A TRAVESSIA - CLTS 16

Eu sei que me viam, eu também os via. Estavam do outro lado, não atravessei, talvez seja a razão de eu ainda estar aqui para contar essa história.

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Mamãe acabara de colocar o lanche em minha mochila, ainda era muito cedo para sair para a escola. O ônibus me pega na porta de casa. Sou o último a subir no transporte.

— Vou ver os porcos. — Falei e saí correndo.

— Não se atrase para o ônibus. — Mamãe gritou.

Passei direto pelo chiqueiro, eu quero mesmo é investigar meus vizinhos. No caminho passei pela tia Marta. Ela ajuda minha mãe a preparar os doces que elas vendem na feira de sábado.

Tia Marta me cumprimentou e eu apenas acenei com a cabeça. Estava com pressa, porém precisei voltar, ela diria a mamãe que não estava com os porcos. Cheguei no momento em que mamãe perguntava:

— Olá Marta. Viu o Pedro por aí?

Antes que ela respondesse eu a interrompi.

— Estou aqui mamãe, precisei correr atrás da porquinha que fugiu.

Titia Marta sabia que não era verdade, mas não disse nada.

Nossos vizinhos são estranhos. Em minha casa nunca falavam sobre isso eu também nunca perguntei, achava mais emocionante investigar sozinho.

Nossa casa fica muito distante da cidade. Não tenho muito o que fazer. Somos apenas mamãe, eu e os porcos.

— Vá lavar as mãos que o ônibus está chegando.

— Sim, senhora! — Falei imitando um soldado com a mão na testa.

Entrei no ônibus. Me chamam de menino dos porcos, nunca me importei, sempre gostei dos meus animais. Sentei ao lado de Marcos, estudamos na mesma sala desde a primeira série. Meu melhor amigo.

Sempre falei para ele sobre a família que vive depois do lago, ele não acreditava, seus pais diziam que não havia ninguém lá.

Eu o convidei para ir comigo, queria que visse com seus próprios olhos. Eles são estranhos. Nunca os vi nos eventos da cidade. Parece que não querem ser vistos.

Marcos não é tão corajoso quanto eu, mas confirmou que iria no próximo domingo para minha casa. Dormiria lá e segunda iríamos juntos para a escola.

Aquela semana passou lentamente com os dias sempre iguais. Acordava, bebia café, alimentava os porcos, andava até o rio, me escondia atrás da árvore ao lado da ponte, investigava os vizinhos e voltava para casa. Lavo as mãos e espero o ônibus para a escola. Claro que vou sempre até o rio, mas tenho pouco tempo para ficar lá. Nessa semana não vi movimento algum.

Descobri um caminho que tia Marta não me vê. Assim posso ficar mais tempo observando os estranhos.

A cada dia que passa ficava mais ansioso para mostrar a família ao Marcos. Ele apenas ria quando falava. Dizia que eu via fantasmas. Sabia que se surpreenderia.

O tão esperado domingo chegou. Marcos também. Sua mãe o trouxe, conversou com minha mãe, fez várias recomendações sobre o que ele devia ou não fazer. Minha mãe disse que cuidaria de nós e que Marcos estaria seguro.

— Não se preocupe, aqui é muito tranquilo. Disse minha mãe.

A mãe de Marcos o abraçou fortemente. Ele muito envergonhado olhou para mim e piscou.

Não entendi o que ele quis dizer.

Ela entrou no carro e gritou:

— Não esqueça, Marcos. Nada de investigações no Rio.

Eu balancei a cabeça. Ele não devia ter contado nossos planos.

— Que história é essa de rio? — Perguntou minha mãe.

— Nada não. — Respondi.

Chamei meu amigo para ele guardar suas coisas em meu quarto. O levei para ver meus animais. Enquanto eu os mostrava, Marcos questionava:

— Como faremos para investigar os misteriosos vizinhos?

— Fica calmo! Quando a tia Marta chegar, elas ficarão presas na cozinha fazendo os doces para a feira. — Respondi.

Continuamos brincando em volta da casa. Marcos estava muito ansioso. Minha tia chegou. Ele apenas me olhou e sorriu, como se dissesse: “Chegou a hora”.

— Mamãe! A titia chegou. — Gritei para ela entrar logo. Não tínhamos tempo a perder.

— Não andem longe da casa. — Ela respondeu.

Tínhamos poucas horas até escurecer, fomos imediatamente. A casa velha não aparentava condições de alguém morar lá, foi exatamente a frase que Marcos falou. Eu tinha certeza de que estava certo.

Nos posicionamos atrás da mesma árvore perto da pequena ponte que atravessava a parte mais estreita do rio. Esperamos.

Marcos fincava o chão com um pedaço de graveto. Mantinha-se incrédulo.

Um menino aparentando ter a nossa idade saiu correndo pela porta dos fundos da casa, eu nunca o havia visto. Sempre vi um homem, uma mulher e uma menina.

Marcos saiu correndo em direção a ele.

— Não vá Marcos. — Gritei.

— Vamos convidá-lo para brincar também. — Respondeu.

Nesse momento cheguei a conclusão que eu era o covarde. Não consegui mexer as pernas. Fiquei a observar.

O menino que saiu da casa entrou na floresta que havia nos fundos da casa. Marcos o chamou, quando ele o viu começou a gritar, dizendo que não voltaria para lá.

O homem que eu já conhecia, saiu de dentro da casa, correu velozmente a ponto de parecer levitar. Pegou o menino e quando virou-se percebeu Marcos chegando. Agarrou meu amigo pela camiseta e o levou para dentro da casa.

Ainda paralisado e sem saber o que fazer, apenas ouvia os gritos de socorro. Parecia ter mais crianças lá dentro. Meus músculos foram amolecendo, perdi os sentidos e acredito que desmaiei.

