutido permitia uma clara comunicação entre os presentes, era apenas mais uma das maravilhas daquele traje autômato, onde coração, pulmão e demais órgãos também podiam ser trocados quando a validade fosse perdida.

- Como estão os progressos, Her?

- Os espécimes estão respondendo bem aos estímulos.

* * *

Quando a inteligência militar aliada entregou o médico nazista aos brasileiros, ele imediatamente foi transferido para aquele local secreto nos confins do Acre, protegido pela selva amazônica. Ali teriam tranquilidade e material abundante para as pesquisas, pois ninguém se importava com indígenas ou migrantes desaparecidos. Se alguém fala-se algo do que se passava naquele instituto, certamente seriam taxados como loucos. Bastava negar o ocorrido.

* * *

Saindo da antecâmara, outro corredor dava para vários quartos equipados com engenhocas complexas que só podiam ser vistos por uma pequena abertura selada por vidro transparente na porta.

- Preciso dos relatórios para nossos investidores, Her. Temos prazos.

- Individuo três responde bem ao imunossupressor a base de micofenolato de sódio. O coração parece capaz de funcionar sem aparelhos.

A voz metálica do hospede de guerra soava com certo tom de desprezo.

No início, todos os transplantados morriam alguns dias após a cirurgia, era quase impossível recriar as condições quer tornaram Her Fritz o primeiro de sua espécie; mas já se passavam quase dez anos que estavam naquela floresta e agora deviam mostrar resultado.

- Individuo sete tem dificuldade em mover os braços transplantados. Necrose de tecidos corromperam ligações nervosas. Rejeição iminente.

Durante a guerra, a ciência de Her Fritz tinha por objetivo salvar soldados mutilados em combate. Desejavam usar partes intactas dos mortos em substituição a membros de soldados feridos. Teriam um estoque de peças humanas sobressalentes, mesmo que para isso fosse preciso usar parte dos vencidos.

Seus testes, concentravam-se principalmente em gêmeos, crianças de preferência, de anatomia bem parecida e com pouca idade, a rejeição poderia ser controlada. No fundo, ele tinha um prazer estranho ao ver seus associados desmembrar aquelas pobres almas, refazendo-as com partes alheias. Irmãos tinham seus membros trocados, para em poucos dias vê-los devorados pela podridão, na maioria dos casos eram assassinados para facilitar a autópsia, tinham que analisar os efeitos das drogas nos órgãos internos.

Eles não tiveram tempo para finalizar as experiências durante a guerra, mas a ideia era muito boa para ser abandonada. Os dogmas e a ética, no entanto, impedem tais violações ao direito à vida, a solução seria a pesquisa clandestina, por isso estavam ali, às portas do inferno.

Da pequena escotilha, o Dr. Álvares vislumbrava a face sofrida do individuo sete, atrás de si, Her Fritz recebia informações via ondas de rádio sobre a situação do interior do quarto. Se ele ainda tivesse um rosto completo, com certeza haveriam rugas de preocupação.

Sem aviso, as luzes começaram a piscar, o gerador elétrico movido a diesel dava sinais de defeito. Avisos de emergência soaram de todos os quartos daquele pavilhão. Mensagens confusas chegavam ao processador do médico deformado. Por fim, a escuridão e o silêncio dominaram o local. O gerador de emergência entrou em ação, a sala se iluminou novamente. Pancadas violentas ameaçavam derrubar a porta que dava aceso ao laboratório.

- O diabo vem cobrar nossa dívida. - André estava desesperado.

Cada um dos espécimes usados para teste estava de pé diante da pequena janela de vidro. Esperavam aquele que, em minutos, puniria os loucos do Sanatório Santa Dimpna.

Finalmente a porta cedeu, partes do corpo de um dos guardas foi arremessada contra os painéis de controle, antes que a energia fosse desligada em definitivo, Dr. Alvares viu sua maior realização entrando no laboratório.

Com dois metros de altura, três pares de braços e uma força capaz de erguer um ônibus, aquele ser semiconsciente tinha um único objetivo. Vingar-se do seu criador.

Tema: Episódios Históricos Sombrios, Distopia

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 29/05/2021
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