O SANGUE DE EVA - CLTS 15

Um corpo delicado e sem vida sobre uma mesa de aço inoxidável, em decúbito dorsal e exposto friamente sob uma luz fluorescente. Aberto com incisão em Y, a pele puxada para trás do tronco e mais tarde suturada sem muito cuidado com linha preta bem grossa. Esse pequeno corpinho foi totalmente explorado, em todas as suas cavidades e orifícios, o conteúdo do estômago esvaziado, suas vísceras desenroladas, a parte de cima da cabeça fora removida e parte do cérebro retirado para análise. Uma violência física absurda e impensável para quem está vivo.

Eva Rozen acompanhada de Carl Clauberg e de um soldado, visitava as salas onde armazenavam os corpos das cobaias de inúmeras experiências realizadas pelos médicos nazistas.

Aquelas imagens tornaram-se comuns no cotidiano de Eva, uma das poucas mulheres que trabalhava no centro de experiência nazista e a única envolvida com um dos principais médicos, Carl Clauberg. Ele, por ter muita influência na área de pesquisa e principalmente na esterilização de meninas, conseguiu junto a Josef Mengele, o médico chefe, a autorização para que Eva continuasse auxiliando-o, já que exercia essa função na casa do médico.

Na última sala em que entraram, o médico e o soldado apenas caminharam entre as mesas analisando os corpos e foram em direção à saída da sala, mas ela paralisou, a cena a sua frente a fez travar, e em meio às conversas entre o doutor, o soldado e os demais que passavam no corredor, Eva entrou em um tipo de transe, como se tivesse saído daquele local e entrado numa nuvem de lembranças e constatações em que apenas a audição parecia estar viva.

Eles miraram aquele corpo em destaque no fundo da sala. Num espaço que era reservado a meninas esterilizadas, havia um menino.

– Mais um, camarada! Já que está morto, vamos usar os órgãos, alguém há de gostar. – As palavras do doutor Carl Clauberg entraram como a ponta de uma faca em seu peito naquela manhã de um dia qualquer de dezembro de 1944.

Eva se tornou coautora de todas as atrocidades cometidas com as meninas de 8 a 10 anos que passavam por Auschwitz ajudando Clauberg que era responsável pela área de experimentação com prisioneiras, utilizando métodos de esterilização em massa não cirúrgico, a partir da injeção de irritantes químicos em seus úteros.

– Se não estivesse morto, eu resolveria num tiro. – Completou o soldado.

Os pensamentos a levaram a 1933, quando expulsaram todos os médicos judeus dos hospitais, alegando que eles tiravam os empregos dos alemães. Numa época em que as mulheres eram presença rara em ambiente público, para Eva foi o primeiro grande obstáculo de sua vida. Ela acabou indo trabalhar na casa de Carl Clauberg como faxineira. Precisava sustentar o filho. Eram apenas os dois: Eva e David.

Carl já a conhecia e sabia da qualidade do trabalho de Eva na ginecologia. Além de ser sua empregada nos afazeres domésticos, usava seus conhecimentos em suas pesquisas, mas com o crescimento da ligação com o partido nazista, ele a proibiu de frequentar sua casa.

Via tudo passar a sua frente como se houvesse um monitor mostrando o momento em que fugia e se escondia junto com David. Foram quase três anos de escuridão, vivendo em um porão velho na casa de conhecidos do falecido pai, até que foram encontrados e levados a Auschwitz.

Imediatamente em sua memória, seu cérebro quis mostrar a razão de fazer o que fazia: seu filho. Ele era o motivo de estar ali, ajudando a matar crianças.

– Não esqueça dos olhos, o Doutor Mengele vai gostar do presente. – Completou Carl.

Eva há muito não se importava com as palavras de quem quer que fosse, mas naquele momento, cada diálogo a levava a algum lugar. Sua tristeza impedia-lhe de dizer ou fazer qualquer movimento. Suas súplicas internas e a falta de ar faziam com que suas veias no pescoço, que já eram expostas, parecessem explodir. As mãos esticadas para baixo, as pernas alinhadas uma ao lado da outra e a coluna levemente corcunda mostravam o tamanho do horror que o interior dessa mulher exalava.

