AZUL ATEMPORAL - CLTS 16

Apenas quem conhece a dor, o medo e a confusão, é capaz de compreender minha situação.

Repassei minha vida inúmeras vezes em minha cabeça nos últimos anos tentando entender o que acontece ou resolver de alguma forma os absurdos que se passam comigo.

Quando falo absurdos, refiro-me às coisas que não são comuns a todos e que se relatado aos demais, sou taxado de louco. Preferi seguir um dia após o outro até definir o que deveria fazer.

Tenho 38 anos, trabalho há 18 anos no mesmo lugar, sou um ótimo funcionário, responsável e de total confiança. Algo que sempre ouvi meu patrão falar. Sou um bom filho ou até agora era. Ótimo irmão e excelente tio.

Meu pai faleceu há alguns anos. Tinha várias comorbidades e infelizmente sabíamos que em algum momento o fim seria este. Era um homem honesto que sempre passou a meus dois Irmãos e a mim bons valores. A minha mãe, bem.... Minha mãe é uma criatura encantadora, doce e dedicada à família em todos os minutos do seu dia.

Moramos todos no mesmo terreno, cada um na sua casa. Lado a lado. Pois é, lado a lado.

E agora, como explicar minhas atitudes?

Muito amor, união, cumplicidade. Realmente não existem explicações. Terei a verdade apenas comigo, por mais absurda que pareça. Espero que todos entendam o que eu mesmo não tenho absorvido, se real ou qualquer outra opção. Porém, não posso correr este risco, nem por um segundo.

Desde que me separei de minha esposa, há 6 anos, observo hoje, que foi quando ele chegou para mim, o caos. Comecei a perceber algumas situações estranhas e confusas. Estava sentindo algo que não conseguia explicar. No momento, pensei ser a mudança de vida, pois todo fim de relacionamento é conturbado e triste. De toda forma, quando você fica com alguém nunca é pensando em terminar. Julguei estar um pouco deprimido, sempre tive consciência disso. No entanto, percebi que o cenário tal qual um filme de mistério, movimentava-se de forma em que me tornaria o herói ou vilão, depende do ponto de vista. Nunca soube qual seria a próxima cena.

Um dia me disseram que os heróis sofrem muito e tem muitos conflitos internos, contudo, sua maior qualidade é o altruísmo, colocam o bem-estar dos outros acima do seu e em contraponto, o vilão é egoísta e geralmente causa sofrimento e a morte.

E agora aqui, nesse exato momento me defino como os dois, exatamente isso, sou os dois, nem mais, nem menos. Sou o herói e o vilão em sua plenitude, o bem e o mal, a paz e a guerra, o amor e o ódio.

Todos os dias minha doce mãe chama meus irmãos e eu para tomarmos café da manhã juntos antes de sair para o trabalho, é a única refeição em que estamos todos em casa. Sobre a toalha de croché branca, estão todas as delícias que uma mãe é capaz... Pão quentinho, biscoitos de mel, café passado na hora e suco de frutas. O sabor depende da época, e de algumas árvores que temos em nosso pequeno condomínio de quatro casas.

Mais do que essa comida fresquinha, tem um irmão de cada lado, sorriso largo, piadas de mau gosto, dois sobrinhos aporrinhando. Briga. Beijo na testa, ”Amo vocês, suas porcarias”, “vão estudar pirralhada” e ”bom trabalho para vocês”.

Dia a dia é essa rotina, após cada um segue o seu rumo. Da porta de madeira que dá acesso aos fundos da casa da mãe, descemos a escada de dois degraus, olhamos para as nossas casas que ficam na parte de trás, viramos à esquerda e seguimos no corredor que leva para frente em direção à rua.

Nossa rua não tem saída. Moramos ali a vida toda, todos se conhecem desde pequenos. Por sermos todos conhecidos os carros ficam em frente às casas, nunca tivemos problemas. As coisas começaram a mudar poucos meses após o divórcio. Fiquei sozinho na pequena casa branca dos fundos. É confortável, abastecida de tudo o que se precisa para viver satisfeito, eu tenho tudo aqui. Apesar disso, apareceram terrores noturnos, pesadelos bizarros onde apareciam pessoas mortas violentamente, sempre cobertas de sangue, muitas vozes gritando e em algum momento alguém dizia:

“Decida o que você vai fazer”?

Era a única frase clara que conseguia entender em meio aquele barulho.

Essa tortura se tornou frequente, os corpos, o sangue e os gritos também. Ao longo do tempo apareceram crianças. É desesperador. Os pequenos apareciam mutilados, claramente torturados, ossos quebrados e seus gritos de dor misturavam-se com as súplicas por suas vidas.

