NO ESCURO DOS SEUS OLHOS - CLTS 15

A luz vai voltar papai? Foram as últimas palavras que Pierre escutou de sua filha Marrí de 5 anos.

Em frente à cama de Marrí, a observando dormir e a comparando com a foto ao lado de sua cama, onde Marta, sua esposa fazia pose com uma rosa vermelha na orelha quase coberta pelos cabelos ruivos, Pierre se lembrava das cidades que conheceu e que gostaria de ter tido a chance de mostrar a sua filha. As praças, os parques e os animais que não existiam mais. Porém, nesse momento não seria possível. Precisavam viver escondidos, estavam longe do foco de tudo, mas o risco sempre existia.

A única coisa que se ouvia no rádio velho, era sobre as novas regras de civilização e a onda de pessoas que perdiam o controle cerebral, fazendo com que o exército tivesse que exterminá-las. Os atuais governantes eram os mais ricos. Assim a sociedade tentava se reerguer, porém apenas os escolhidos sobreviviam. O dinheiro não valia mais nada no estado que o mundo se encontrava, os tesouros eram outros. Porém, antes da catástrofe os mais abastados conseguiram construir Bunkers e guardar coisas importantes, como remédios, sementes e alguns animais, principalmente vacas, ovelhas, porcos e galinhas.

A catástrofe era anunciada há muitos anos, mas a população não acreditava e os poucos que seguiram as orientações das Organização das Nações Unidas, abandonaram os luxos e começaram a estocar comidas e construir abrigos subterrâneos.

Pierre havia abandonado sua carreira de cientista em função disso, mudara para o interior com a esposa e lá tiveram sua filha. Assim que recebeu os dados das catástrofes naturais que se aproximavam, abandonou sua vida no laboratório. Tinha sido tachado de louco por ter revelado algumas pesquisas, onde garantia que as mudanças que causavam mutações nos humanos sobreviventes, viriam de uma camada do solo que havia sido contaminada por cientistas comandados pelos governantes, que também previam a destruição da terra e aproveitavam para criar armadilhas em laboratório, para aqueles que eles não desejavam que ficassem vivos: os mais pobres, reduzindo assim a população mundial.

Pierre foi ameaçado por pessoas ligadas a donos de empresas farmacêuticas, fazendo com que ele desistisse de continuar suas pesquisas. A última carta recebida foi a definitiva para que ele abandonasse completamente sua carreira e não pensasse mais em voltar a capital. A carta dizia:

"Sabemos onde você mora, e sabemos que tens consciência que sua esposa está grávida, e o bebê não resistiria um grama deste novo carvão...”

Eles não sabiam que sua filha nasceria por aqueles dias e infelizmente sua esposa faleceu devido às complicações no parto. Agora eram apenas ele e a pequena Marrí.

Após isso, Pierre deixou tudo para trás, mas não abandonou suas ideias. Por um rádio militar, mantinha contato com o Professor José, ele era o único que acreditava em suas teses. José, um renomado Biofísico, que àquela altura, havia direcionado completamente suas pesquisas para a área molecular, a fim de encontrar a cura para a infecção. Mantinha sempre a dúvida na humanidade e concordava com as ideias do amigo Pierre. Todos os dados sobre o novo carvão estavam com o professor e ele trabalhava em um meio de eliminar a força letal que o contato tinha sobre as pessoas.

Não era mais possível pisar em solo natural sem que os pés estivessem protegidos com uma grossa camada de borracha e os compostos na poeira que o vento carregava, eram tão infecciosos e letais quanto. No caso de contato, as pessoas começavam a ter sintomas de dor de cabeça, em duas horas a cegueira e em menos de um dia viravam selvagens, irreconhecíveis como humanos. Não se sabia ao certo o porquê da agressividade, mas para quem observava, era algo como se estivessem desnorteados pela dor. Em crianças era quase instantâneo. A contaminação consumia o cérebro dos afetados e depois chegava no sistema nervoso mudando completamente o instinto de sobrevivência.

Toda aquela alteração provocada artificialmente no solo, parecia ter de alguma forma, alterado a natureza como um todo. Aconteciam temporais com ventos fortes por horas e duravam dias a fio. Nestas ocasiões, aviões sobrevoavam as localidades em que havia qualquer sinal de vida, soltavam litros de um líquido fluorescente e batiam em retirada. Bilhões de pessoas já haviam morrido por causa destes químicos, que oficialmente diziam ser soluções antibióticas para ajudar na recuperação dos contaminados, mas entre os poucos que sobreviviam, sabia-se ser algo para acelerar as mortes. Enquanto isso, as indústrias farmacêuticas que resistiram as catástrofes estavam cada vez mais bilionárias por estarem em acordo com o sistema médico e prescreverem remédios que faziam pouco ou nenhuma diferença no organismo dos infectados pelo carvão.

