Os Pesadelos do Demônio 
                              
A voz do inconsciente é sutil,
mas não descansa até ser ouvida

Sigmund Freud
 
     
O corpo magro de Saymon Trump estacara frente à janela de seu consultório no segundo andar, as mãos enterradas nos bolsos da calça e o olhar introspectivo mirando o horizonte, onde pálidas colunas de fumaça erguiam-se inocentes de delgadas chaminés.
     Inocentes.
     A palavra tremulou com brandura em sua mente, assimilando-a a uma imensa cozinha de fazenda, com mulheres sorridentes polvilhando e batendo massa de bolo sobre mesas escuras, enrolando pães ou desformando travessas de biscoitos, enquanto outras preparavam caldas e recheios achocolatados em enormes caldeirões. O clima seria descontraído, repleto de risos e gracejos, um aroma inebriante esvoaçando em nuvens quentes pelo teto alto, preenchendo-o com os mais diversos sabores.
     No entanto, por mais vívida e agradável que a ideia lhe parecesse, a realidade expressa numa breve sentença dissolveu-a por completo.
     — Só há uma forma de sair dali: através da chaminé — era o que diziam nos mercados e cafés da cidade.
     De fato.
     Saymon Trump olhava para as chaminés do campo de concentração de Treblinka e a fumaça que dançava incessante para o céu era o infeliz respiro dos crematórios usados para exterminar dissidentes, ciganos, comunista e principalmente judeus. Haveria de tudo ali, menos alegria e decerto os únicos odores seriam mesclas tétricas de desespero, doença e morte.
     Bloqueou a lembrança, apertando os olhos e dando as costas à janela. Por um instante, enquadrou toda a sobriedade do consultório, atravancado de estantes de livros e mobiliário vitoriano, por fim detendo-se na figura pálida do homem deitado no sofá de rebuscados motivos florais, o corpo dobrado quase em posição fetal.
     Aproximou-se, voltando à cadeira em que estivera sentado nas quatro últimas horas. Cruzou as pernas e se recostou, mantendo-se em silêncio. O cansaço vibrava no ardor de seus músculos, todavia era imperioso não manifestar qualquer sinal de fadiga — além do mais, deveria se mostrar honrado por clinicar alguém tão importante, afinal aquele era um dos mais respeitados membros do partido nacional-socialista.
     Arrastaram-se quase cinco minutos, até que o pálido indivíduo se manifestasse:
     — É terrível, não consigo descrever — disse aflito, as mãos espalmadas esfregando o rosto. — Sinto que morro um pouco a cada dia por conta disso.
     O doutor apenas fitou-o, os olhos inquisitivos por trás dos óculos de aros redondos dourados. Seu ilustre paciente lhe vinha visitar nos últimos três meses, alegando sofrer sonhos terríveis, sendo tais experiências noturnas tão perturbadoras que não conseguia sequer narrá-las.
     — Dizem que você se tornou o melhor especialista em toda Polônia… Tem que me curar, Saymon.
     — Como já mencionei, — enfatizou o médico, brando — não posso arriscar qualquer prognóstico sem conhecer os detalhes do que o aflige.
     — Foi aquele maldito judeu; ele me rogou praga, tenho certeza — acusou —, li isso naqueles lábios murchos desgraçados!
      Saymon puxou involuntariamente o episódio na memória, narrado em consultas iniciais. Devido à importância do cargo, seu paciente era convidado a acompanhar eventuais experiências da Ahnenerbe em “prol de avanços médicos para fins militares”. Assim, dentre outras centenas de experiências, acomodado atrás de um vidro à prova de balas, assistira à penitência de um jovem judeu exposto ao gás mostarda, o corpo do infeliz se debatendo amarrado a uma mesa de dissecação, ao compasso que a pele irrompia em imensas bolhas.
     — O composto foi ministrado na forma líquida e também gasosa — explicava Heinrich Himmler, através de alto-falantes. — Em análises anteriores, observamos que o primeiro procedimento causa rompimento dos pulmões…
     Neste instante, gritando em aflição, engasgando e soltando sangue pela boca e nariz, o jovem girou a cabeça na direção do vidro, os olhos agigantados e brancos, pronunciando uma algaravia e cuspindo a própria língua, que fez um ploft! asqueroso ao se chocar e escorrer pela superfície transparente.
     — Judeu é uma praga execrável. Só merecem a morte!  — esbravejou.
