Pele

“XIPE TOTEC – Ou, na língua dos astecas, “nosso senhor o esfolado”, divindade terrível, importada do panteão das tribos bárbaras da Costa do Pacífico. Protegia a corporação dos ourives e presidia a regularidade das chuvas da primavera. Para que estas fossem satisfatórias, o deus cruel exigia, no decurso do mês Tlacaxipeuakiztli, sacrifícios de homens robustos. Ligadas a postes votivos, as vítimas eram crivadas de flechas, pois o seu sangue, correndo pela terra, motivaria Xipe Totec a fazer correr igualmente a chuva. As vítimas eram esfoladas e os sacerdotes recobriam-se com a sua pele rapidamente pintada de amarelo. A simbologia deste ato era lembrar que a terra “muda de pele” no começo da estação das chuvas, quando as searas vicejam.” DONATO, Hernani. Dicionário das Mitologias Americanas. São Paulo, Editora Cultrix, 1972.

 

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Como costumava acontecer a todo "pequeno" empresário do ramo do ouro, não se podia dizer ao certo qual o verdadeiro porte do negócio de Celso. Vou confessar a vocês. Era ele um grande empresário mesmo, abastado, comprando e vendendo o nobre metal longe dos olhos do fisco e sua feroz cobrança de impostos. Seus recursos financiavam seus vastos estudos autodidatas sobre as antigas civilizações mesoamericanas, sobretudo os astecas, estudos que remontavam desde os tempos do reformatório. A diferença é que hoje possuía uma vasta biblioteca especializada, se comunicava com as maiores autoridades mundiais no assunto, claro, usando um pseudônimo para não levantar suspeitas. Tinha também estudos sobre a fabricação de couros, sobre a arte de reproduzir artefatos antigos, sobre como processar carnes... Era também um arqueiro de primeira grandeza.

 

Todas essas coisas estavam abrigadas e ocultas no anonimato do bunker construído secretamente sob sua casa de dois pisos. Residia sozinho como um inofensivo celibatário, não obstante ser um bonito homem de 37 anos. Evitava a proximidade com as pessoas. Não podia perder sua independência. Consumia regularmente os prazeres de lindas e caras garotas de programa, para aliviar a tensão. Não podia desviar o foco de sua missão sagrada. Sua caça, seus rituais, seus troféus. Seu propósito maior. Para além de todas as outras máscaras, Celso era um predador. Celso era um serial killer.

 

Todos os anos a partir dos 30 - e lá já se iam sete, desde que começara a cumprir com sua devoção - na semana que antecedia a primavera, ele elegia uma vítima e atacava. Já eram sete seus troféus e sete os corpos que o nutriam, dos quais adquiria sua força vital. Mas como isso começou, de fato?

 

Aos 13 anos, Celso ingressou no reformatório. Vulnerável, órfão - abandonado pelos pais, abusado e torturado por quem o adotou, durante anos - foi libertado para parar no pior lugar para um menor nessas condições, pois a cidade não contava com abrigos ou orfanatos. Todas as crianças de sua estirpe eram jogadas naquela violenta e insensível vala comum.

 

Foi no primeiro dia. Os internos veteranos debochavam dele a medida que ingressava nas dependências daquele inferno. Mas foi durante o almoço que ocorreu a pior provocação. O líder dos valentões se aproximou de Celso, que se quedava sentado em uma mesa isolada dos demais. Colado em seu ouvido, disse com seu hálito nojento que naquela noite o jovem seria a diversão do grupo. Calmamente, ele ergueu-se e, cara a cara com seu assediador, num gesto rápido cravou-lhe o garfo no olho direito e, num movimento de pinça, puxou para fora o globo ocular. O valentão caira em meio a urros e sangue jorrando em abundância, desmaiando em seguida. Até a segurança do refeitório paralisou quando Celso levou o olho sangrante a boca e, a vista de todos, o devorou com volúpia... Nunca mais haveria garfos, nem mesmo facas arredondadas de metal naquela instituição. O rapaz passou uma semana em uma espécie de solitária e desde então foi "recomendado" a receber um onipresente acompanhamento psiquiatrico. Depois daquele primeiro dia de reformatório, virara uma lenda...