– Veja soldado! O problema de ser mulher é que mesmo depois de matar várias meninas, ela ainda se compadece com os mortos.

O doutor Carl e a maioria dos soldados nazistas pareciam ser feitos de gelo, nada os abalava em relação à morte.

– No primeiro dia, pareceu terrível. Mas aí eu disse para mim mesmo: “Dane-se, ordem é ordem”. No segundo e terceiro dias, pensei “tanto faz, de qualquer jeito”. No quarto, comecei a gostar. – Disse o soldado em um diálogo tranquilo com o doutor Clauberg.

Eva apenas ouvia e tentava inutilmente contar mentalmente quantas vidas arrancou da terra e quantas estavam mutiladas ou solicitando a morte para cessar a dor. Eram todas filhas de alguém que talvez não estivesse mais vivo, mas que já havia derramado lágrimas pela abrupta separação.

Viajou dentro de sua mente para o dia do nascimento de David, depois para os primeiros passos, chegando à lembrança da foto que mantinha ao lado da cama. Ele estava sentado em um bloco de concreto fazendo desenhos no chão com a ponta de um graveto. Ela o ensinou a desenhar a suástica. Precisava saber se defender, sabia que se ele estivesse integrado teria mais chance de sobreviver.

– Mamãe! Por que não posso brincar com aqueles meninos.

David apontava para um grupo de crianças voltando da escola.

– No futuro tudo será melhor, meu amor.

– Quero ser um soldado. – Levantou e saiu marchando.

Naquele momento, ela achou engraçado, riu para não constrangê-lo, mas ali, dentro da sala, em meio a corpos fuzilados pelos mesmos soldados que faziam brilhar os olhos de David, percebeu o erro que um simples sorriso pode acarretar na vida de alguém.

– Eva, o que faz parada aí? Temos muito trabalho a fazer.

Ela permanecia imóvel, parecia cair em uma realidade que estava sendo esquecida, não aceitava que seu sono estivesse tranquilo, como poderia dormir a noite sabendo que fazia inocentes meninas sofrerem? Como não sentia mais enjoos ao deitar-se com Carl e não tremia mais enquanto atualizava a lista de meninas esterilizadas e mortas que aumentava a cada dia?

– Eu lhe falei doutor Carl, essa vadia porca, um dia iria dar problema, mas posso resolver isso fácil. Heil Hitler. – Disse um soldado apontando a pistola Luger para a cabeça de Eva.

– Cale-se soldado, mulheres assim ainda têm muita serventia. – Carl passava a língua nos lábios e soltava largas gargalhadas.

– Prefiro as novinhas que não foram usadas ainda. – Completou o soldado.

Sentiu necessidade de questionar sua vida a alguém, mas seu corpo parou, parecia que nunca mais mexeria, porém seu cérebro mantinha-se ativo e a cada palavra cruelmente desferida pelo doutor ou pelo soldado tudo ao redor parecia parar, as imagens aumentavam e o som parecia ficar mais agudo. Seus sentidos pareciam mais acelerados, o que era cinza tornou-se colorido, sentia estar levitando, delirando em imagens absurdas e sinistras.

Como se tivesse saído do lugar e entrado em um teatro bizarro, via meninas minguadas desfilando em fileiras. Estavam nuas, seus crânios grandes pareciam pesar nos ombros daqueles corpos mirrados, forçando o caminhar em zigue-zague. Olhavam em sua direção evidenciando as maças do rosto e lábios pintados com sangue tentando sorrir. Faziam poses, estampando suas cabeças raspadas, costelas claramente visíveis sob a pele, a carne desnutrida e gritando seus números. Não tinham mais nomes.

Eram tratadas como escravas sexuais, jogadas para soldados bêbados depois de passar pelo procedimento. As poucas que resistiam e sobreviviam ao tratamento.

O número dez estampado em um gigante quadro de Adolf Hitler atrás da imagem que se formou após todas se perfilarem e se mostrarem aos médicos ali presentes, indicava o local em que tudo acontecia. Era o pavilhão dez.