     Saymon descruzou as pernas, incólume àquele descabido antissemitismo. Embora amigos de longa data, tendo travado amizade numa escola secundária de Steyr e mais tarde compartilhado noitadas boêmias em Viena, em 1905, haviam seguido caminhos e ideais deveras opostos; entretanto, sabia o quão contraditório era tal xenofobismo, afinal seu paciente também possuía descendência judia — não obstante, devia a certo Sigismund Schlomo Freud, judeu e posteriormente aclamado pai da psicanálise, o tratamento ao qual se submetia.
     — Vamos nos ater à solução do problema — sugeriu. — Conte-me seus pesadelos…
     Assim transcorreram mais duas longas horas, envoltas em digressões e exacerbado desprezo àqueles que não partilhavam virtudes nacional-socialistas. Um conjunto insólito de hipocrisia, desrespeito à humanidade, propósitos e pensamentos distorcidos que Saymon Trump ouvia com atenção, porém descartava de seus arquivos mentais com imenso prazer.
     Estava no limiar da paciência, não sabendo mais como proceder às análises e assim findar aquelas incomodas consultas. Queria se livrar da figura torturante do “amigo”; entretanto, sabia que qualquer coisa que fizesse fora do seu agrado lhe significaria a morte. A quem tinha as mãos manchadas com o sangue de milhões, uma vida a mais nenhuma diferença faria.
     Batidas leves soaram à porta e de súbito quatro soldados da Waffen-SS entraram. Suas expressões eram graves, mas exerceram respeitosa continência e informaram que precisavam falar com o eminente paciente, levando-o. Algo muito importante havia acontecido.
     Abismado, Saymon quase gritara de satisfação.
***

     Naquela noite Saymon não voltara para casa, permanecendo na escuridão silenciosa do consultório, esparramado na cadeira e os pés sobre a mesa, a cabeça voltejando de cansaço e preocupação.
     Neurologista e psicólogo renomado, dispunha de diversas técnicas e metodologias, contudo, por mais que se esforçasse, não conseguia destrancar o cárcere mental daquele paciente e libertá-lo de suas deploráveis desventuras oníricas.
     — O que poderei eu tentar com este homem? — suspirou, esgotado.
     Levantou-se, passando a perambular cabisbaixo, parando novamente diante da janela. Lançou um olhar para baixo, vislumbrando uns poucos transeuntes se aventurar pela frialdade das ruas cobertas de neve, passando a avaliar mentalmente algo que pudesse ampará-lo. Relatos de O Homem dos Ratos, o caso de Bertha Pappenheim e os estudos de Josef Breuer entre vários outros foram reanalisados. Era um duro impasse.
     A campainha do telefone soou, interrompendo-lhe os pensamentos.
     — Perdoe-me, Anninka, perdi a noção da hora — atendeu prontamente, sabendo tratar-se de sua esposa.
     — O demônio voltou?
     — Sim.
     Silêncio, seguindo-se de um prolongado suspiro.
     — Colocarei as crianças para dormir. Quer que eu leve algo para comer? Deve estar exausto — a voz era solícita, reconfortante.
     — Não se preocupe, descerei ao Andrzej Café mais tarde, obrigado… Dê um beijo nas crianças por mim.
     Conversaram amenidades, trocando palavras de afeto por alguns minutos, até se despedir e lentamente recolocar o telefone no gancho, que emitiu o habitual clic!
     Clic!
     O som nada tinha de especial, porém, naquele momento, ampliado pelo silêncio noturno, reverberou pelo consultório, ocasionando em Saymon um efêmero tremor elétrico, lhe atiçando o raciocínio. Causalidade. Pensamentos e ideias começaram a se encaixar e um sorriso iluminou-lhe o rosto. Era comum a esposa ligar quando passava do horário, mas à ocasião permitiu-lhe uma pausa forçada à busca da solução, dando-lhe um inesperado refresh mental.
     Às vezes, estamos tão concentrados em determinado problema que a própria concentração em demasia inibe sua solução, refletiu.
     Acendeu as luzes e foi à atravancada estante. Sôfrego, folheou livros e artigos ali dispersos, refestelando-se especificamente nas contribuições cientificas de James Braid e Jean Charcot no campo da hipnose. Hipnotismo. Labutou a ideia com afinco, avaliando prós e contra, assim como o caráter do paciente em questão. Então suspirou aliviado.
     Encontrara, enfim, uma — controversa — solução.

 
***
     Transcorreram-se oito dias, até o regresso do ilustre indivíduo. E este parecia mais irritadiço que o normal, a face empalidecida sobrecarregada de olheiras profundas demonstrando que pouco dormira naquela semana. Chegara acompanhado de sua segurança pessoal composta pelos quatro soldados Waffen-SS, que sempre se mantinham de campana à porta, e Saymon não perdera tempo, acomodando-o no costumeiro sofá, uma almofada sob a cabeça e os braços relaxados ao longo do corpo.