 

Desde então ninguém ousava aproximar-se dele. Nem a segurança, a não ser amparada por armas de choque. Em suas consultas psiquiátricas ficava a metros de distância do médico, sempre algemado. Tinha licença porém para desfrutar de um de seus maiores prazeres, tão desprezado pelos outros colegas: a biblioteca, sob supervisão armada, é claro. Foi lá que encontrou os livros sobre a América Antiga. Lá encontrou o Dicionário das Mitologias Americanas. Aprofundou-se em seus deuses. Os maias e os astecas, principais expoentes pre-colombianos, tinham religiões em que o sacrifício humano, o sangue, eram a chave para melhores colheitas, proteção aos homens e aos governantes, para a abertura das chuvas, que preparavam sazonalmente o solo para o cultivo, para todos os aspectos da sociedade... A morte servia a vida, regada com sangue humano. Sangue abundante e em profusão, para abençoar, limpar, abrir caminhos... Foi naquela biblioteca que conheceu aquele que seria a partir de então Seu Senhor e Guia, o Deus asteca das chuvas Xipe Totec, "nosso Senhor o esfolado". Aprendeu tudo sobre seu culto e as oferendas que exigia. Usando de suas habilidades com a madeira, reproduziu sua horrenda imagem a partir de uma foto da arte votiva asteca, cultuando-a em sigilo. Para os demais aquela figura de um ser trajando uma pele humana esfolada com uma túnica de escamas e aspecto demoníaco não passava da habilidade de um perturbado. Mal sabiam eles...

 

Quem eram os astecas e por quê esse antigo povo deu um Leitmotiv tão fanático ao nosso sombrio protagonista? Vindos de algum lugar ao norte do México, cerca do século XIV d.C, os astecas rapidamente dominaram aquele território e seus habitantes. Em uma tríplice aliança com outras duas tribos, formaram o último pujante império mesoamericano, erguendo em uma ilha no centro de seu território, junto ao Lago Texcoco, a suntuosa capital Tenochtitlan, confrontada em seu auge pelos espanhóis, em 1521. Os europeus dizimaram sua população e roubaram covardemente seus tesouros, mas paradoxalmente o asteca foi o império da América Antiga que mais teve sua cultura preservada, sobretudo por padres católicos que, aprendendo o idioma nahuatl local, elaboraram uma imensa enciclopédia abrangendo todos os aspectos da vida quotidiana. Ciência, política, costumes, religião sobretudo. Muitos documentos originais daquele povo também foram preservados, como os famosos "Codices" que se encontram hoje espalhados em museus da Europa. Os astecas possuíam uma diplomacia que, ao invés de buscar a paz com as tribos inimigas, fomentava a guerra para obter cativos. Estes seriam as vítimas perfeitas para os sacrifícios de sangue aos deuses, sendo o mais faminto deles Xipe Totec. Ele requisitava o sangue e a pele de suas vítimas, que esfolada do corpo ainda vivo era vestida pelo sacerdote, mostrando numa dança sagrada que a natureza "muda de pele" a cada estação, com isso obtendo a chegada das chuvas necessárias à agricultura.

 

A devoção e os sacrifícios a Xipe Totec canalizaram os instintos bestiais do rapaz. A partir da maioridade teria a possibilidade de tornar-se um sacerdote do antigo e demoníaco deus. Agora era tempo de pavimentar o caminho até lá. Era tempo de estudos e treinos.

 

Saído do reformatório, orou a Xipe Totec que lhe desse um rumo. Foi parar a esmo numa ourivesaria, propriedade de um homem velho e doente, bom de coração, que o adotou como filho. O ancião não tardaria a morrer com um travesseiro comprimido contra a cabeça. Aos 18 anos, Celso era dono do próprio negócio. Aprendeu o artesanato e reprodução de peças astecas antigas, o tratamento de couros, iniciou sua biblioteca. Como esporte, adotou o arco e flecha, que serviria a um propósito sagrado.

