A PICADA DO ESCORPIÃO

Gotículas de suor porejam em sua testa, seu corpo está tenso e rígido, um terror quase incomensurável impede que ela esboce qualquer movimento um pouco mais brusco. É preferível ficar o mais imóvel possível. O lençol rasgado que cobre sua velha cama está empapado de suor. O quarto inteiro cheira a medo.

Todas as noites é a mesma coisa. Sempre o pavor de que venham buscá-la enquanto está dormindo. Muitas vezes sonhos recorrentes em que mãos fortes e brutais a amordaçam invadem seu sono. Quantas vezes ela passou a maior parte do dia com a horrível sensação de que iriam jogá-la em um buraco sem fundo?

Nem sempre foi assim. Ela tem vagas lembranças de sua bisavó contando histórias de como as coisas eram diferentes antigamente... Muito antigamente. Em seu quarto, escondida em uma velha caixa de papelão, existem ainda fotografias antigas de um mundo que ela não conheceu e que não existe mais.

Lá em meio a tantas velharias estava a sua fotografia favorita, uma que mostrava uma moça oferecendo uma flor para um soldado. Sua bisavó dizia que aquela fotografia era do tempo em que as pessoas acreditavam que poderiam mudar o mundo.

Aos seus olhos de criança ela se perguntava como se poderia mudar o mundo oferecendo uma flor para alguém?

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Inúmeras vezes criou todo tipo de artifício mental dizendo para si mesma que era igual às outras pessoas. Nunca funcionou. Quando era ainda uma menina, gostava de observar o corpo das outras amigas, sentia um prazer intenso em acompanhar as curvas dos pequenos seios que se formavam e tinha que fazer um esforço enorme para desviar o olhar.

Mesmo sem entender muito bem o que aquilo significava, sabia que era algo errado, afinal mulheres nasceram para gostar de homens e homens nasceram para gostar de mulheres e qualquer coisa, além disso, era pecado, uma doença que deveria ser tratada e extirpada.

Então ela lutou. Ah, como ela lutou contra aquele sentimento sujo e pecaminoso! Ela até se deitou com garotos quando o momento chegou, mas aquilo que todos chamavam de fazer amor para ela não passava de algo sujo, agressivo, humilhante.

Ela fingia gostar, não podia deixar que suspeitassem que houvesse algo de diferente, mas todas as vezes que acontecia, ela se sentia morta por dentro. Nunca havia sentido o menor prazer durante uma relação até aquela noite em que ela e Anna haviam ficado estudando juntas até tarde, beberam algumas cervejas e, sem saber ao certo como isso aconteceu, acabaram se beijando.

Depois, tudo aconteceu tão naturalmente e foi tão bom que ela enfim compreendeu que a verdade é que sempre gostou de mulheres. Aquele foi o melhor e o pior dia de sua vida. Pela primeira vez havia sentido o prazer de tocar e ser tocada ao mesmo tempo em que descobrira que nunca estaria em segurança, pois aquele pecado que pulsava dentro dela tornava-a uma invertida e para a Igreja da Conservação Divina isso era uma coisa abominável e passível de punição com a morte.

Em todos os seus vinte e cinco anos a pessoa mais importante em sua vida havia sido a sua bisavó Matilde. Uma pena ter convivido com ela somente até os nove anos de idade. “Bisa”, como ela chamava sua bisavó, sempre lhe contava histórias de fadas, gnomos, de aventuras, de bichos, das coisas do mundo de antes.

Quando seu desejo começou a despertar para o corpo das outras meninas sempre lhe vinha à mente uma das histórias de sua bisavó, uma que falava de um escorpião que queria atravessar um rio, mas que por não saber nadar terminava pedindo para uma tartaruga ajudá-lo a chegar ao outro lado. Recordava que a tartaruga com medo do escorpião lhe picar durante a travessia dizia que não iria ajudá-lo, ao que este retrucava que, se assim o fizesse, ele morreria também já que não sabia nadar. Convencida pelo argumento do escorpião a tartaruga decidiu ajudá-lo. Eis que no meio do rio o escorpião pica a tartaruga e ela sentindo a morte chegar perguntava-lhe por que havia feito aquilo se agora ele também morreria. O escorpião responde-lhe que fez aquilo porque não poderia fugir da sua natureza de escorpião.