– Doutor Carl! O comandante o aguarda. – Um soldado o chamou e o retirou da sala, no momento em que o médico abria o zíper de sua calça e caminhava em direção a Eva.

Ela não teve escolha, Carl tornou-se com o passar do tempo, um dos mais poderosos no círculo médico, sempre fazendo questão de jogar na cara dos colegas que era o melhor e mais letal cientista. Sempre gritara para quem quisesse ouvir, que tirou Eva do campo e a suportava viva por pena, e que já era uma cientista ultrapassada em suas pesquisas. Mas a mantinha sempre por perto. Não era apenas por essa razão, as ameaças diárias em relação a seu filho tiravam as forças daquela mulher que cedeu aos caprichos de um homem sem escrúpulos e tornou-se também sua escrava sexual.

Mesmo com todo o mal que rondava aquele lugar, os corpos empilhados e abertos, rostos desfigurados, etiquetas nos pés, soldados entrando e saindo, trazendo mais mortos, Eva era grata ao Doutor Carl Clauberg por tê-la tirado do campo e, principalmente, ter salvado seu filho quando já estava na fila para o “banho” na câmara de gás.

A promessa que a manteve ao lado dos monstros da medicina, foi que David estaria seguro em Libensborn, a fábrica que produzia a raça ideal. Seu filho herdou a pele, os olhos e os traços do pai que era alemão, nesse caso foi fácil colocá-lo para compor o grupo de “puros e saudáveis”.

– Tenho uma tropa sedenta chegando aqui no campo, quantas estão à disposição. – Falou o comandante.

– Faremos um trato. – Disse o doutor, e continuou. – Quem contar a melhor história aqui leva as irmãs que chegaram hoje ao campo.

Imediatamente o comandante chamou o primeiro que passava.

– Rudolf! Conte aqui para o doutor seu relato de hoje de manhã. – Exigiu o comandante.

– Para mim, jogar bombas se tornou uma necessidade. Dá mesmo um arrepio na espinha, é uma sensação ótima. Tão gostoso fuzilar alguém. – Relatou o soldado.

– O que acha doutor? – Questionou o comandante.

– Merece!

Eva voltou em suas lembranças no dia em que foi pega no momento em que voltava para casa depois da expulsão no hospital. O conhecia, sentia que ele a seguia, mas nunca havia tido contato algum. Foi arrastada em meio a alguns escombros e estuprada. Alguns conhecidos chegaram minutos depois e ele ainda estava com seu corpo esparramado sobre Eva. O removeram e perceberam a faca cravada em seu peito. Mesmo tendo conseguido matar o nazista estuprador, o pior havia acontecido: Ela engravidou.

Essas últimas cenas foram as que fizeram com que seus olhos enchessem d’água, tudo ao seu redor era triste e impactante, mas precisou manter-se forte em todos os momentos. Já havia chorado muito a ponto de imaginar que as lágrimas haviam secado. Sempre há possibilidade de algo pior e o momento mostrava isso.

Seus braços foram amolecendo, as mãos mexiam-se lentamente em direção a sua barriga, sua visão ainda turva, tudo estava em preto e branco e com sons de bombas, choro de crianças e súplicas de mães que como ela foram afastadas dos filhos. Os outros sentidos se aguçaram exageradamente a fazendo sentir o cheiro dos corpos eletrocutados nas cercas, queimados no forno e a fumaça esgueirou-se no forro do pavilhão cobrindo as luminárias do teto, lembrando Eva que mais uma carga de humanos havia morrido.

O doutor Carl a salvou de Auschwitz, assim como resgatou seu filho, mas o preço para manter essas duas vidas era muito alto. Todo terror vivido por Eva tinha chegado ao limite.

– Já chega! Arraste-a de lá. – Carl ordenou ao soldado.

Antes que ele encostasse em seu corpo, Eva virou-se, mirou seus olhos direto no doutor e disse:

– Como pode fazer isso?

– Baixe esse tom de voz, vaca judia. – Disse o soldado.

