O maior espetáculo da Terra - editado

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"Venham! Venham! O maior espetáculo da Terra vai começar"

The Pittsburgh Post, 23 de novembro de 1907.

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- Este whisky é uma porcaria! - Greg engoliu rápido - quando vão aprender com escoceses? - Havia um tom de orgulho na sua pergunta.

- Querido, na próxima vez peço ao Tim para trazer um outro. - Amélia abraçou-o pelas costas e deu-lhe um beijo na bochecha, na parte superior a qual a barba estava aparada.

- Você é um anjo. - colocou as botas e saiu da cama, despediu-se com um leve beijo nos lábios e partiu, enquanto isso Amélia ficou deitada pensando.

Amélia começou a trabalhar para o senhor Tim Silver, no principal prostíbulo da cidade, há onze anos. Tinha treze anos de idade, tempos difíceis aqueles, logo após perder o emprego que alcançara na fábrica têxtil. Num dia, após a jornada de doze horas seguidas de trabalho, não aguentou e desmaiou. Depois disso o chefe do setor lhe informou que estava despedida. Percorrera pela cidade inteira, mas a situação estava complicada, imigrantes e pessoas do interior do país se deslocavam para a cidade atrás da fama de emprego fácil, no fim a demanda era menor que a procura e as filas por uma vaga em uma fábrica qualquer davam voltas no quarteirão. Um dia encontrou uma menina, Margot, que conhecera na fila de emprego, ela estava bem vestida e, aparentemente, bem alimentada, ao contrário de Amélia que estava aos trapos e mal conseguindo fazer uma refeição por dia. Falou que conseguiu um novo trabalho e que tinha casa e comida, não era um serviço comum, é verdade, mas, entre viver na sarjeta sem comida a ter emprego, era melhor ter o que comer. Amélia, mesmo receosa, pegou o endereço que a colega lhe passou.

Começou na mesma noite, seu primeiro cliente foi um escocês de barba ruiva.

***

As folhas que caiam com o início do outono levaram consigo a inocência de Amélia, a cada dia no prostíbulo se tornava mais mulher. Os truques e segredos femininos ela aprendia na prática. Mas, no início, foi difícil e a ignorância lhe cobrou um preço. Após sete meses descobriu que estava grávida, na verdade foi Margot que notara, a menina mulher já gestava na décima primeira semana. Não tardou para Tim também descobrir.

Quando soube iria despedi-la, descartá-la como fizera com tantas outras. Porém Margot intercedeu, falou que cuidaria da amiga e que, quando a criança nascesse, seria doada.

Propôs bancar com o pouco que recebia as despesas da colega. Tim aceitou, foi apenas um erro da jovem que não iria atrapalhar o seu futuro promissor.

- Margot, para aonde vai o bebê?

- Para a roda dos exposto. - Amélia não chorou naquele dia, todavia seus olhos vidraram de desespero reprimido.

O tempo passou e demorou para Amélia criar barriga, seu biotipo petite ajudou, mas a partir da vigésima semana a saliência não podia ser disfarçada.

Tim deixara bem claro que não queria ninguém parindo no seu estabelecimento. Assim, faltando aproximadamente uma semana e meia, Margot levou Amélia para um estábulo abandonado nas redondezas. Não tinha dinheiro para bancar hospedagem, então a única saída seria mantê-la ali e sempre que possível assisti-lhe até o momento do parto.

O barulho da chuva caindo e escorrendo pelas telhas podia ser ouvido de dentro do estábulo, Amélia estava deitada no feno com as pernas abertas em trabalho de parto, seu vestido molhado de suor e água. Passaram três horas e o bebê não descia. Margot estava preocupada, mas manteve a postura firme, era disso que Amélia precisava.

- Mais força, vamos!

- Aiiií...

- Vamos, está quase... - desceu, os olhos de Margot se arregalaram, porém não foi de alívio. O choro saiu em coro e Amélia sorriu.

- Me dê! - Margot passou as crianças apreensivamente, Amélia olhou confusa segurando-as envolvidas em uma coberta.

Passou um tempo e elas continuavam incrédulas. Margot juntava a força e a coragem para levar as crianças. A chuva diminuíra ao ponto de finas gotas imperceptíveis ao olho, mas não ao contato com a pele. O cheiro da relva molhada perfumava a brisa noturna.

- Posso ir junto? - Margot olhou com piedade para Amélia, "como dizer não?" perguntou a si mesma.

- Estás muito fraca... podemos esperar um pouco, vamos mais tarde. - Margot decretou - descanse, durma um pouco. - cobriu Amélia.

Passaram duas horas quando Amélia acordou, estava escuro embora próximo do nascer do dia. A chuva permanecia fraca. Margot ajudou Amélia a se ajeitar na carroça com os bebês e dirigiu para o centro da cidade, próximo à Catedral.

Amélia ficou na carroça enquanto Margot levava as crianças.

- Posso dar um beijo de despedida?

- Claro - Margot segurou as lágrimas - vai ser melhor assim, elas terão mais chances...

- Sim... - Amélia não foi tão forte quanto Margot...