Sempre acompanhados de um “decida o que vai fazer? ”

Fiquei mais recluso, com aquilo me atormentando todos os dias, não pude evitar. Experimente viver presenciando um massacre dentro de você enquanto dorme! Foi tudo progressivo, gradual. As noites mais sofridas e durante o dia estava cansado e confuso, afinal os episódios eram muito reais, ficavam em mim.

Comecei a sair direto, sem o café em família, alegava estar atrasado. Foi durante este período que percebi um rapaz parado na esquina toda vez que eu saía de manhã e chegava à noite. Pensava: “esse moleque não faz nada? ” Imaginei ser alguém novo na vizinhança ou sabe como é né? A gente vai ficando velho, não reconhece mais as crianças e adolescentes. Algo me dizia ser a segunda opção, pois ele me parecia familiar e toda vez que dobrava com o carro e ele me olhava nos olhos e meneava a cabeça. Eu retribuía. Nunca esqueci daquela camiseta azul e a calça jeans rasgada.

A escuridão foi tomando minha existência. Minhas noites mal dormidas de terror me deixaram exausto e não sabia mais se estava dormindo ou acordado ao ouvir os gritos. Também inúmeras vezes, olhava a fresta debaixo da porta do quarto, e a luz da cozinha acesa. Mas como, se acabei de apagar? Por vezes acordei com batidas na parede, pensei: “que sonho real! ” Até que aconteceu enquanto estava acordado.

Parecia que algo zombava de mim ou queria minha atenção.

A essa altura já não sabia mais se era loucura da minha cabeça esgotada ou se estava sendo assombrado.

E novamente o ciclo se reiniciava, pulava o café, direto ao corredor, garoto estranho na ida e na volta também.

Porém, em uma manhã, quando dobrei para o corredor, vi o garoto no portão, tomei um susto. Mesmo assim, dei bom dia e perguntei se precisava de ajuda. Ele só seguiu andando. Achei estranho, mas não dei importância.

À noite quando entrei na rua com o carro, o farol foi direto nele. Estava parado em frete a minha casa. Essa foi a última vez que o vi na rua.

Hoje quando lembro disso, não sei se sou abençoado ou amaldiçoado.

O horário em que chegava era tarde, todos já estavam dormindo.

Entrava em minha casa pela porta que fica na cozinha, é bem ampla e onde também fica a minha sala. No final à direita, o quarto e em frente o banheiro, que não tem janelas, pois é divisa para o vizinho. Aqui somente ventilação artificial.

Dormir tornou-se difícil, comecei a ter dor, não só emocional, mas física. Sentia-me preso nos meus terrores, não conseguia sair. Chorava muito e ainda choro, como agora.

Em uma dessas noites, deitei cansado e apaguei. No sonho, estava em uma casa maior. Branca. Atravessei um corredor largo, várias portas, ouvia os gritos e pedidos de ajuda, comecei a procurar. A angústia era desesperadora.

Eu sabia estar sonhando, mas aquilo precisava parar. Abri uma porta, havia um banheiro grande e bonito, muitos espelhos e ninguém

.

Os sons pareciam ecoar em pontos diferentes, conforme a distância, eles vinham de todos os lados.

Três passos à frente, outra porta. Parecia ser um escritório. Uma linda estante cheia de livros acima de uma mesa em madeira escura, pela janela vi a escuridão, era noite.

Os apelos de pavor ficavam mais altos, meu coração disparou e meu estômago doía muito. Mais adiante, estava uma sala, com sofá e uma televisão, um espaço aberto que levava a outro corredor virando à esquerda; e à frente o restante da casa dava para ver ao longe.

Segui o novo corredor, os barulhos vinham dali. Fui me aproximando devagar, estava com medo, meus sonhos eram muito reais.

Com minha mão esquerda aberta, encostei a ponta dos dedos suavemente até a palma. Fui empurrando lentamente e levei a mão direita à maçaneta para ajudar. Conforme a fresta foi aumentando, aproximei o meu rosto. Meus olhos e minha boca completamente secos, o barulho do meu peito retumbava tão alto, que pensei ser por causa disso que não ouvia mais os gritos. Mas era dali que vinham antes, tinha certeza.

A porta se foi, num ranger mórbido e de súbito. A visão era em seus detalhes, indescritível.

Logo abaixo dos meus pés, no carpete cinza começava o lago vermelho de terror, que se estendia por todo o quarto. Parecia vir das pequenas camas posicionadas uma de cada lado do ambiente.

Dei o primeiro passo, precisava continuar. O chão estava pegajoso e o cheiro ardia, era um odor que nunca havia sentido.

Ao me aproximar, olhei para uma das camas. Santo Deus! Era uma linda menina de seis ou sete anos, cabelos longos e negros, seu corpinho estava de bruços e em seu tórax pareciam perfurações à faca, muitas. Estava coberta de sangue. A marca de mãozinha ensanguentada na parede, me dizia que aquele anjo estava acordado ou acordou. Que horror meu Deus!