     — Feche os olhos e respire devagar, com-pa-ssa-da-men-te — ordenara, separando a última palavra com sugestionável cadência.
     Devido à agitação, o homem relutou a principio, mas logo suas feições foram se desarmando.
     — Nesses últimos dias, fiz árduas pesquisas sobre seu caso — recomeçou Saymon, plácido como quem confessa um íntimo segredo — e não me reservo dizer que é um dos mais difíceis que já estudei, forçando-me a ir muito além do habitual para encontrar solução. — Um leve sorriso desenhou-se no rosto do indivíduo, comprovando que o médico tivera êxito ao inflamar-lhe o ego (engrandecendo a gravidade do seu problema e colocando-o acima de todos os outros). — Portanto, me sinto seguro em dar um passo adiante num terreno que jamais precisei ir e aplicar-lhe uma técnica destinada somente a problemas prodigiosos.
     Saymon aproximou-se um pouco mais, praticamente encostando-se ao ouvido do paciente.
     Hipnos é conhecido como o deus grego do sono e o seu tratamento será baseado nos fundamentos deste deus — sussurrou, embusteiro. — No reino do sono, tudo se pode… e sob essa premissa, não tenha receios de expor o que lhe vier à mente. — Levantou-se, removendo a cadeira e sentando-se na própria mesa, às costas do homem, um pouco distante e fora de seu campo de visão. — Diga o que quiser, imagine-se um deus a quem as palavras e pensamentos o senso comum é incapaz de refrear…

 
 ***
 
     “Há em todo ser humano desejos que não querem ser comunicados aos outros,
e desejos que não querem nem confessar sua existência”,
Sigmund Freud.
     
     O homem falara por trinta minutos ininterruptos, numa concatenação extenuante de Édouard Dujardin e Liev Tolstoi juntos, atropelando as palavras e sem qualquer preocupação em dar sentido aos fatos narrados. Então emudeceu, repentinamente.
     Um silêncio taciturno espraiou-se pelo consultório, tornando possível até mesmo ouvir o vozerio de transeuntes e o rádio de alguém na rua, mas ainda assim o doutor optou por não realizar demais estímulos.
     Ao contrário do que afirmara, Saymon já se utilizara de tal expediente algumas vezes e sabia que quanto menor fosse sua interferência (ou sugestão) mais “limpos” seriam os resultados, afinal o método de livre-associação, em contrapartida com a alegada hipnose, consistia em fornecer tranquilidade e segurança ao paciente para que este exteriorizasse o que lhe viesse à cabeça e gradualmente acessasse os entraves de seu subconsciente.
     Temos de ser cruéis. Temos de recuperar a consciência tranquila para sermos cruéis — retomou o paciente. — O esgar do desespero me consola a alma. É maravilhoso ver os rostos transtornados dos infelizes ao subir nos trens de carga, suas esperanças de liberdade logo sendo esmagadas em espaços ínfimos repletos de ratos belicosos, fezes, doenças e agonia.
     “As acomodações foram projetadas para transportar cinquenta, mas convêm ser sucinto e espremer duzentos deles em cada vagão, invariavelmente levando dezenas à morte por asfixia ou inanição. Uma perda insignificante, já que grande parte são crianças desnutridas ou velhos caquéticos desprovidos de virtudes braçais.
     “Alguns desses servem de distração aos nossos soldados, que lançam cães ferozes para lhes apressar o passo nas filas de seleção... ou apenas para quebrar a monotonia estafante do turno, promovendo risos enquanto dentes afiados dilaceram mãos e pernas dos desafortunados. Às vezes, pegam crianças e arremessam suas cabeças à parede para que simplesmente parem de chorar e aborrecer…”
     Saymon engolira em seco. Numa manobra astuta, induzira o paciente a pensar que estava sob hipnose, quando, na verdade, aplicava-lhe a livre-associação de Freud — num placebo, plantara-lhe na mente confiança e desobrigação de penalidade, fazendo-o falar abertamente sobre assuntos que, no mais das vezes, negaria sequer existir. Em suma, avaliava tal abordagem como a um grupo de amigos após rodadas de bebida, onde o álcool (e o ego) suscitava revelações vergonhosas, mas que à ocasião seria aceitável para fisgar a atenção dos demais.
     E certas revelações são chocantes, entrementes, cabe ao espectador apenas ouvi-las.