 

O tempo foi passando. Chegou a conclusão de que precisava se aperfeiçoar. Quando completou 30, já bem posicionado, executou o rito de Xipe Totec pela primeira vez. Agora aos 37, um rico empresário e estudioso, faria o seu oitavo sacrifício. A primavera chegava e ele mal podia esperar...

 

O perfil das vítimas tinha um padrão. Fisiculturistas belíssimos. Belíssimos e que se prostituiam para viver, anunciando na Internet seus corpos e prazeres a outros homens. Fáceis de se aproximar. Mas a vítima de sua trigésima sétima primavera, além da robustez, tinha um atrativo especial. Era toda, completamente, tatuada. Um trabalho de arte que levara sucessivos anos. Aquela pele, depois de extraída, curtida e trabalhada, seria o maior de seus troféus até então...

 

 

Como de costume os contatos com os "miches" eram feitos via computador ou celular através de uma rede encriptada, indetectavel. Disfarçado e sempre usando um carro alugado diferente, naturalmente não em seu nome, o assassino encontrava sua vítima em frente a um lugar de grande circulação e a convidava para embarcar no veículo. Não havia importância se visse o trajeto. Não voltaria do passeio. Entrariam por um acesso oculto nos fundos da casa, que dava direto no bunker. Depois dos rapazes beberem um sonífero em álcool, água ou refrigerante, Celso iniciaria os ritos sacrificiais...

 

Assim foi com Kevin. O rapaz de 25 anos, segundo soube, empregou a quase totalidade de seus ganhos em seu treinamento na academia, sua alimentação e suas tatuagens. Exceto pelo rosto, Kevin era uma tela humana pintada com temas como mapas antigos, caravelas, serpentes marinhas, numa alusão ao período das Grandes Navegações dos séculos XV e XVI. Esse tema o fascinava desde menino. Agora era parte dele.

 

A entrada do bunker, para não despertar as suspeitas das vítimas, imitava uma casa normal. Da cozinha antevia-se um quarto com uma cama redonda, ao lado de uma organizada sala. Pois embaixo dessa falsa suíte ficava o lugar das chacinas. Sete peles humanas trabalhadas como couros adornavam manequins de madeira. Vidros com órgãos e carnes em conserva ocupavam uma vasta prateleira. Crânios descarnados e decorados ao estilo asteca tinham lugar de destaque. Ossos eram triturados até virarem farelo que era acrescentado a sopas, como fonte de proteína.

 

Ao Centro da sala uma imagem de Xipe Totec em tamanho grande. Um mastro fincado num círculo de terra, a que o concreto dava lugar, onde eram dependuradas pelos braços as vítimas, para que nela seu sangue escorresse enquanto o serial killer as flexava com seu arco, nos lugares mais frágeis, tomando o cuidado de que não morressem. Quando já estavam fracas e exangues, as arrastava para o altar de pedra e com a faca asteca de calcedonia, reproduzida de uma foto da original oferecida por Cortez ao Imperador Carlos V, arrancava a pele de todo corpo com uma boa margem de tecido subcutâneo. A morte era agoniante. Vestiria a pele extirpada e sangrante como conclusão do rito macabro...

 

Como de costume, para quebrar o gelo antes do pressuposto sexo, ofereceu ao rapaz a bebida batizada e pegou outro copo pra si. Colocou uma pizza no micro-ondas para os dois e serviu. Kevin parecia tímido, mas conversava. Celso aguardava o momento do efeito da droga... E foi, talvez, seu último pensamento?

 

Acordou completamente tonto em meio à vozes. Kevin envergava um uniforme preto e um vistoso crachá... Divisão de homicídios? Mais cinco agentes vasculhavam todo o local. Um QG já fora instalado em sua casa de dois andares. Não houve chuvas naquela primavera. Internado perpetuamente no Manicômio Judiciário da Federação, o psicopata balbuciou vida afora, repetidamente, a mesma sentença: "dia do caçador... Dia da caça..."