Seis anos passaram, o caos era completo, a vida não era mais como se conhecia. Os sobreviventes usavam roupas grossas, normalmente a base de borracha, quanto mais camadas, mais seguro seria. Isso impedia que a pele entrasse em contato com qualquer resquício de terra. As máscaras com filtro tornaram-se artigo tão cobiçado, que muitas vezes se ouviam casos de morte para obtê-las. A água e a comida já estava quase acabando, o pouco em estoque daria para um mês, se bem racionado. Pierre estava no limite, sabia que era necessário tomar uma atitude e arriscar em busca de sobrevivência para si e para pequena Marrí.

Essa menina de pele clara, cabelos castanhos e olhos amendoados, já vivera mais perigos do que muitos velhos. Nascera em meio ao cenário caótico que já se desenhava. Durante seu crescimento, passou por todas as dificuldades que nenhum ser deseja a um filho, fome, frio, sede. Nunca soube o que seria brincar, sem ter medo da morte ou sem estar revestida por materiais tão rígidos que mais a faziam parecer um robô. Apenas ela e seu pai, amoroso e protetor, o contato com outros seres era perigoso.

Durante os anos que se passaram, Pierre e José mantinham contato através do velho radio, sempre trocando informações sobre possibilidades de controle da infecção. Em uma dessas chamadas, Pierre recebeu a tão esperada nova vinda do professor:

- Pierre meu amigo, consegui! Estou com a fórmula e o remédio funciona. Testei em meus cães e em minha esposa que estavam muito doentes. Ele funciona quase que instantaneamente, após injetar a primeira dose, os sintomas começam sua redução e de seis a oito dias desaparecem, e melhor, em alguns casos, ficam imunes.

- Professor! Que noticia maravilhosa. Nós precisamos divulgar, mas como faremos isso se sabidamente estamos em risco?

- Precisamos arriscar, não posso ficar parado, apenas olhando a extinção humana.

- Concordo professor. Penso que poderíamos sair à noite e aplicar nos mendigos na cidade de borracha, eles são os que mais estão sofrendo, a eles não são dados nem o remédio inútil que estão dando aos outros, e infelizmente por estarem em condições sub-humanas, são os principais afetados pelo carvão.

-Pode ser. Você precisa vir o mais breve possível!

- Acho que se sair essa noite, chego em três dias.

- Terá de desviar das fronteiras armadas.

- Devo passar por lá quando ainda for madrugada. Minha filha pode ficar com sua esposa enquanto estamos fora.

- Ok! Mas tenha cuidado.

Pierre arrumou as malas, juntou alguns mantimentos, pedaços de borracha, água e a pistola velha com apenas duas balas restantes e avisou sua filha que iriam viajar.

- Papai, para aonde vamos?

- Vamos visitar um amigo.

- Mas você disse que não poderíamos sair daqui, e que lá fora é muito perigoso.

- Minha filha! Lá fora ainda está muito perigoso. Peço que quando sairmos, você fique sempre perto de mim e nunca tire os sapatos, as luvas e sua máscara.

Marrí consentiu meneando a cabeça e logo, foi pegar seu ursinho de pelúcia.

Saíram antes da meia-noite. Pierre dirigia seu carro bem devagar e com as luzes apagadas, não havia sinal de vida, mas ele tinha medo de um possível ataque de contaminados. Eram pessoas, não eram zumbis, mas um encontro poderia ser agressivo e letal.

Ao chegar perto da fronteira, ele percebeu haver muitos homens e que seria difícil passar por ali. Tirou um binóculo da mochila e ficou analisando os militares, sabia que se o pegassem ele seria preso e provavelmente assassinado, ninguém tinha permissão de trocar de lugar de moradia, o temor maior era pela vida da filha.

Antes de clarear o dia, Pierre empurrou seu carro para trás de uns escombros, teria de esperar a noite seguinte e ter ideias que fizessem com que eles conseguissem atravessar. Porém, tudo ficou mais complicado, quando viu um cordão de pessoas indo em direção à fronteira. Já havia ouvido sobre os rebeldes, mas nunca os visto.

Abandonou o carro e levou Marrí para o meio dos prédios abandonados. Observando de longe, percebeu que algumas das pessoas que caminhavam pareciam estar cegas, ou seja, já estariam doentes.

Quando os guardas notaram o risco de contágio gritaram para que eles parassem, mas como eles seguiram andando mais depressa, os tiros começaram. As pessoas iam caindo feridas ou mortas e os que não eram atingidos corriam corajosamente em direção aos guardas da fronteira. Saltavam em cima dos homens, arrancavam-lhes as máscaras, cuspiam em seus rostos e os arrastavam para fora dos pisos de borracha, fazendo com que entrassem em contato com o solo contaminado. Alguns deles correram para a antena de transmissão e disjuntores que faziam parte do comando da fronteira, para que o contato com os superiores fosse desativado.