     — Não entendo como alguns daqueles trapos de gente conseguiram acumular tanta riqueza, que hoje nos serve a bel-prazer, mas cuja mão de obra é tão ínfima quanto sua dignidade — inflamou o homem fitando o vazio. — Aqueles mortos de fome mal conseguem suportar dezoito horas de trabalho, após se fartarem com pão e sopa pela manhã. Empregadores reclamam com frequência que são preguiçosos, que dormem no serviço ou que simplesmente morrem após poucas semanas de trabalho nas fábricas.
     “Mas garanto que fazemos o possível para evitar tais contratempos. Nossas câmaras de gás são eficientíssimas. Crianças, idosos, doentes ou qualquer pessoa com limitações físicas logo que chegam aos nossos campos são convidados à "libertação" em chuveiros especiais, sendo eliminados de forma tão sumária que sequer alardeiam a morte…
     “E com tão pouco a oferecer, somos obrigados a aproveitar seus cabelos para o enchimento de travesseiros e colchões, assim como, ao sair dos crematórios, fabricar adubo com suas cinzas. Nada é desperdiçado e mal fazem peso sob a terra, ao fim”
     Uma nova pausa, da qual Saymon usou para respirar lentamente, os dentes trincados, avaliando o total desprendimento emocional do paciente ante àquelas ações. Sabia das atrocidades praticadas pelo partido nacional-socialista, pois perdera muitos amigos e colegas para os campos de extermínio durante a invasão da Polônia, mas ouvi-las de maneira tão torpe causava-lhe profunda angústia.
     O indivíduo recomeçou e o médico reclinou a cabeça, as palavras penetrando-lhe nos ouvidos como arame farpado em brasa para criar aterradoras imagens em sua mente.
***
     Lebensunwertes Leben.
     — Judeu! Vida indigna de ser vivida — pontuou com a naturalidade de quem enuncia um novo capítulo de livro. — Não tem com o que se preocupar, afinal não há sentido em sua existência.
     “Nada mais que infectos animais que disseminam a praga das pulgas e piolhos nos alojamentos que nós, em nossa incomparável bondade, construímos para acomodá-los… as carcaças de seus corpos doentes apodrecendo e danificando as instalações tão rápido que mal temos tempo de reparar.
     “Ainda que insignificantes e desprezíveis, nos esforçamos para lhes atribuir algum valor. Nossos mais renomados médicos labutam com fervor, dissecando-lhes ainda vivos, fragmentando seus ossos para observar como se recuperam sem medicamento ou separando membros e depois os reunindo a fim de estudar a cicatrização. Por vezes, alguns têm braços e pernas expostos ao fogo ou frio excessivo, tencionando-se assim descobrir o quão de dor podem suportar.
     “E o que dizer das crianças? A tenra idade é propícia aos estudos da eugenia e acompanhamos com entusiasmo a morte assistida e controlada de gêmeos ou até mesmo a junção de seus corpos através de complexas cirurgias. Já fizemos isso… unimos duas crianças e as transformamos em siameses… um avanço inestimável às nossas pesquisas, mas seus próprios pais, infelizes ignorantes, as sufocaram durante a noite porque elas não paravam de gemer na agonia de suas fraquezas”.
     Saymon comprimiu os dentes, pesaroso, lágrimas descendo-lhe incontidas pelo rosto. Pensou na esposa e filhos e no quanto os amava. Faria tudo por eles, incondicionalmente. Estava fazendo o possível para manter-se alheio, porém, não entendia como alguém poderia praticar tamanha crueldade com seu semelhante e se vangloriar por isso.
Por outro lado, havia os pesadelos. O que seria capaz de perturbar uma mente tão diabólica quanto aquela?
     — Ah, Saymon… Ah, Saymon… — o homem começou a gemer, a voz tremulando entrecortada. — Está vindo… estou vendo… meus pesadelos, eles estão se descortinando diante de mim. Não, isso não pode ser verdade.
     Então se entregou a uma sucessão de lamentos e sôfregos pedidos de ajuda. De olhos apertados, passou a debater-se em movimentos breves e intranquilos, a cabeça remexendo-se em negativa, mãos e braços recolhidos juntos ao corpo expressando extremo nojo.
     — Me ajude… vou não suportar.
     Mas o médico nada fez; pelo contrário, aproximou-se e lhe sussurrou ao ouvido:
     — Revele-me seus pesadelos, permita que fluam por você.
     E numa espécie de transe, ele revelou, as palavras impregnadas de tamanha aversão e repulsa que tudo parecia estar acontecendo naquele exato momento, como se imagens fosse projetadas na escuridão de seus olhos firmemente fechados.
***
     O doutor chegara tarde naquela noite.
