Mundo Rubro - CLTS 17

Pré-textos:

https://www.recantodasletras.com.br/nanocontos/7295629

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/7360149

~

Há, nessas vidas, tantas fatalidades. A vida é uma fatalidade. E foi, me lembro, numa madrugada que uma fatalidade impregnou uma alma. Quando, ainda criancinha, com apenas cinco anos, acordou com barulhos fortes vindos de baixo. Calçou as pantufas e desceu as escadas, bem devagarinho. Deixou o último degrau e foi à origem deles. Encontrou o pai e a mãe assustados. Ele também estava assustado, mas, nas crianças, a curiosidade é soberana... Mais pancadas.

- Mamãe?

Têm, as vidas, muitos sustos; aquele foi mais um, pros dois. Viraram-se, percebendo o filho, e tentaram ordenar que voltasse, imediatamente, mas não deu tempo, a porta veio abaixo. Encapuzados, segurando lâminas reluzentes como prata - tal qual a lua -, cravaram-nas naqueles dois... Os gritos sendo sufocados, corpos golpeados e o coitado ali, a ver tudo. A mãe no chão, o pai tentando resistir, contudo, quando tentou acertar um soco num dos bandidos, levou um tiro; o estrondo soberano. O menino estava em choque, espirrou sangue do pai em si. O que deve se passar na cabeça de alguns facínoras? Não há problema matar dois adultos, mas, quanto à criança, espectador deste ato tétrico, há uma “compaixão” em deixá-la “viver”. “Deixe, fará o quê?” – Levaram tudo, eu disse tudo; interprete. O menino ficou ali, finalmente saíram as lágrimas para limparem o rosto, de joelhos, na poça de sangue, tapete dos mártires, pedindo para que os pais respondessem – se sujando novamente. Lembrou das lâminas... que, de prateadas, ficaram vermelhas, reluzentes como rubis. Era o seu batismo de sangue. Um novo alguém, novos olhos, para o fazerem ver um novo mundo: coberto com um véu rubro.

Claro, não podia ele ficar sozinho... A polícia veio, tarde, e o encontrou ali, naquele estado, enquanto os vizinhos optaram apenas por observarem assustados da porta e das janelas a cena do filho desesperado. Quem pode com essa onda de crimes? Quem garantia a eles que, indo até lá, não poderiam ser outras vítimas? Deus teve pena e mandou anjos para o amparar: seus avós; que levaram o garoto para casa e cuidaram dele, com muito sofrimento, e também amor.

Os dias foram passando e diariamente aquela família recebia visitas de médicos, psicólogos, psiquiatras e até padres. O pobrezinho não vivia em paz. Crises e mais crises, gritos, dor. Imagine-se no lugar dele... As crianças não esquecem. Como esquecer aquela cena? Na visão do pequenino, tudo ficava vermelho de repente. Tudo virava um inferno. E ele saía do controle. Assim foi toda a sua infância. Quando moço, não eram tão frequentes – nem tão fortes – as crises. Pense... efeito dos tratamentos? Das terapias? Do amor dos avós? Um pouquinho de cada. Ele gostava muito de escrever. Começou após uma terapeuta, de cabelos negros e um rosto sereno, como era sua mãe, pedir para que, cada vez que sentisse a “dor” chegando, escrevesse. E, desde novo, começou. Poemas, pensamentos, estórias, tudo. Algumas que faziam seus queridos chorarem, de horror, mas também de emoção... No abismo que se tornara aquela mente, o Sol, às vezes, penetrava, um pouco. E assim foi seguindo, tendo o amparo, principalmente, da vó, sua santinha. Assim pensou quando certo dia teve uma disforia e, abraçado com ela, aos pés da estátua da santíssima, sentiu um conforto que há muito não sentia. Apesar disso, havia ocasiões que o pesadelo prevalecia, a ferida parecia abrir-se a cada dia, de pouquinho em pouquinho, foi quando o vermelho tomou conta de tudo – mais uma vez – e, num breve despertar, deparou-se com a imagem do seu avô atordoado e sua santa a chorar sangue. Que pesadelo! Mais uma vez? Eram lágrimas transparentes e vermelhas, contudo ela, alma pura que era, abraçou-lhe, como das outras vezes, e veio uma bonança, um mar cristalino e um céu azul-infinito, Sol brilhante como ela; milagres. O lugar dos santos é no céu, não? Eles deixam a Terra e cá permanecem apenas nos altares, mas, do alto, seguem vendo, ouvindo, rezando... chorando. Ela se foi, logo após aquele que amou muito se ir, o marido não resistiu ao câncer, ela parece não ter resistido a sua partida, quis encontrá-lo no céu. Dele também se lembra bem. Podia ser mais introspectivo, entretanto era nítido o amparo paterno que tinha. Perdeu o filho, este deixou o seu, e o tomou para si. Das vivências da juventude, nostalgia pura lembrar quando se vestia de palhaço e visitava a Santa Casa, ou se pintava de estátua e interagia com as crianças das praças – era um artista. Mas amargou na velhice, aquietou-se com tantos problemas de saúde, vivia para a esposa e, depois, também para o novo filho. O menino muito sensível a tudo que era violento, então escondia muitas coisas, dentre facas, jornais, conversas da situação da cidade que, anteriormente, iam para dentro da casa. Tinha um radinho, estimava muito... Essas notícias do início do século... Guerra aqui e ali, transmissão de discursos, avisos de invasões. “Alemanha invade a Polônia e aumenta a tensão no Velho Continente!”. Viu o filho ouvindo aquilo atentamente, esbugalhando os olhos, querendo chorar. Pegou o rádio e jogou longe, era de seu avô, que passou para seu pai e, então, não era de mais ninguém; uma das primeiras que vieram ao Brasil. Lamentou ao ver as peças se espalhando no calçamento, mas sorriu quando viu o filho tranquilo, coisa rara, novamente... É preciso ter esperança! Assim sempre pensou o avô, sempre que via sorrir alguém desenganado pelos médicos ou uma criança que se distraía dos trabalhos, embaixo do sol quente, na rua – ele repetia isso para si, refletia, então, para o filho. Há esperança no futuro? Você reflita. É pessimista ou otimista? O que importa é o que acontecerá. Imagine esse menino... Se há esperança para ele. Com o tempo, a esperança evolui. Como mantê-la intacta nesse mundo em que a violência evolui mais do que ela?