Acordei desnorteado. Voltei para casa. Minha tia já estava lá.

— Vá lavar as mãos. O ônibus já vai chegar. — Mamãe falava normalmente.

Acho que tive um pesadelo intenso, fui até o rio e cochilei, talvez tenha sido isso. Estava exausto, mas aliviado, foi muito real. Os gritos de Marcos ainda ecoavam em minha cabeça.

O ônibus chegou. Subi. Os mesmos meninos engraçadinhos me chamaram de menino dos porcos.

Fui até a última poltrona. Marcos não estava, não questionei a ninguém sua ausência. Era meu único amigo. Talvez tivesse sido levado a escola por sua mãe.

Ele não apareceu.

Na manhã seguinte acordei mais cedo do que o normal e corri até o rio. Estavam todos lá. Todos. O homem a mulher, a menina, o menino e Marcos. Ele me olhou com olhar de felicidade. Todos riam ali. Mas era um riso esquisito.

Decidi atravessar a ponte e ir ao encontro deles, mas no meio do caminho, Marcos paralisou. Todos eles se perfilaram. O homem sorriu olhando para mim. Dei mais um passo para frente e todos se uniram formando um círculo de mãos dadas. O homem que estava de costas virou-se abruptamente, balançando a cabeça negativamente, não entendi porque não era bem-vindo ali. Eles entraram na casa e nunca mais os vi. Continuei indo diariamente lá. O Marcos nunca mais apareceu na escola.

Eu não tinha mais amigo. Ele parecia ter sumido da história e ninguém o procurava. Eu passei a ser tachado de louco dos porcos. A todos que eu questionava sobre o Marcos diziam que nunca houve ninguém com esse nome.

Eu tinha saudade do Marcos. Precisava vê-lo, porém eles não saiam mais de dentro de casa.

Já havia desistido de encontrar meu amigo quando Júlio, um menino que se mudou recentemente para minha cidade e escola, puxou conversa comigo. Ficamos amigos. Melhores amigos. Logo contei a história de meus vizinhos. Obviamente que ele gargalhou e disse que não tinha medo dessas coisas.

O convidei para passar o domingo em minha casa. Ele aceitou, mas precisava falar com sua mãe.

Júlio chegou perto do meio-dia de domingo em minha casa. Sua mãe não desceu do carro. Ele desceu e a abanou de longe. Minha mãe gostava de conhecer as mães de meus amigos, nesse caso não teve oportunidade.

Almoçamos e fomos imediatamente para o rio. Foi igual ao dia em que levaram o Marcos. Esperamos muito até percebermos que um menino saiu correndo de dentro da casa pela porta dos fundos. A cena era igual, inclusive com o Júlio correndo na direção do menino e atravessando a ponte. O homem saiu rapidamente, capturou os dois com um abraço só. Marcos saiu pela frente. Correu em minha direção. A mulher e a menina correram atrás dele, porém, no momento em que ele colocou o pé na ponte elas pararam perfiladas. Marcos me abraçou e chorou.

Tremia muito. Eu perguntei o que acontecia lá, ele não soube dizer. Apenas disse viver numa espécie de transe, como se estivesse drogado e que o casal e a menina sugavam suas energias.

— Como conseguiu fugir? — Questionei.

— Quando alguém tenta escapar, o casal e a menina direcionam seus olhares para o fugitivo. Vários tentaram e a reação era sempre a mesma. — Contou.

— Você foi muito corajoso. — Completei.

Ele tentou sorrir. Não conseguiu. Voltamos para casa.

— Aí estão vocês. — Minha mãe falava sorridente. — Quero convidá-los para irmos ao parque que chegou hoje na feira da cidade.

Marcos estava muito estranho, mas mesmo assim concordou. Disse que ficaria em sua casa depois do passeio.

Minha mãe questionou se haviamos tido algum problema, mas Marcos apenas disse preferir dormir em casa.

Preferimos não tocar no assunto.

Aproveitei os brinquedos do parque. Meu amigo não estava muito feliz, era perceptível que ainda se recuperava do trauma.

Ficamos até a hora de o parque fechar. Passamos na casa de Marcos para deixá-lo. Sua mãe saiu para agradecer.

Ele caminhou lentamente e me abanou. Eu fiz o mesmo.

— Nos vemos amanhã.

— Sim. — Ele respondeu.

Na manhã seguinte fui até o rio. Estavam todos lá. O casal, a Menina e muitos meninos. Demorei, mas avistei Júlio. Todos os rituais foram se repetindo. Ficaram perfilados, círculo de mãos dadas e o homem virando e olhando em minha direção.

Saí correndo. Chegando em casa fui direto ao banheiro lavar as mãos, quando minha mãe deu a ordem eu já estava pronto em frente a porta esperando o ônibus.

Subi no transporte e sentei ao lado do menino que me chamava de louco dos porcos. Contei a história da casa, ele não acreditou. O convidei para passar o domingo em minha casa que lhe mostraria.

No dia marcado meu novo “amigo" estava lá, pronto para fazer a visita a meus vizinhos estranhos. Ele era realmente corajoso. Não aguardou ninguém sair. Atravessou a ponte e imediatamente o casal e a menina saíram em sua direção. Ele correu para o meio da floresta. Eles o seguiram.

Cinco meninos saíram pela porta da frente e vieram em minha direção. A menina notou a fuga e tentou capturá-los, no entanto, todos conseguiram chegar até a ponte. Meu novo amigo foi capturado, Júlio e outros quatro salvaram-se.

Não precisarei de novos amigos, nunca mais voltarei ao rio e também, ninguém mais me chama de louco dos porcos.

Lucas Baltra
Enviado por Lucas Baltra em 29/08/2021
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