O fim dessa história sempre lhe causou uma sensação de estranheza e ficava pedindo para sua bisa lhe dizer por que tinha que ser daquele jeito. Era-lhe muito difícil entender por que o escorpião agira daquela maneira.

Hoje finalmente entende o fim daquela história. Hoje ela se sente como o escorpião da fábula: não há como fugir da sua natureza.

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Todos os dias Marta têm que conviver com o medo de ser descoberta. Ela trabalha em uma grande repartição pública, cumpre plenamente suas funções, ri e conversa com todos, mas sempre imaginando se alguém estará desconfiando de algo.

Às vezes Marta olha para a mesa a frente da sua e lembra-se de seu antigo colega Roberto. Na maioria das vezes evita sequer lembrar o que houve, mas nem sempre consegue. Sem que ninguém soubesse dizer de onde partiu começaram as conversas ao pé do ouvido e os comentários de corredor sobre seu colega. Ela mesma, com medo que passassem a olhá-la diferente, participava desses comentários. Certo dia, ele não veio ao trabalho. Pouco tempo depois chegou o informe dizendo que este havia sido enviado para um centro de reeducação. Nunca mais Roberto foi visto e todos passaram a evitar toda e qualquer citação ao seu nome.

Os dias passaram, os meses transformaram-se em um ano e o acontecido com Roberto já era uma página virada para a maioria das pessoas quando, ao manusear vários documentos que precisavam ser protocolados e despachados, Marta encontrou algo que fez seu sangue gelar nas veias. Em meio à papelada estava um pequeno papel com uma única palavra escrita em vermelho: INVERTIDA.

Alguém sabia que ela era uma invertida! Olhou discretamente ao redor, mas tudo o que via eram pessoas mergulhadas em seus afazeres. Quem escreveu aquilo? Como souberam? Ela sempre foi muito cuidadosa, sempre tomara todas as precauções possíveis, namorara vários rapazes, fazia questão de ser flagrada olhando para os homens, fazia pequenos jogos de sedução com eles. Como alguém soubera?

Os dias transcorriam e o medo parecia ter se transformado em uma segunda pele. Marta dormia com medo e acordava com medo.

Mais um dia no trabalho convivendo com pessoas de todos os tipos e uma delas sabe que ela é uma invertida. Isso a apavora fazendo com que um frio de horror lhe atravesse a espinha dorsal só de se imaginar sendo flagrada e levada pelas autoridades eclesiásticas para um lugar de onde nunca mais voltaria.

O único momento onde sua natureza de escorpião podia se manifestar era quando estava deitada na penumbra do seu quarto. Mas agora até isso está comprometido porque horríveis pesadelos lhe acometem e muitas vezes se pega lutando para não dormir.

Sente que agora seus passos são mais lentos quando vai aproximando-se do prédio da repartição, uma inútil tentativa de ganhar uns poucos minutos antes de mergulhar na tensão total. Ela sabe que isso é só um recurso idiota e que tem que enfrentar alguém que é invisível e que pode estar em qualquer canto ou lugar, alguém que pode levá-la à morte.

A leitura da revista Conservação, de distribuição gratuita, é obrigatória para todos os funcionários. Uma folheada nela e lá estava, entre suas páginas, um pequeno papel com uma frase escrita na cor lilás: EU SEI QUE VOCÊ GOSTA DE MENINAS.

Agora o horror instalara-se de vez. Não haveria mais escapatória. Já se imaginava sumindo do seu trabalho e os colegas fazendo mil comentários sarcásticos, piadinhas ou tecendo frases do tipo “eu sempre soube que ela era uma invertida” ou então “ela nunca me enganou com aquele jeitinho dela”.

Trabalhar oito horas por dia naquela repartição passou ser a antessala do inferno. Tentava não olhar para os lados, rir e conversar tornou-se um perpétuo martírio, pois alguém poderia estar à espreita interpretando e julgando cada gesto seu. Não havia um lugar onde pudesse se esconder, restava seguir em frente e aparentar a maior tranquilidade possível.