Novamente se viu sozinho, desesperado, mas tinha de seguir, já era, como diziam todos, adulto. Adultos que foram nomeados assim pela fatalidade, mas sequer trilharam o caminho para chegar à plenitude desse estado. Vivia solitário, com ajuda financeira governamental e do que os avós deixaram, de alguns parentes que enviavam dinheiro – já que presença e amor, ao que parece, não tinham para dar – e de um trabalhinho que conseguira, com muita fortuna; era colunista num dos maiores jornais da cidade... Seu avô, mais tarde descobriu, fez cópias de uns de seus textos e enviou para alguns periódicos; um representante veio até a casa e contou para o jovem o quanto os editores gostaram deles e convidaram-no para escrever lá. Uma coluna, só dele, para escrever o que quisesse. Seus pais deveriam estar muito orgulhosos. No entanto, escrevia mesmo de casa e, cedinho, vinha um funcionário buscar as folhas; entregava da janela. Apesar de tachado como estranho e coisas do tipo por viver, como alguns diziam, numa caverna, eram muito bem quistos os seus textos, ditos pelos leitores como poemas de belo lirismo, contos de suspense envolvente e outros elogios. Deixava o que julgava que os outros julgariam como belo para o jornal, aquilo que de fato saía de suas entranhas anímicas, suas dores, ficava consigo. Aprendeu a ver que eram grotescos os seus sentimentos quando via o choque dos pais ao lerem certos escritos seus.

~

A coluna realmente fez grande sucesso, tornou-se uma das coisas mais comentadas entre os cidadãos – e muitos sequer sabiam quem era o autor, imaginem o que pensariam se descobrissem que era o “doidinho da casasilo”? Nem mesmo boa parte dos funcionários do próprio jornal tinham visto ele, porém, o que importava era que as bancas não paravam de pedir mais remessas; muito por conta do louco das letras. Uma explosão de vendas! Os editores não tinham outra decisão a tomar a não ser fazer uma opulenta festa. E já tinha até lugar escolhido: o mais caro casarão da cidade; cujo dono era também do jornal e de 1/3 dos empreendimentos da cidade, riquíssimo. Não poderia, claro, de modo algum, faltar o responsável por isso, não é? Imagine a luta que foi para convencê-lo... Ao ver uns dez homens na porta de sua casa, todos chamando por ele, sentiu um suor frio, uma falta de ar... Não quis abrir, queria mesmo era subir as escadas e esconder-se entre as cobertas da cama; talvez não veria o horror, mas girou a maçaneta para ele entrar. E trouxe convite: seria na próxima semana. “Aceitou”.