Foi nesse momento que olhei para o lado oposto, em direção a cama que ficava mais afastada, precisei andar alguns passos. Um lençol com estampa de pôneis coloridos cobria aquilo que eu já suspeitava ser outro corpo.

Naquele dia pensei que gostaria de arrancar meus olhos para não ter que ver aquilo, porém mais tarde iria saber que tal ato não teria adiantado.

Mesmo apavorado, confuso, sabendo ser um sonho, mas com os sentimentos reais, levei minha mão e puxei o lençol. Deitada em posição fetal, havia uma mulher coberta de sangue. Eu estava parado às suas costas, dalí percebi vários cortes, pelas costas, pernas. Cortes grandes e profundos, rasgando sua roupa e sua pele. Tudo completamente ensanguentado. Caminhei em sua direção e enxerguei o corte em sua garganta, era difícil ver seu rosto, estava encharcado. Extremamente machucado.

Fui me movimentando para perto e ao tentar virá-la, percebi que ela tentava proteger em seus braços uma pequena criaturinha que não devia ter um ano de vida.

Na realidade a silhueta me dizia isso, pois naquele momento era um emaranhado de carne, completamente desfigurado e mutilado, o abdômen exposto e em seus bracinhos, alguns ossos estavam à mostra.

Não existe explicação! Nunca conseguirei reproduzir com exatidão aquela cena, mas está gravado em minha mente como uma fotografia em um quadro, cheio de detalhes. E mesmo acreditando não haver mais ninguém ali, ouvi bruscamente “o que você vai fazer?”

Voltei ao meu corpo, é assim que parecia, que estava fora dele, e impregnado de suor.

Daí em diante, um dia após o outro eles estavam lá, banhados em sangue e as batidas nas paredes também continuaram.

Fiquei perturbado, mas nunca falei nada à minha mãe ou irmãos, mesmo quando questionavam minha ausência. Não queria assustá-los, ou pior, que debochassem de minha loucura.

Demorou um tempo para entender, até que há dois meses, enquanto estava em pé no lago vermelho entre as duas pequenas camas, ouvi novamente a pergunta:

“O que você vai fazer?”

Vinha de trás, mais precisamente da porta. Me virei assustado e vi o garoto da esquina com aqueles grandes olhos azuis, tão azuis quanto o oceano mais profundo e sua própria camiseta.

O que é isso? Pensei.

Em silêncio fiquei olhando, tentando entender, se a minha imaginação estava colocando um rosto conhecido nos meus sonhos.

E ele disse:

— Não! Você não me conhece, mas eu te conheço bem... Pai.

— Como assim, pai? Eu não tenho filhos.

— Ainda não, mas terá!

E dentro daquela insanidade, real ou ilusória, tentou explicar:

— Sou Lúcio. Você me dará esse nome em homenagem ao seu pai. Você ainda não conhece minha mãe, mas logo conhecerá. O maior sonho dela é ser mãe, e você não conseguirá dizer não a ela. Com o tempo, você esquecerá ou duvidará de tudo, e não medirá esforços para realizar o desejo do seu amor. Em seguida terão a mim. Infelizmente eu nascerei com uma neuropatia degenerativa, resultado da junção de seus cromossomos e causará agressividade e falta de emoção. Essas duas crianças que você vê, são meus filhos e ela é minha esposa. Eu os matei. Você e a vovó estarão presentes quando isso acontecer e também quando eu for morto pela polícia. Encontram-se várias existências no universo e coisas que você nem ousa imaginar, em todas elas eu tentei e o fim foi o mesmo. Por isso estou aqui, você precisa acreditar em mim, eu não posso nascer!

De lá para cá, pensei muito, em como eu amo minha família, se aquilo era verdade ou não. O fato é que os sonhos pararam e o tempo foi passando. Até que no trabalho, uma colega nova chegou. Ela é linda, gentil e mostra um interesse especial por mim.

Eu a convidei para jantar e ao me despedir, aproximei meu corpo, toquei seu rosto, fixei o olhar para beijá-la e gelei. Havia visto aqueles olhos azuis antes. Tentei digerir. Era coincidência, mas os olhos eram iguais. Pensei comigo, “basta não ter filhos! “Mas com o passar dos dias, entendi que não ter filhos com ela, realmente não seria uma possibilidade. Ela queria uma família.

Então chegou a hora de realmente decidir.

E resolvi, não posso correr risco algum, que aquilo tudo que eu sonhei, fui avisado ou vivenciei, torne-se realidade.

Hoje tomei café com a família, fui ao banco transferir um dinheiro, comprei roupas novas e cortei o cabelo.

Já estão todos dormindo e não quero acordá-los. Estou sentado no banheiro. Aqui é mais silencioso não tem janelas e assim, bem encostado na têmpora, não é necessário silenciador.