BRUMA DA NOITE - CLTS XVI

Meus costumes e gostos e o passar dos anos afastaram-me de meus pais e distanciaram-me da família. Estava ocupado demais em sobreviver. Lembrando agora daquele tempo, posso apenas imaginar que talvez eles devem ter passado por um inferno. Devem ter ficado extremamente preocupados. Meus hábitos pioraram tanto que fui parar na reabilitação. Por um longo tempo meu foco de vida foi a ida diária até o farmacêutico e o ônibus quinzenal até a minha unidade de acolhimento. Muitas vezes fui censurado pela família devido minha imperfeição moral; o vazio, a solidão e a dor eram a sede que ardia no meu peito. Na verdade, foi isso que me levou ao fundo do poço onde fiquei por muito tempo até sair.

Gosto da noite, apesar de ser trevas e o espaço de tempo onde acontecem coisas oníricas e horripilantes. Todas as noites eu fitava as estrelas ao longe, com temperança eu refletia sobre minha vida, tantos anos perdidos no vazio. Mas em uma das muitas noites em branco a individualidade, o que constitui a essência de uma coisa veio entibiar meu ser. Resisti com tudo que pude. Há um momento em que temos que lutar com toda força contra nós mesmos. Como dizia Platão: "Vencer a si próprio é a maior das vitórias."

Então saí a caminhar pela rua. Enquanto andava, senti uma sensação sinistra como se meus sentidos alertassem sobre algo. A via estava deserta e silenciosa, as casas adormecidas. Ouvi o mio de um gato assustado que se pôs ao través do tronco largo de uma árvore. Sem parar olhei para trás e não vi nenhum ser além de mim, parecia haver somente eu e o felino de olhos espelhados e enigmáticos; eu vi eles refletirem a pouca luz oriunda da lâmpada no poste. Pouco tempo depois veio uma bruma cobrir tudo.

Acelerei meus passos com o intuito de chegar mais rápido em minha casa. Tudo ficou turvo em minha visão, então corri e durante a corrida quase torci o tornozelo. Ao levantar e continuar em direção ao lar pensei ter visto uma figura indistinta à beira da rua, a bruma impedia meus olhos de notar o que era de fato o vulto. Mudei a rota por medo do incógnito; por receio da impressão causada pela visão da coisa entre a névoa. Minhas passadas não eram as mesmas, estavam relapsas e eu ofegante. A iluminação precária e a bruma devoradora transformaram o ambiente em estrambótico e pavoroso.

Faltavam dezenas de metros para chegar em minha residência. Quando dobrei a esquina só vi o odioso nevoeiro, também senti um forte odor de animal aquático. A Lagoa Puru estava a aproximadamente dez metros a minha frente e julguei impossível algum pescador estar recolhendo peixes durante um horário incomum para a atividade naquele local. O Mercado Central estava fechado e obviamente o pescador não poderia vender seus peixes frescos, os comerciantes gostavam de comprar osteíctes logo após a pesca.

A fumaça do nevoeiro engoliu tudo com insensível rapidez de modo que já não conseguia ver nada ao longe. Foi quando escureceu... Quer dizer, não foi bem assim. O local era pouco iluminado e o transformador do lado oposto emitiu um barulho ensurdecedor, pude notar as faíscas saltitantes. Com uma parte da rua totalmente escura fui obrigado a caminhar do mesmo lado em que a lagoa estava. Vê-la, fazia-me recordar das noites invernais em que meu pai contava histórias antes de eu adormecer de medo.

Enquanto aproximava do lago pouco extenso ouvi um grunhido, mas não era a voz dum porco ou javali. Fingi não ouvir nada e o grunhido terminou após alguns segundos. Então virei meu rosto para a Lagoa Puru e além da bruma esbranquiçada, que àquela altura devorava toda a cidade sonâmbula, pude notar alguma coisa intrigante. Dois pontos orbiculares amarelos, pisquei as pálpebras algumas vezes por achar que meus olhos estavam sendo afetados pela fumaça da turvação atmosférica. Mas eles continuaram lá, entre a bruma e sobre o Puru.

Senti uma contração involuntária dos músculos e sensação de frio — a baixa temperatura que senti não era devido a noite e sim às órbitas amarelas —, como se minhas faculdades psíquicas e intelectuais houvessem visto algo a mais e sentido todo o horror. Falei-me para ficar calmo e sair daquele local, tentando convencer-me de que nenhuma criatura intricada apareceria e com apenas um golpe me mataria. Percorri o espaço o mais rápido que pude, tentando chegar logo em meu lar. Lembrei de minha infância, quando sentia calafrios após ouvir as histórias de terror, era difícil não ter pesadelos.