Os dias até o derradeiro foram de muita agonia. Só de pensar que sairia de casa – coisa que nunca fizera desde que pisou nela – tinha calafrios. Levava as mãos à cabeça e, em alguns momentos, percebia até que alguns fios caíam – ou será que, no nervosismo, arrancara-os? Tantas preocupações, tantas! Das mais sérias às mais frívolas, como qual roupa usaria... Não tinha vestes dessas de sair, ainda mais n’algo elegante como era proposto. O que fazer, Deus? Tinha uma solução: usar as do vovô; e daria muito certo, sim, mas preferia se enganar. Apesar de, no fundo, saber que estava num beco sem saída, tinha de ir. Que paradoxo... Medo de ir à festa, medo de não ir. Imaginava o que diriam os homens que receberam o seu trêmulo e quase inaudível sim, os outros convidados que, decerto, já estavam avisados da tão esperada revelação da estrela do jornal. Passou esses dias sem se alimentar direito, algumas vezes não almoçava nem jantava – também, quando fazia, chegou, outras vezes, até a golfar o alimento quando se lembrava do tal compromisso. Pensou até se seria isso bom, talvez adoeceria e pudesse usar como pretexto para faltar, contudo vieram novamente os pensamentos... Sempre lhe vinha a preocupação do que eles diriam. É, não tinha mesmo jeito. E, então, chegou o fatídico dia.

Vestido, indeciso, e com o papel indicando o endereço nas mãos, suadas, deu o primeiro passo fora da casa. Mais uma vez, era retirado do seu mundo. Quis voltar, mas seguiu, fechando, às vezes, os olhos, com a esperança de abri-los e acordar, porém, de tanto andar – e perder-se no meio do caminho -, chegou mesmo na casa larga e rica, cheia de barulhos e luzes; não sabia o que fazer.

- Você! – um gorducho sorridente, um dos que foram convidá-lo, surgiu de repente. Talvez bebeu um pouco a mais, falava meio alto. Era o dono. Queria paparicar bastante a sua nova mina de ouro. Pôs o braço pelo ombro do funcionário, este, de súbito, afastou-se, assustado. O meio-ébrio estranhou, mas ignorou o ato, pegou-lhe pelo braço e foi arrastando para dentro da casa. Será que ele podia ouvir os batimentos fortes? Talvez não, só aquele contato com um outro já fazia o jovem se sentir péssimo, pior foi quando entrou no salão e o extravagante patrão fez questão de anunciar, aos berros, a presença ilustre do escritor. Então, um silêncio. Todos pararam para olhar, até pouco ansiosos, a imagem. Ele estava usando uma calça e um terno meio marrom, de fibra grossa, do avô. A magreza fizera a roupa parecer larga. E a aparência... Uma pessoa chegou a cochichar sobre sua saúde. A pele bem pálida, olheiras profundas, um olhar assustado. Foi um calar geral, constrangedor. Se perguntasse de novo, talvez teria a resposta sobre ouvir os batimentos. Mas o chefe, bobo, devolveu a coroa ao barulho; a festa prosseguiu.

Chegou a hora do banquete, sentiu-se um pouco mais aliviado, já que aquelas bocas se ocupariam em comer e não em importuná-lo tanto, como aconteceu por toda a festa. Mas que tolice crer que algo pode melhorar em sua vida. Respirou fundo, fechou os olhos, afirmou a si próprio que era capaz. A mesa enorme, estava sentado em uma das dezenas de cadeiras, a sua frente havia três pratos, um grande e o restante menor. E os talheres. Colheres, garfos... facas. Facas. Prateadas como a lua. Perdeu o apetite, a comida sequer havia sido posta. Vieram os funcionários os servir, estava ali a nata do jornal: o dono, chefes, editores e os responsável pelo conteúdo; uma outra parte, menos importante, ainda perambulava pelo casarão. Os anfitriões costumam ser educados, mas esse, até mesmo na hora de comer, não tinha modos. Aquilo irritava, o tempo todo fazendo as atenções serem voltadas para ele. Aqueles olhares. Não queria aquilo, dava agonia! Mas foram postos as porções de arroz, alguns legumes e... a carne.

