Voltando para casa

Na vida tudo é uma sucessão de acontecimentos sobrenaturais aleatórios, desde acordar instantaneamente evitando um futuro acidente de carro que aconteceria e foi evitado por uma fração de segundos, até o momento de exato de sentar num banco no exato momento de conhecer a pessoa que estará contigo pelo resto da vida, existir é estar à mercê daquilo que esta independente da fé, mas onde fica a barreira do que se pode ver ou sentir, e se alguém pode presenciar algum desses eventos mesmo que os mais simples, ou quem sabe os de maiores interferências, será que alguém acreditaria?

Quando Clara saiu do serviço na avenida paulista às 22h10min ela tinha a total certeza de tudo que encontraria até o momento do banho, o frio pós-água quente e a comida congelada, ela teria um ônibus vazio, uma caminhada escura e se dessa sorte um ou dois bêbados pelo caminho, quem sabe um gato a assustaria como da última vez, um maldito gato pularia na sua frente quem sabe querendo o que, mas nesse momento a única coisa que ela realmente queria era poder chegar a casa e encarar logo aquela bela cama desarrumada.

A primeira pergunta talvez seja “se ela sabe que vai chegar tarde então por que sai essa hora?” e por acaso alguém com salario baixo escolhe horário no serviço? Clara estudou quatro anos para ser jornalista e demorou mais dois para se arrepender, sua veia curiosa, seu senso critico e o modo analítico talvez te dessas apenas qualidades de boa fofoqueira ou quem sabe num folhetim de bairro, mas as contas continuavam e entre o orgulho latente de um diploma USP e um boleto Casas Bahia o jeito foi aproveitar o conhecimento jurídico e aceitar o emprego como auxiliar de um advogado civil que toda noite teimava em convida-la para sair, apesar bom perfume e parecer ser mais jovem do que realmente era, Clara tinha algumas coisas das quais jamais abriria mão, nunca sair com homens casados, nem se envolver com pessoas do trabalho e no caso seu chefe preenchia com louvor os dois casos.

O ônibus foi tranquilo, apesar da demora e da já esperada solidão, ela até que se sentiu confortável tendo um casal a dois lances de cadeiras a sua frente, uma mulher de trinta e poucos anos apesar de estar bem acima do peso como cobradora e um rapaz no celular que parecia falar com a namorada, então contrariando todas as estatísticas criadas por ela mesma, aquilo era sim uma viagem tranquila.

O casal que estava a dois lances de cadeira dela se levantou no penúltimo ponto e passaram ao lado enquanto o ônibus ia diminuindo a velocidade, só a restaria e o rapaz que neste momento já não usava mais o celular para conversar, ao menos não com ligação, apesar de estar mexendo em alguma coisa, naquele momento o misto era claro de preocupação e medo, mas o que poderia acontecer além dela aparecer no Datena, ou virar matéria em qualquer outro jornal sensacionalista? Talvez vestisse até camisetas sobre ela quem sabe o que as pessoas fazem hoje em dia para ganhar dinheiro com a tragédia alheia, o casal que aparentava em torno da casa dos vinte anos e namorando há pouco tempo “eles não soltavam as mãos nem para levantar da cadeira” desceu e seguiu seu rumo enquanto Clara apenas olhou o celular que já marcava 11h20min, mais 25 min no máximo e já estaria em casa, numa cama macia, um cobertor quente e pensando que porcaria de serviço de faz ficar até mais tarde só porque você não quer dar a boceta para a porra do chefe tarado.

Descer no ponto final tem suas peculiaridades, primeiro você não precisa puxar campainha, segundo é o mais perto possível que vai estar de casa e terceiro quem esta no ônibus contigo normalmente é conhecido o que nesse momento não era o caso, Clara ficou e esperou que o rapaz descesse primeiro, mas entretido parecia que nem havia percebido que a condução estava parada, levou quase que eternos 2 minutos até que olhasse em volta e percebesse que além dele só uma bonita morena estava com ele no ônibus, ele levantou, pegou sua mochila e desceu com certa velocidade, no mesmo momento em que ela também começou a se locomover e percebeu que o rapaz ia à direção contraria a casa dela, que loucura ela pensou, às vezes acho que estou exagerando nessa paranóia.

Do ponto final até sua casa que nada mais era que um pequeno apartamento de quarenta e cinco metros quadrados, Clara percorria menos de dez minutos, eram normalmente períodos onde ela passava no celular conversando com alguém, falando sobre como estava alguma amiga, o rapaz que havia conhecido ou o chefe que teimava em chama-la para sair, mas naquele horário ela só acelerava o passo, não era só medo, talvez fosse à sensação de autodefesa que todos temos daquilo que sentimos e não vemos.

A rua da em que morava era larga, estava lá a menos de um ano e como uma rua cheia de construções novas algumas casas ainda estavam em estados rústicos, outras apenas suas estruturas estavam de pé, no fundo da rua era possível enxergar o apartamento com algumas luzes acesas, mas em sua maioria estava tudo apagado, o silêncio de se morar em uma rua quase deserta chega ser desesperador no período noturno, contrastando o ódio com todas as vezes em que ela tentava miseravelmente gravar suas lives com dicas de maquiagem e o maldito barulho de máquinas.

A menos de quinhentos metros a vida sempre surpreende, e como suas variáveis são incógnitas a calmaria de uma caminhada é trocada por um riso, mesmo que sem piada, não existe sequer algo que seja dito no momento, ela não vê de onde vem e muito pouco precisaria, dizem que perto da morte toda pessoa sabe que esta perto do fim o suficiente para melhorar até da pior das doenças, então de uma construção de um sobrado dois homens saem, ela jamais saberá dizer cor, distinguir rosto ou menos ainda voz, eles dizem algo, talvez tenha sido “espere ai”, mas quem sabe, ela jamais quis ouvir o que eles diziam, como um animal indefeso ela entendia a entonação e não as palavras. O coração acelera, eles estão próximos e como se o cheiro estivesse ao ombro e ela chora, lembra da faculdade, da matéria que ganharia o prêmio nacional de jornalismo, do terno chique e importado e a declaração que faria agradecendo a todos e em especial sua mãe e seu pai, do namorado que não teve mesmo achando que esse último rapaz era mesmo uma boa pessoa, quando o salto quebra e ela torce o tornozelo o chão se torna a cama que ela tanto desejava e o apartamento a menos de cem metros parece uma miragem se afastando, como hienas o sorriso é mais alto, mais forte, mais próximo, ela olha para as paredes de uma construção e o que vê foge de qualquer coisa que pareça aceitável, figuras de reboco parecem dançar, num momento desses qualquer pessoa estaria em choque, mas ela juraria até o fim da vida que aquele reboco dançava loucamente como num gesto de adoração a algo que ela jamais viu ou veria novamente, der repente não há mais risos, não existem mais pessoas, mas sangue, o suficiente para inundar um quarto pequeno, ela mal sabe dizer quanto tempo passou, o relógio esta parado e ela ainda chorando levanta procurando se apoiar em algo para acreditar, não há ninguém na rua que possa a ajudar, não ninguém ouvia nada, de alguma forma que ela nunca soube explicar o seu banho nessa noite foi o mais gostoso que já tomou em toda sua vida, a comida congelada tinha gosto de masterchef e a cama a abraçou como uma boa e conhecida amiga

Eduardo Haraki
Enviado por Eduardo Haraki em 17/09/2021
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