A meta de todos era passar as fronteiras e chegar até o lugar que era chamado de solo sagrado. O único espaço de terra que não estava contaminado. Lá, viviam apenas os poderosos. Era um lugar protegido no alto das colinas, cercado por altos muros de contenção e uma grande cápsula que filtrava todo o ar evitando qualquer risco de contaminação aérea. Embaixo, o solo fortemente blindado por painéis de borracha em camadas profundas, garantia que fosse possível haver terra pura para as plantações e animais.

No final do confronto na fronteira, todos os manifestantes e alguns guardas perderam suas vidas em batalha e os infectados sobreviventes foram sacrificados.

O resto do dia foi de contagem de corpos e tentativas de reestabelecer o contato com o comando central. Pierre apenas observava de um local próximo, mas seguro.

Ao anoitecer, Pierre e Marrí voltaram ao carro, aguardando o melhor momento para seguir viagem.

Em algum momento durante a madrugada, Marrí acordou com barulho de carros, então chamou seu pai:

- Papai... acho que eles estão indo embora.

Ele achou estranho abandonarem a fronteira, mas ficou feliz, agora conseguiriam passar. Assim que o último caminhão foi embora, Pierre ligou o carro e atravessou, agora iria ao encontro do professor.

Ao passar no que sobrou da base da fronteira, leu uma placa que dizia "Área Contaminada", e logo mais à frente havia muita fumaça, era dos corpos dos militares, entendeu o porquê do abandono de posto. Não sobrou ninguém, e os que vieram em retaguarda, temiam a infecção. Mas isso seria temporário, não podia perder tempo.

Pierre continuou sua viagem até a casa do professor José. Dali em diante a jornada passou de forma mais tranquila. Tudo parecia morto, não havia movimentação humana. Alguns poucos quilômetros, antes de chegar ao seu destino, Marrí avistou um lindo jardim com rosas, nunca tinha visto uma de verdade, apenas sabia que eram lindas como aquela nos cabelos de sua mãe. Tudo muito colorido, diferente do resto da viagem, nas partes baixas na “cidade de borracha” não haviam muitas plantas, pois o solo era coberto por tapumes que impediam que a flora vingasse.

Pararam em frente ao que teria sido uma loja de conveniência, ele desceu para ver se havia sobrado algum tipo de alimento, quando voltou, viu Mari indo em direção as flores e antes que pudesse gritar, avistou-a deslocando a máscara para sentir o perfume da linda rosa.

-Olha papai, igual a foto da mamãe.

- Não! – Gritou desesperado.

Marrí assustou-se com o grito de seu pai, deixando a bela flor correr ao vento. Pierre entrou em completo desespero, sabia que por menor que tenha sido a exposição, ela existiu e poderia ser o suficiente. Pegou a filha no colo e correu em direção ao carro, acelerou o mais que pode em direção à casa do amigo e professor, José. O antídoto era a única chance. Agora não tratava-se de ajudar a humanidade, era a salvação de sua pequena Marrí, único motivo para ainda estar vivo.

Em tempo chegou ao destino, a casa de José. Porém o que seria a solução de seus terrores, foi absurdamente cruel. Ao aproximar-se, viu a pior cena de sua breve vida, a esposa e o filho do seu amigo estavam pendurados pelos pés, pingando sangue, na entrada da porta. O cão havia sido decapitado. Algo brutal e desorientador.

Tapando os olhos da filha, ele ajoelha e grita:

-Professor! Onde você está?

Agarrou a mão de Mari e na ânsia de encontrar o amigo, invadiu a casa. Nenhum sinal de José, nenhuma pista se havia sido sequestrado ou fugido. Tudo estava destruído, telhado, janelas, apenas as paredes estavam em pé e numa delas estava escrito: "Toda a comunicação é interceptada".

Eles ouviam tudo e sabiam das intenções de José e Pierre. O sonho estava acabado, não havia mais solução. Pierre não tinha mais nada, sentou-se no chão e sem se importar com o contato, chorou. Seu mundo desabou. Não havia mais nada, nenhuma esperança. Entre um soluço e outro, ao olhar para o lado, viu Marrí com as suas pequenas mãos cobrindo os ouvidos e com um semblante de dor. Em um movimento leve, ela virou-se para o pai e questionou com a mais pura inocência:

- A luz vai voltar papai?

Esta foi a última frase que Pierre ouviu de sua filha. Era dia e o sol forte os atingia diretamente pelo vão do telhado quebrado. O pior acontecera.

Agora, a pistola velha e as duas últimas balas seriam o único antídoto.

Tema: Distopia