De repente o grunhido voltou a repercutir. Em seguida, um barulho de algo se movendo dentro da água com ímpeto. Voltei a ser o pequeno garoto que ouvia narrativas de causar sustos. Fingi mais uma vez não ouvir absolutamente nada, o que era para mim impossível naquele momento. Tinha certeza, desde quando vi, que os glóbulos amarelados não eram normais. Antes que começasse a correr notei um conjunto de insetos adejando em torno da luz e o som de suas asas eram muito audíveis. Quando cheguei próximo ao enxame os insetos vieram em minha direção, mas não eram abelhas; pareciam baratas gigantes.

Pude perceber, antes de ser atacado, que eram comicamente horrorosos, pois assemelhavam-se a um blatídeo grande e opaco. Com antenas imensas, tinha na cabeça um aparelho bucal com um tubo flácido comum aos dípteros, no abdome carregava algo como um aguilhão. Minha mente transformara-se em pandemônio desde quando senti o primeiro calafrio, mas foi nesse momento que fiquei ainda mais atônito.

E para livrar-me dos insetos ruinosos corri desesperadamente, buscando um esconderijo no lado escuro da rua Sena. Esbarrei em um tambor de metal desses que as pessoas usam para jogar entulho, pulei para dentro e após um átimo percebi que os bichos voadores haviam pairado perto de meu esconderijo e retornado ao mesmo local onde estavam. O barulho das asas era como o som de um motor pequeno. Com muito pavor saí fétido de dentro do cilindro metálico. Corri na direção contrária, refazendo todo o percurso pela rua Sena. A única saída era retornar à casa de minha mãe.

O odor acrimonioso e excessivo da bruma estava mais ativo. Andei pelo lado escuro, temendo os globos amarelados que vi na Lagoa Puru. Os meus sentidos mais úteis eram o olfato e a audição, precisamente a audição, pois a visão era útil apenas quando direcionada para a luz do lado contrário e só era visível o entorno, o olfato fora prejudicado pelo forte cheiro adquirido pelo nevoeiro. Refiz o percurso, tentando manter a calma. Sem noção de espaço, mas com intuição aflorada deduzi estar perto do local donde vi a coisa sobre o Puru e entre a bruma.

Então, de repente o grunhido cortou o silêncio. A coisa acendeu os olhos, parecia mais próximo da superfície. Recolhi-me perto de uma das colunas dum mercadinho por alguns minutos e pareceu uma eternidade. E enquanto estava recatado a bruma diminuiu de modo que era possível notar com mais clareza alguns objetos. Acreditei que o horror estava a passar e que tudo havia sido algo antinatural fruto de minha abstinência; mas o meu horror foi maior quando pude notar a criatura. Pensei estar em um pesadelo, olhando para o vazio obscuro e limitado de uma noite sem fim.

Gigante como Golias, talvez maior, aquilo alentava como uma terrível quimera saída de algum sonho ruim em direção à beira da Lagoa Puru, ao redor da qual movia seus volumosos braços cobertos por escamas, eu vi, a bruma estava desfeita e a criatura diante de meus olhos, tinha barbatanas dorsais nos braços, costa e cabeça, barbilhões fosforescentes, uma fisionomia repulsiva e um grunhido brutal. Sua forma humanoide causou uma desordem que somada ao sentimento de viva inquietação ante o perigo real de ameaça fez-me perder a razão.

Quando retornei a noite umbrífera havia dado lugar para a manhã e o dono do mercadinho estava olhando-me com uma cara de reprovação. Depois disso pensei em relatar tudo aos entes queridos, mas temi darem pouca importância ou pior que isso acusarem-me de louco. Jamais acreditariam em minha história e julguei certo o fato parecer inacreditável para eles. Por isso, decidi escrever o que presenciei entre a bruma. Imagino que a criatura de olhos dardejantes esteja viva em alguma parte abaixo da Lagoa Puru ou talvez tenha ido para outro local.

O que de fato aconteceu? Estaria eu enlouquecendo devido o uso constante do ácido lisérgico dietilamida, a "expansão da mente", mesmo após tanto tempo de abstenção? Eis o que muitas vezes pergunto-me. Não consigo mais dormir em noites invernais, mormente as noites mais umbrosas. E quando a névoa cai sobre a cidade eu vejo por entre a janela bichos voadores em torno da luz e a coisa abismal, penso que a bruma é antinatural a ponto de colocar toda a região em outra dimensão, fazendo com que a coisa colossal apareça com seus globos oculares cintilantes.

Leandro Ferreira Braga
Enviado por Leandro Ferreira Braga em 31/07/2021
Reeditado em 31/08/2023
Código do texto: T7311119
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