      Nevava pouco e, embora cansado, resolvera fazer o percurso do consultório até sua casa a pé, ainda que o fedor da neve se infiltrasse drasticamente em suas roupas, causando posteriores transtorno à Anninka: as chaminés dos fornos gigantes a leste estendiam-se como dedos negros saindo da terra apontando acusadores para o céu — e não cessavam um único instante, expelindo no ar tamanho volume de partículas durante a cremação que a neve deitava-se cinzenta por cada ínfimo canto da cidade, emprestando-lhe um tom lúgubre e malcheiroso.
     Entretanto, Saymon precisava daquela caminhada para digerir tudo o que seu ilustre paciente lhe dissera.
     Entrara sem fazer barulho, sendo imediatamente acolhido pela claridade amarela e o calor terno da residência pequena, mas confortável, retirando o chapéu e o capote para pendurá-los atrás da porta. Anninka e as crianças dormiam e foi à cama de cada um deles beijar-lhes a testa, repuxando-lhes as cobertas. A esposa ainda tentou se levantar, dizendo que requentaria o jantar, porém ele protestou com brandura, dizendo que passara no Andrzej Café há pouco.
     — Estarei no escritório, preciso dar cabo de alguns assuntos — comunicou, lhe renovando o beijo. — Descanse.
     O escritório ocultava-se no sótão, acessado através de uma escada retrátil sob o teto da despensa. Havia tempo que não subia ali e o cheiro adocicado de madeira pareceu adensado pela claridade anêmica que pendia de uma lâmpada presa à viga, assim como a escrivaninha e a mansarda que dava para a rua soaram-lhe esquecidos e melancólicos.
     Caminhou devagar e sentou-se à escrivaninha, retirando um punhado de folhas amareladas da gaveta e pinçando sua Parker no bolso. Algo pulsava-lhe nas reentrâncias do cérebro e pretendia escrever imediatamente, contudo, deteve-se, erguendo-se e indo até a janela. Pensativo, sondou os mirrados postes de iluminação pública, que com leques invertidos de luz baça faziam cintilar diminutos flocos pranteados pelo céu, recobrindo o alto das casas e ruas como um gélido sudário sepulcral, e então as lágrimas começaram a lhe escorrer pela face.
     Saymon aferrou os olhos, amargurado com a sinistra alusão de cadáveres pulverizados esvoaçando das chaminés. Quantos milhares — pessoas inocentes que apenas buscavam o bem viver — pereceram sob o jugo extremista nacionalista daqueles que se diziam libertadores? Notícias dos avanços alemães sobre as fronteiras inimigas eram assustadoramente constantes, inflamando-lhes o peito de vil orgulho e os motivando a progredir com brutalidade ainda maior. O que seria do mundo se fosse sobrepujado pelos ideais Nazi?
     Estremecendo, sacudiu a cabeça com violência como que para livrar-se de tão ominosa possibilidade, esfregando os olhos e voltando à escrivaninha. Ouvia a própria respiração, quando passou a escrever incessantemente, revelando em detalhes as consultas com aquele execrável paciente e suas confissões, executando apenas breves pausas para secar o suor do rosto ou enxugar as lágrimas que lhe borravam a vista. Concluído, agarrou uma última página e garatujou ao centro Os Pesadelos do Demônio, colocando-a em cima das demais como um tétrico convite.
     Feito isso, desceu para despensa e se apossou de um embrulho amarfalhado oculto na parte mais alta do armário. Averiguou o seu interior, encontrando ali a derradeira solução dos seus problemas, e depois em volta, cônscio que quanto mais rápido deixasse aquele lugar, melhor seria. Caminhou até o quarto do casal e sentou-se ao lado da cama, ficando a admirar a serenidade com que Anninka dormia. Num movimento lento, retirou uma Luger trazida no embrulho, encostou-a na têmpora da esposa e atirou. Em seguida, dirigiu-se ao quarto das crianças e fez o mesmo com os dois filhos, antecedendo o ato com um carinhoso beijo na testa. Em frangalhos, regressou e deitou-se ao lado do cadáver ainda quente de Anninka e cobriu-se até o peito, os olhos vidrados fixando o teto — a confissão daquele homenzinho desprezível pululando febril em sua mente, seu ridículo bigodinho negro, à caricatura de Chaplin, subindo e descendo enquanto despejava sua horrenda percepção de pesadelo — meteu o cano da pistola na boca e completou a "libertação" com um derradeiro disparo.
O Marceneiro
Enviado por O Marceneiro em 30/05/2021
Reeditado em 13/06/2021
Código do texto: T7267251
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