Se arrependia tanto, mas tanto. Queria simplesmente sair dali, porém chamar ainda mais atenção? Agora que os olhos se voltavam para a refeição? Não queria, também, sair como mal-educado. Maldição. Era mesmo amaldiçoado. Encarava o lustre, não queria comer, mesmo tendo o alimento em seu prato. Só queria estar em casa, pintando, talvez. Tentando imaginar qual a melhor forma de terminar aquele quadro que o avô começou... Estava era ali, o ali era sua mente, conseguiu sair, por um momento, mas era proibido de ter paz; a moça da cadeira à direita o cutucou, perguntando se não iria comer. Nisso percebeu que alguns insistentes olhares observavam ele com estranhez estampadas no semblante. Droga! Agindo como louco na frente dos outros, deveria ser o mais invisível possível. Encolheu-se e disfarçou. Mas não deu. Facas... Travou. Não tinha o costume, os avôs cortavam as coisas antes dele aparecer para comer – mais tarde acostumou-se apenas com vegetais e grãos. Virou a cara. Quantas más escolhas fizera. Viu uma faca bem afiada cortando um bife. O molho escorrendo nas fibras, molho avermelhado, carne cortada. Tremia, suava, ruidava. Não dava para continuar ali, não dava. Estava sentindo o Inferno. Podia sentir o ardor do fogo em seus pés, em seu corpo. Estava virando, mais uma vez, um monstro? Seu mundo estava aparecendo, sua realidade, seu olhar verdadeiro. Não dava para continuar ali. O tilintar dos talheres incomodava seus ouvidos. Tão agudos, chegava a ecoar em sua cabeça. Que barulho infernal. Tiros? Por que todos estavam assustados? Que som foi esse? Não poderia ser. Eram tiros.

Saiu dali o mais rápido possível, sem rumo, apenas queria sair.

Foi em direção à primeira porta que viu, essa dava acesso a um espaço a um corredor pouco convidativo e a uma escada, essa estava bem a sua frente. Ignorou o segurança que perguntou-lhe algo e subiu-as, os gritos estavam perseguindo-o. Queria se esconder deles e esconder dos outros o que estava por vir. Chegando no alto, havia outro corredor, menor, mas via algumas pessoas nos finais dele; também haviam uns quartos que deveriam ser para hóspedes, poderia ser bom se esconder num deles, trancaria a porta e esperaria tudo passar. Foi, entrou num dos aposentos, mas já estava muito tonto, muito tonto. Cambaleou, bateu a porta com força, não se lembrou da necessidade de trancá-la. Lástima. Caiu. Rastejou até o banheiro, a luz de lá estava apagada. Conseguiria sumir lá, provavelmente. É capaz de ter desmaiado lá. Ou até mesmo dormiu (ou acordou?) para dar lugar à visão de seu mundo. Aquele mundo. Quando acordou tudo estava vermelho, tudo. Levantou-se com muita dificuldade, o banheiro estava escuro, lembram? Mas se guiava com uma luz-reluz. Refletia algo, um pedacinho de lua? Alumiava o banheiro para que pudesse se situar, era a única coisa que não fora tomada pela rubrez. E se sentia atraído por aquilo, foi até lá e pegou, era tão linda. Só depois deu conta dos cochichos vindo dali, havia pessoas no quarto. Um homem e uma mulher, um casal, acho. Tudo estava vermelho, menos aquilo. Inadmissível luz no Inferno, tinha de ser tomado por ele. Barulhos, barulhos, barulhos. Gritos, suplicações. Batidas, zunidos. Rio escorrendo, o rio que conhecia. As veredas do corpo se abriam e espalhavam-se pelo chão. Um barulho soberano, o que houve? Eles chegaram no quarto? Trancaram a porta, não? Que azar duplo seria esse descuido, mas não soube se a porta veio a baixo antes de desmaiar novamente.

Acordou com um casal esfaqueado, morto. No chão, abraçados. Uma poça de sangue, também estava ensanguentado. Como estava vivo? Desmaiou, sabe que desmaiou, eles devem ter confundido ele com um morto, mas tiveram a hombridade de fechar a porta, apesar de terem deixado a faca. Estava ensanguentada.

No dia seguinte, as fotos do que ocorreu estampavam as capas de jornais. A foto de um quarto, tingido de sangue, com dois mortos e um moço agarrado aos ferros de uma mesa, encolhido, ensanguentado e às lágrimas, com uma faca diante de si. Uma grande fatalidade na grande casa da cidade...

~

Terminei há uns minutos, depois reviso melhor.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 20/11/2021
Reeditado em 22/11/2021
Código do texto: T7390189
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.