Passou a evitar olhar constantemente para o relógio, pois alguém poderia achar que tal gesto significava um desejo de escapar de olhares inquisitivos. Pensou em arranjar um namoradinho qualquer que despertasse fofocas dentro da repartição. Uma miríade de estratégias passava pela sua cabeça, mas o medo constante continuava a lhe cortar a alma.

Os dias passavam e Marta seguia em sua discreta, intima e selvagem luta para manter-se longe de olhares furtivos. Nada disso adiantou. Outro pequeno papel surgiu em meio as suas coisas.

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Não havia onde buscar refúgio. O que fazer? Não existia ninguém com quem dividir sua angústia. Como ela gostaria de ter o poder de parar o mundo, descer e ir para um lugar melhor, mas sabe que isso é pura ilusão, pois não tem para onde ir. Com os pensamentos turvos e uma estranha dormência em sua boca Marta faz aquilo que todos foram ensinados a fazer desde a infância: buscou acalento em sua bíblia.

Manuseando com sofreguidão o pequeno livro, procurou alguma coisa, uma parábola qualquer que lhe aliviasse o espírito. Qual não foi a sua surpresa quando notou que havia um pequeno pedaço de papel na página em que parara a sua ultima leitura. Cuidadosamente olhou ao redor antes de ler o que estava escrito. Sua respiração ficou suspensa quando leu a frase EU TAMBÉM SOU ASSIM escrita em tinta azul.

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"Eu também sou assim", era o que estava escrito em letras azuis. Marta ficou muito surpresa com o conteúdo do pequeno bilhete. Não esperava aquilo, mas também não abaixaria a guarda, pois tudo poderia ser somente um artificio para que ela relaxasse e terminasse se revelando. Continuaria em estado de alerta e com vigilância constante sobre toda e qualquer atitude suspeita que pudesse lhe denunciar.

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As filas para o almoço andavam lentamente e o barulho das muitas conversas cansava-lhe a paciência. Não estava com fome, mas sabia que se obrigaria a comer e ainda faria uma piadinha qualquer sobre a qualidade da comida apenas para despistar qualquer olhar mais intrusivo.

Estava com o pensamento nisso quando percebeu na fila ao lado uma moça vestindo uma blusa com listras vermelhas, lilás e azuis. Não era uma moça especialmente bonita, possuía um rosto comum e cabelos que já tinham visto dias melhores. Marta já a conhecia de vista, mas algo nela chamou-lhe a atenção. O que era? Havia algo ali. Discretamente olhava para ela. Alguma coisa na moça despertara seus sentidos. Por mais que espremesse seu cérebro não conseguiu atinar com o que era.

Mais uma noite em sua velha cama. O sono, para variar, não chegava. Marta tem medo de dormir e sonhar que a levam embora. Tentando expulsar os pensamentos ruins de sua cabeça finalmente consegue descobrir o que havia chamado sua atenção para a moça na fila ao lado: a blusa que ela vestia tinha as mesmas cores em que os bilhetes foram escritos...

Seria algum tipo de código? A moça da blusa listrada era a pessoa que lhe deixara secretamente os bilhetes? Perguntas e mais perguntas...

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O dia seguinte, no portão de entrada para a grande repartição, ocorreu um rápido e discreto encontro de olhares entre ambas. O coração de Marta bateu de maneira descompassada, foi necessário um esforço hercúleo para demonstrar tranquilidade, pois percebeu alguma coisa de cumplicidade no olhar da outra.

Nessa noite Marta dormiu e não teve pesadelos, ao contrário, sonhou que passeava em uma praça amplamente arborizada com uma mulher. Não conseguia ver-lhe o rosto, mas a sensação de prazer, leveza e felicidade era de tal magnitude que, mesmo um bom tempo depois de estar desperta, ainda sentia em seu corpo a vivência onírica.

Quem sabe em algum momento não passaria a sonhar com um mundo em que o amor entre iguais não fosse visto como algo errado?

Com a mente atravessada por esses pensamentos Marta levantou-se para enfrentar mais um dia de trabalho.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 30/08/2021
Reeditado em 31/08/2021
Código do texto: T7332040
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