Véspera de Todos os Santos

Porto Alegre, meia-noite da madrugada de 31 de Outubro, uma sexta-feira. O Dr. David Nasser acabara de sair de um seminário sobre oncologia do qual fora o organizador e palestrante principal no Plaza São Rafael. Aos quarenta anos, aquele homem forte, bonito e brilhante estava no auge de seu vigor e de sua carreira como médico. Era o mais importante oncologista da região sul do Brasil, tendo tratado pacientes que vinham lhe consultar de várias procedências. Ganhara inúmeras brigas com a morte, e isso envaidecia-o, dava-lhe uma sensação de poder sem igual. E tinha Elisabeth, a mulher de sua vida. Morena de olhos verdes, 25 anos, linda, inteligente, o destaque no violoncelo da Orquestra Sinfônica de Caxias. Um presente, um troféu. Elisabeth.

Antes de ir embora, passou uma água no rosto e olhou-se longamente no espelho. Seus olhos azuis, que passavam paz e confiança aos demais. O cabelo loiro, ondulado, com alguns brancos cobrindo de neve sua fronte, conferindo-lhe um charme adicional. Sentia-se confiante e feliz consigo mesmo. Hora de pegar a estrada para Caxias. Morava na serra já tinha sete anos, desde que ele e Elisabeth se casaram, logo que ela ficou viúva. A conhecera no Hospital Universitário Federal, onde era chefe da equipe de oncologia. Ficara desde o primeiro instante fascinado por aquela jovem mulher, que acompanhava seu esposo Urias na luta contra uma leucemia que aparecera arrasadora e repentinamente. Urias era um professor graduado em diversas áreas das ciências humanas, doutor em estudos da simbologia. Para ele, aquela doença era mais que um simples sofrimento, deveria conter um significado profundo. David passara horas conversando com ele, bem como com Elisabeth. Decidiu que faria de tudo para ajudá-los.

Essas lembranças passavam pela mente de David quando pegava o caminho para Caxias. Quando Urias morreu, Elisabeth ficou só. Não demorou muito para que se envolvessem. Após o casamento resolveu se estabelecer em Caxias, terra da esposa. Construíra lá a sua casa dos sonhos, que abrigava também seu consultório na região. Tinha também consultórios em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Ser um “expert” em sua área o conduzia a variados destinos.

A viagem seguia tranquila, apesar da baixa visibilidade por uma repentina e inexplicável serração que surgira. O GPS indicava o quilômetro 666 quando o carro parou de repente. Davi fez todas as tentativas para ligá-lo. Tanque cheio, sem problemas mecânicos. Uma pane sem explicação. Parado, resolveu sair e respirar um ar. Estava literalmente no meio do nada, e aquela cerração que tomava conta de tudo dava um ar fantasmagórico e surreal à paisagem. Foi quando viu as luzes. Fracas, bruxoleantes. Avançou alguns metros em sua direção, tendo o cuidado de antes ter fechado o carro e ligado o alarme. Quando chegou em frente à construção, achou que seus olhos o traíam: uma casa de um andar, com uma grande e pesada porta central, janelas ao redor iluminadas por fracas luzes de velas e lampiões. Sobre a porta, a inscrição. “Taverna”. Uma taverna que poderia ter saído de contos medievais ou dos filmes de terror da Hammer. Sem mais a fazer, resolveu entrar. A porta, pesada, abriu-se com um rangido...

O ar era pesado no interior mal iluminado do ambiente. Homens com roupas surradas de camponeses medievais no balcão, olhos baixos, grandes canecas. Um homem com vestes de monge, capuz, com uma lanterna do tipo lampião ao seu lado, servia-os com algo que parecia ser uma cerveja. David chocou-se ao notar, nas prateleiras que o cercava, os vidros de conservas contendo olhos, órgãos e fetos humanos, conservados em algum líquido.

Ao redor, em grupos diversos sentados às mesas, estavam pessoas estranhas, em silêncio. Ao fundo do ambiente, um caixão cercado por homens de preto, em pé. Na penumbra não se podia ver o rosto do morto. Somente as velas que ardiam solitárias. Em uma mesa isolada havia um homem, com uma roupa e um chapéu berrantes. Manipulava alguns objetos que David não podia definir. Duas canecas cheias repousavam entre eles. O médico pensou estar enlouquecendo ao reconhecer a voz provinda do estranho:

- Doutor David. Estava aguardando o senhor. Há sete anos.

David tentou acordar, mas não era um mero pesadelo. Ele estava ali de fato. E aquele homem, com vestes estranhas e berrantes era...

- Urias? Mas você está...