O doutor Carl se pôs em meio aos dois e desferiu um soco no rosto de Eva. Ela caiu sobre outros corpos que estavam cobertos por finos lençóis.

– Com ela eu me entendo, soldado.

– Heil Hitler. – Gritou e ficou de guarda na porta enquanto eles conversavam.

Ainda caída, Eva conseguiu soltar de vez o choro que estava preso na garganta:

– Por favor, mate-me.

– Não espere compaixão de minha parte, já fiz muito por você.

– Você prometeu que meu filho ficaria bem. Como permitiu que isso acontecesse?

– Como sabe que é ele? Não o vê há muito tempo.

Ela levantou-se e caminhou lentamente em direção ao corpo e mostrando a tatuagem no braço de David, gritou:

– Nunca esqueceria o numero tatuado em seu braço, 83.016. No dia em que vocês nos separaram, ele mostrou orgulhoso. Disseram que era número de soldado.

– Ele estava bem. Mas sua gravidez mudou os planos, aquele bastardo não era puro, não posso proteger dois mestiços, mas se tiver que escolher fico com o de meu sangue. Além do mais, era fraco, não passou nos testes de força contra os outros. Sobrevivem os melhores, os demais são executados. Você bem sabe disso.

Ajoelhou-se no chão e pegou um bisturi que caiu da mesa e apontou para sua barriga.

– Não faça isso, sua imunda. Nunca deixarei vocês morrerem e depois que essa criança nascer, será enviada ao pior lugar que esse mundo possa imaginar e ela sofrerá mais que qualquer um e você assistirá tudo. A não ser que volte a ser uma boa menina.

Eva voltou a paralisar e lembrar todos os horrores que existem fora dos muros que a protegem da fome, do sofrimento nos campos, da crueldade dos soldados que deixaram a humanidade para trás e agora viviam como cães caçadores.

A sobrevivência independentemente do estado que estiver o mundo ou a vida particular de qualquer um sempre será posta em primeiro lugar. Nosso sistema de vida trabalha a todo o momento para nos manter vivos. Não era uma suicida, sabia da real razão de estar viva e assim gostaria de permanecer. Estava em seu ventre. Pensou em todas as meninas que se tivessem a sorte de sobreviver, nunca iriam poder gerar um filho. Sua revolta teria de ser guardada e sufocada na câmara de gás de seu interior. Matá-lo ali seria impossível, talvez esperasse o momento certo. Se é que haveria um momento assim.

Jogou o bisturi nos pés de Carl, levantou-se, virou em direção ao corpo de David, beijou sua face esquerda, acarinhando a direita e o cobriu com um lençol. Virou-se novamente para o doutor, esticando o braço direito no ar com a palma estendida para baixo e bradou:

– Heil Hitler, Heil Hitler, Heil Hitler.

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Eu ouvi essa história algumas centenas de vezes, foi o que sobrou em seu cérebro depois que o Alzheimer causado pelos traumas da guerra a atingiu e retirou as poucas boas memórias que existiam em seu cérebro. Foi guerreira, manteve-se viva mesmo vendo seu filho morto e jogado sobre uma mesa.

Em janeiro de 1945, o exército soviético libertou Auschwitz, o maior e mais terrível campo de extermínio dos nazistas e nós estávamos entre os resgatados.

Guardou sua raiva e transformou em amor assim que nasci. Sua presença comigo foi curta, o que restou foram as imagens dos “5 minutos”. Contava fazendo os gestos parecendo querer que eu entrasse na cena, e sempre consegui. Sofria junto dela.

Escrevi de acordo com que ela contou, nada mais. Os 5 minutos daquele dia qualquer de dezembro de 1944 estão aí para que nunca seja esquecido e principalmente nunca repetido.

Meu nome é Joseph, sou filho de Eva Rozen, uma sobrevivente do nazismo. Para quem não viveu essa história talvez seja mais um, porém, para quem esteve lá, convive ou conviveu com alguém que sobreviveu, sabe que os traumas são eternos.

Tema: Episódios históricos sombrios