SETÊNIOS - CLTS 16

O vento frio vindo da mata trazia sinais de mau agouro, os preparativos deviam ser apressados.

Mr. Solomon, como gostava de ser chamado deu uma última olhada naquele que havia sido seu lar ancestral e de onde jamais sonhou se afastar, porém a carruagem o aguardava, como companhia, apenas o cocheiro de índole duvidosa que regiamente fora recompensado por aquela arriscada empreitada.

Tudo que pôde ser transportado em segredo já estava a bordo do Asas de Gaivota. Sua família seguiria separada escoltada por seguranças e com um pouco mais de conforto. Robert, o pequeno garoto que costumava brincar com seu velho cão pelos bosques vizinhos chorava ao se separar do pai. A mãe ansiava a segurança da Irlanda, meses depois quando o perigo diminuísse tencionavam se reunir.

Quando a situação se agravou, sabia que o caos bateria nas portas do seu castelo, restava-lhe a fuga.

Os cavalos açoitados sem piedade seguiam pela alameda afastando-se do povoado, não estava distante quando um clarão iluminou o céu por entre as copas das árvores. Enfim a turba conseguiu. Aqueles ignorantes camponeses tomaram sua residência. As chamas vorazes devoravam sem pudor as conquistas de varias gerações. Como consolo, o fato de jamais ter abandonado suas crenças enchia seu peito de vaidade, tudo que fez foi em prol daqueles ingratos que de agora em diante padeceriam na miséria, esta seria a punição para tal insolência.

O medo de ser caçado o fez gastar um pouco de seu ouro comprando o silêncio da tripulação. Seria ele, apenas mais um aventureiro a desbravar o novo mundo em busca de glória.

De Glasgow até a Nova Inglaterra esperava por os pensamentos no lugar enquanto acalmava seu coração. Sentia-se injustiçado, sempre cuidou de suas terras, fez o solo prosperar nunca deixou faltar alimento a sua gente. Aquilo tudo parecia tão injusto.

O navio zarpou sorrateiro rumo à escuridão do desconhecido, somente as magoas enchiam seu coração enquanto os sinais de terra se perdiam nas ondas.

No décimo terceiro dia de vento a favor, uma escura nuvem cobriu o horizonte. O capitão ordenou que virasse a estibordo, a tempestade parecia antecipar aquela decisão. As ondas batendo forte contra o costado da embarcação assemelhavam-se a bofetadas de uma grande criatura que do submundo vinha cobrar seus pecados. Em meio à tormenta, o timoneiro relutava em manter-se firme no posto, o próprio capitão, como um colosso o rendeu nos momentos mais críticos.

Quando o vento diminuía sua fúria, Solomon ouvia o lamento dos marujos, ele mesmo duvidava da sorte, temia não mais existir um porto seguro, não entendia porque tanto infortúnio, seria ele uma vítima do acaso, justo ele que tanto fez para o progresso de sua nação.

Dia e noite se confundiam, por duas semanas lutaram contra o mal tempo, as provisões encharcadas tornaram-se impróprias ao consumo, a água potável estava salobra. Até os mais calejados sucumbiam à maresia.

Numa tarde esquecida o sol voltou a brilhar, como surgiu, o temporal se foi deixando que o calor reavivasse a alma daquelas criaturas que quase foram levadas pelo desespero. A bujarrona foi içada, e com ela a velha gaivota reaprendia a voar. Finalmente a boa sorte sorria para os sofridos marinheiros.

Na cabine do capitão discutia-se qual rumo a tomar. Estavam muito fora da rota, perdidos na imensidão do Atlântico, deviam reabastecer no porto mais próximo.

As terras brasileiras seriam a opção logica, alguns dias e aportariam solo tropical.

As vilas portuárias costumavam receber visitantes com certo receio, o capitão acompanhado por alguns de seus camaradas negociaram as provisões. A bordo, John Smith seguindo seus instintos decidiu mudar drasticamente seu destino. Mr. Solomon já não existia, o peso daquela vida foi se embora junto com o último sopro da tormenta. Agora John Smith, era apenas mais um de tantos outros Smiths de oficio mercante que rumava para o Rio de Janeiro, a futura grande capital do mundo abaixo do equador. Apostaria sua vida neste recomeço em terras distantes.

Apesar de pequena, o Rio era uma cidade progressista, grandes obras anunciavam mudanças. Boatos davam conta de que a corte portuguesa faria dali o centro do mundo além mar. Parecia ridículo, mas de fato existiam boas oportunidades que atraiam toda sorte de aventureiros.

Após ancorar, não foi difícil encontrar em terra boas acomodações, Smith logo contratou um interprete. A Inglaterra era a maior aliada de Portugal, não faltavam aqueles que desejavam o livre trânsito entre os dois países, a língua não podia ser um entrave.

O conteúdo do ventre do Asas de Gaivota foi devidamente regurgitado, grandes caixas de madeira escondiam riquezas que para uns não teriam valor, mas para Smith eram seu futuro. Carregadores contratados deram diversas viagens até que tudo estivesse estocado nas dependências da Quinta dos Almeidas, uma excelente propriedade apesar de modesta segundo os padrões da elite colonial, mas no momento servia bem a suas necessidades.