- Morto? Há sete anos. Mas hoje é uma noite diferente. Na madrugada de 31 de outubro, as portas para o mundo sobrenatural se abrem. Nós a conhecemos como a Véspera de Todos os Santos. Os povos celtas o celebravam também na forma de um festival chamado Samhaim. Mas sente-se. Doutor. Essa cerveja está reservada para você.

David tentou não pensar. Era um sonho ruim, tinha certeza. A qualquer momento acordaria. Tudo o que tinha a fazer era seguir seu fluxo, não lutar contra ele. Sentou-se. Deu um largo gole na cerveja. Forte, artesanal, gelada. O líquido passou por sua garganta em direção ao estômago como um fogo percorrendo uma trilha seca. Resolveu jogar aquele jogo. Isso, tinha certeza, o faria despertar.

- O que você quer de mim, Urias?

- Um pagamento, Doutor. Afinal, você ficou com minha mulher.

- Nós só nos envolvemos depois da sua morte...

- A minha morte. Foi conveniente, não? Eu sei. Hoje tenho um conhecimento que não tinha na época. A sabedoria dos mortos... Quando nos conhecemos, você a quis desde o primeiro minuto.

- Não é verdade, fiz tudo ao meu alcance para salvá-lo...

- Salvar-me? Não me faça rir. Toda a sua conversa, a sua dedicação... Os plantões de finais de semana para minhas sessões de radioterapia... Você usou mais rádio em mim do que poderia matar um cavalo... Isso apressou o câncer em meu sangue. Foi isso o que, de fato, provocou a minha morte.

- Você está delirando, não pode provar nada...

- Estou morto, lembra-se? Não há necessidade de provas. Beba sua cerveja, doutor.

Inexplicavelmente, a caneca se enchera de novo. David a esvazio de uma só vez. Ao repousá-la sobre a mesa, estava novamente cheia. Voltou a esvaziá-la, num ciclo que se repetiria noite a dentro.

- Ela também sabia. Quis você desde o início – falou o defunto. Passei a ser um obstáculo entre vocês dois. Ela nunca questionou minhas continuadas sessões de radioterapia, que só me debilitavam mais. Chorou de alegria quando eu morri. O caminho estava livre.

O médico sabia, no fundo de sua consciência, ser tudo verdade. Sua cabeça girava. Agora não queria mais nada, a não ser fazer parte também daquele delírio, imiscuir-se nele, até que pudesse exorcizá-lo.

- Por quê essas roupas, Urias?

- Não se lembra da minha área de estudos, doutor? A simbologia? Eu as criei, e tudo o que você vê a nossa volta, com minha vontade, guardada nesses sete anos. Estou trajando o “Mago”, do Tarot de Marselha, um antigo oráculo francês. Assim como esse arcano, posso manipular a realidade ao meu redor. Vê o homem no balcão, com o capuz e a lanterna? É o “Eremita”. Recolhido ao isolamento e, ao mesmo tempo, em busca do sagrado.

- E aquele velório, Urias? Significa a sua morte? A morte que eu encomendei?

David não notara, mas agora ria com gosto. Nunca tolerara obstáculos, e era isso o que Urias significara em sua relação com Elizabeth. Ele iria morrer de qualquer modo. Só fizera apressar um pouco as coisas. Foi então que notou o homem alto, vestindo preto, portando uma foice. Parado ao seu lado.

- Seu tempo de abandonar esse barco chegou. Vá com a “Morte” despedir-se do defunto e estará livre para voltar ao seu mundo. Eu já tive o que buscava.

Sem questionar, David obedeceu Urias. Seguiu o imenso homem até se aproximar do caixão. Foi quando o chão fugiu a seus pés. O rosto do morto. O rosto. Seu rosto. Não, não podia ser! Sua cabeça agora girava desatinadamente, até sentir a dor e o esfacelamento de seu crânio. Então veio o escuro. E depois do escuro, algo que os homens costumaram, desde há muitos séculos, chamar de Inferno.

A equipe de salvamento e a polícia rodoviária federal ainda se perguntavam o que teria causado a colisão do carro do Doutor Nasser com aquela árvore. Traumatismo craniano com perda encefálica fora declarada a causa mortis. Seus colegas, amigos e a viúva Elisabeth se perguntavam como o exame de toxicologia pudera apontar um nível tão elevado de álcool em sua corrente sanguínea, se era do conhecimento de todos que David não bebia, muito menos naquela madrugada após a palestra em Porto Alegre. Um mistério que nunca teria resposta.

Elisabeth tinha um consolo: um filho crescia em seu ventre. Nove meses depois, causando espanto à equipe obstetrícia, a moça daria a luz a um feto morto, coberto de tumores, tumores que haviam passado à mãe através da placenta, devorando o seu útero e outros órgãos, num processo de metástase. Morreria sete meses depois.