Era uma manhã de domingo, a primeira após ter se estabelecido, resolveu que assistiria a missa, sua presença na igreja ajudaria nas relações com a gente local, pediu que seu interprete o acompanhasse. Antônio de Pádua, ou Pádua como todos lhe conheciam, antes de vir para as colônias estudou artes na França e Inglaterra, não tinha muito dom para com a matéria, pensou que nos trópicos sua inspiração se libertasse. Apenas despesas tivera, esta ocupação foi um presente divino salvando-o da sarjeta que estava destinado, pois dos pais, a muito não recebia mais nada, cansaram de bancar suas extravagancias e seu vício pelo prazer.

No Campo da Lampadosa, ao lado da matriz, conheceu a maldade bem diferente da qual ele estava acostumado. Uma maldade explicita, escancarada e sem pudor, tal visão era um contraste aos símbolos cristãos e pessoas de fé que ali se encontravam.

Um grupo de homens cativos, com pés e mãos atados a argolas de metal que pareciam brotar do chão gemiam sem despertar piedade aos passantes que apenas seguiam ou debatiam futilidades.

Um velho de barba mal talhada, com facão na cintura e espingarda nas costas se aproximou dos condenados. Um dos pobres diabos que quase já não murmura por sua dor teve um balde de salmoura despejado em seu lombo, por reflexo, contorceu em profunda agonia. O sal ajudava a espantar as moscas que se reproduziam nas feridas, os outros tiveram a mesma sorte.

Não conhecia a escravidão em suas terras, mesmo com tanta riqueza jamais havia deixado os limites de suas posses, era intimamente ligado aquele solo que guardavam o segredo de seus ancestrais. Smith se deteve ante ao cruel espetáculo. Pediu que seu acompanhante se inteirasse da situação.

O dono daquelas almas sabia que um dos escravos furtara algumas bananas no pomar. Como nenhum dos seis ali presos denunciaram o infrator, todos seriam punidos até que algum comprador os arrematassem levando-os para as terras de Minas. Pior para o infeliz que por acusar a filha do seu senhor estava sofrendo em dobro.

Sua caminhada se findou, naquele dia já não assistiria a missa, voltou para casa. Ordenou a seu interprete que ficasse para acertar a compra dos infelizes, mesmo aquele que parecia agonizar. Antes que o almoço fosse servido queria aqueles homens na Quinta dos Almeidas.

No dia seguinte já quando a tarde começava a esfriar, Smith foi ter com suas aquisições. Pádua, como seu fiel cão estava junto.

Para os escravos nada seria novo, apenas outro senhor a lhes arrancar a pele.

- Sete anos de suas vidas pela liberdade. Sete anos cobrirão o que investi em vocês. Quem estiver de acordo, que fique. Aquele que não achar justo venderei a um bom patrão.

Estas palavras foram traduzidas. Nenhum dos presentes entendia o que estava acontecendo. Demorou para que compreendessem. Sete anos de trabalho pela liberdade, parecia uma brincadeira cruel, seus irmãos morreriam presos a grilhões, sete anos e se tornariam almas livres, sem correntes, sem chicotes, sem capatazes. Os sorrisos selaram o pacto. Smith conseguiu assim seus homens de confiança, os pilares para sua conquista.

Os dias seguiam sem transtornos, os homens curaram-se de suas feridas. Smith se estabelecia como mercador visionário. Adquiria mercadoria vinda do interior e as enviava para a Europa, em retribuição recebia bens da Índia e do velho continente e as revendia aos barões brasileiros. Lucro obtinha em ambas as negociações. Seus fieis serviçais não precisavam de feitor, a eles juntou-se Barnabé, escavo hábil na lavra de ouro. De tradutor, Pádua virou professor, daí se tornaram amigos.

O tempo, às vezes o fazia pensar em sua família deixada na Escócia, recordava do último aceno da esposa, via seu filho de pernas tortas tendo dificuldades para subir na carruagem, e de lá se foram em direções opostas.

Barnabé estava em constante transito entre as regiões mineradoras que a ele coube indicar a seu senhor uma boa porção de terras, bem no sertão onde o preço não fosse salgado, tinha que ser boa para cultivo, pois em sua visão o ouro agora já não era o mesmo de antes, o ouro agora era verde, o café que ganhava as plantações do disputado litoral, dobraria em pouco tempo sua fortuna.

O que todos se recusavam a crer estava acontecendo. O êxodo da corte portuguesa afetou o país. A Quinta dos Almeidas foi requisitada em nome do Rei.

Precavido, sua nova residência estava quase pronta. Nos confins das Minas Gerais, entre serras povoadas de bugres, Barnabé encontrou aquilo que seu amo sonhou.

Smith supervisionava a construção, mesmo se houvessem vizinhos, estes não eram bem vindos. Seus homens de confiança patrulhavam as cercanias. A mão de obra cativa, sabendo das qualidades do patrão, trabalhava com zelo, sonhava ter as mesmas graças que seus irmãos.

O nobre aventureiro se mostrou muito cauteloso, conhecedor de avançadas técnicas de engenharia parecia construir um forte e não uma morada. Não tardou a passar mais tempo no interior do que na corte. Pádua tornou-se o seu representante comercial no Rio. Com o intuito de proteger sua fortuna, debaixo da sede da fazenda escavou um amplo salão. No fim do corredor, ao lado de seu dormitório, uma porta sempre trancada dava acesso aos estreitos degraus que conduziam a outra porta, também trancada, atrás desta, o misterioso cofre secreto do Sr. Smith.

Do ventre do Asas de Gaivota para a Quinta dos Almeidas e de lá para a distante fazenda nas serras de Minas, enormes caixas contendo sete obeliscos de granito foram conduzidas por animais sobrepujando as intempéries e a agressividade do relevo, claro que o farto capital amenizava em muito as dificuldades. As pedras fundamentais de seu castelo do outro lado do mar, com seus dois metros de altura agora se transformariam nos pilares de sustentação de suas ambições no Brasil.

A convivência entre o senhor e seus homens havia se estreitado evoluindo quase para uma amizade, o contrato estava perto do fim, a residência recebia os últimos retoques, um banquete foi acertado para comemoração.

Os quase libertos tinham a sua frente um suntuoso jantar. Vinho, carnes e frutas não faltavam, Em torno da grande mesa, no centro do salão respeitosamente aguardavam pelo seu benfeitor.

A pesada porta de madeira rangeu forçando as dobradiças recém-colocadas, uma suave brisa fez dançar as chamas dos candeeiros que iluminavam o recinto.

Smith deu os primeiros passos rumo ao interior da sala enquanto a porta cerrava atrás de si.

Os convivas atônitos observavam seu amigo aproximando vestindo uma surrada túnica cerimonial de linho. Ele tomou seu lugar de honra na cabeceira da mesa ordenando a todos que se servissem, pois aquela seria a última refeição de suas almas cativas. Eles comeram e beberam como homens livres, entoaram cânticos a seus deuses ancestrais, bailaram desajeitados, reviveram memorias da escravidão, se abraçaram até se fartarem.

Tomados pela exaustão somada ao poder etílico do vinho, alguns jaziam jogados ao chão, nenhuma preocupação lhes afligiam.

Aqueles ainda governados pela sobriedade perceberam um Smith bem diferente. Aos poucos se despiu de sua mortalha. O homem estava nu, folhas escondiam sua vergonha, raízes e palha entrelaçadas enfeitavam seu tórax, por todo seu corpo, estranhos desenhos foram pintados com lama colorida.

Era tarde.

Num dialeto esquecido usado bem antes dos tempos cristãos uma lamuria foi entoada, a cada palavra proferida, os pilares de pedra se derretiam, o esforço para a fuga se tornou ineficiente, o cheiro de carne podre tomou conta do ambiente. Agora vítima de um torpor desconhecido, Barnabé rogava aos santos dos brancos implorava também aos deuses de sua mãe.

Dos pilares derretidos que sustentavam a cobiça do falso amigo, sete homens de barro tomavam forma, aqueles seres infernais arrastavam-se lentamente acostumando-se ao mundo no qual foram conjurados. A face distorcida de cada ser primal aos poucos forjava uma expressão medonha, suas garras em forma de navalhas tateavam o ar em busca de alguma vítima indefesa. Os espíritos da podridão atenderam o chamado do antigo mestre, entre eles reinavam um pacto profano. O ciclo da renovação da vida iria se reiniciar. Uma alma para cada um dos infernais, um ano de fartura e prosperidade para as terras do seu mestre.

Cada criatura escolheu sua oferenda, diante dos olhos amedrontados de Barnabé seus camaradas pereciam, o sangue dos inocentes fertilizaria o útero da terra.

***

Enquanto os primeiros raios de sol insinuavam-se por detrás das montanhas no horizonte, o respeitável Sr. Smith se punha diante das chamas que crepitavam levando consigo os últimos conhecedores do segredo do cofre escondido. Quem por ali passasse, apiedaria-se do pobre empreendedor que por um acidente trágico perdia toda sua mão de obra, um enorme prejuízo para alguém com ambições em se tornar um grande produtor de café.

A cada novo ciclo, Smith teria uma fonte inesgotável de oferendas, almas que ninguém sentiria falta, não eram vistos como pessoas, bem melhor que os camponeses do velho continente. Neste instante um sorriso sarcástico estampou seu rosto. Lembrou-se do filho e da esposa que foram usados como distração a sua fuga.

***

Já era passado do meio dia, quando na corte, sem o conhecimento do fazendeiro, um jovem monge manco questionava Pádua sobre um certo quadro que estampava a figura de um alegre Mr. Solomon.

tema: Invocações Malignas

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 29/08/2021
Reeditado em 03/09/2021
Código do texto: T7330707
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