Margot pegou as meninas. A roda estava vazia e a carroça ficara escondida numa viela. Foi rápido, colocou-as e girou. Logo estavam dentro do muro da irmandade. Correu para a carroça e ficou ao lado de Amélia observando e aguardando que alguma irmã pegasse as crianças. Os raios de sol de um novo dia começaram a surgir enquanto uma irmã se aproximava da roda. Pegou as duas meninas e retornou para a instituição, porém, antes de entrar, a irmã olhou para trás e seus olhos confrontaram com os de Amélia, que escondida assistia a tudo. A jovem irmã deu um sorriso e neste momento um odor podre de enxofre se espalhou pelo ar.

****

- Este cliente é bom! Pagou dez dólares, e adiantado! - Tim lhe mostrou o dinheiro. - Se demorasse mais cinco minutos eu iria trazê-lo aqui em cima! Faça o melhor que você sabe fazer - apontou-o do alto da escadaria.

- Quem é ele? - perguntou abaixando o seu decote e levantando os seios.

- Gerente da Ferrovia, vão instalar uma nova linha que corta o país e aqui na cidade vai ser uma das principais estações, saiu até no jornal! Deixei um exemplar no seu quarto.

- Depois eu leio, como estou?

- Linda, faça valer cada centavo.

- Pode deixar. - Amélia desceu as escadas e foi até o salão. Margot tocava uma música dançante no piano, com um jovem a flertar. O cheiro da bebida alcoólica com o das cigarrilhas se misturavam. As mesas estavam animadas com as conversas e a jogatina dominando o ambiente. Aproximou-se do homem: era alto e forte, com perfume muito amadeirado, ostentando um bigode fino e bem aparado, os sapatos refletiam os abajures, usava um paletó preto que combinava com seu chapéu coco, o cliente especial jogava cartas, perdera a segunda rodada seguida.

- Já vou. Senhores, foi um prazer jogar com vocês. - disse com um tom rouco de voz, diferente do causado pelo wisky e pelo charuto. Pegou nas mãos de Amélia e foi em direção aos quartos. Quando a porta do quarto de Amélia se fechou lentamente, o som alto do salão abafou o seu suplício.

Foi Margot que socorreu Amélia no quarto, sem muito saber o que fazer, mandou chamar Tim. Atordoada, mas se retomando, tremia enquanto Margot segurava suas mãos.

- Calma, Amélia, calma, e me conta o que aconteceu? - sentou-a na cama com as costas para a cabeceira.

- O que houve? - Tim chegara com um sorriso no rosto que desapareceu quando a viu. A boca de Amélia não falou nada, mas seus olhos diziam tudo.

- Escute, sempre que ele vier aqui e quiser ficar contigo assim será. Tens noção da importância e o que ele representa? Ele representa não só o desenvolvimento da cidade, mas do país inteiro! Não é só porque ele paga bem... não... não... viu como tava cheio hoje? Aonde ele vai os bacanas vão atrás. - apontou a saída do quarto para Margot, que se foi olhando para a amiga.

- Descanse por alguns dias, Margot cuidará dos ferimentos. Pelo que vi no jornal, o contrato para o início da obra da ferrovia já foi assinado, inclusive tem aporte do tesouro nacional. Sabe o que isso significa? - Amélia não respondeu, apenas balançou a cabeça negativamente - mais clientes, mais lucros. Ele me falou que virá todo final de trimestre para a cá acompanhar a construção da estação, também disse que gostou muito dos seus serviços - Tim se retirou. Amélia pegou o jornal e começou a ler a parte dos planos de expansão da rede ferroviária, o ênfase da notícia cobria toda a capa do matutino, já o verso também fora quase dominado pela matéria, só no fim, próximo à numeração de páginas, havia um anúncio:

"Venham! Venham! O maior espetáculo da Terra vai começar"

"O Grande Circo Mr. Magnus K. estreia na cidade"

Abaixo ficava o endereço da atração, Amélia anotou num bloquinho de papel e jogou o jornal no lixo.

*****

Depois de três dias de repouso, ainda sentia dores pelo corpo. Mas, por alguma razão que desconhecia, o desejo incontrolável de sair a convenceu. O circo parecia ser a escolha ideal de diversão. Não era um circo grande, embora se intitulasse de "O maior espetáculo da Terra". Pagou alguns trocados no ingresso, os demais espectadores eram pessoas simples, na sua maioria operários das fábricas da região.

Acomodou-se no seu assento, e o espetáculo foi anunciado.

Havia três caixas cobertas no centro, sendo uma dupla, um homem se apresentara como Mister Magnus K., o ilusionista (que fazia as vezes de apresentador), era um sujeito alto e magro, uma magreza atlética, diferentemente das dos operários da plateia. Não possuía barba e deveria ter cerca dos trinta anos. Alguns poderiam achá-lo bonito, mas Amélia não via beleza ali, pelo contrário, os olhos verdes dele com um brilho avermelhado davam-lhe repulsa. Então Magnus K. pôs a cartola em cima de uma das caixas e puxou a coberta de outra. Dentro da superfície de vidro, havia um homem. Era negro de altura média, mas o que chamava a atenção era o tamanho de sua cabeça que não superava um punho fechado. O contraste do corpo, de tamanho normal, e da cabeça pequena, levava o público às risadas, como se fossem seres perfeitos e que tivessem o direito de se divertir da desgraça alheia. Por outro lado, Amélia sentia compaixão. Alguém gritara nos fundos que era por isso os negros eram inferiores, uma subespécie. Enojada, Amélia pensou em sair, mas ficou, e, ao confrontar os olhos do homem, viu que ele não estava consciente, parecia hipnotizado. As gargalhadas se multiplicavam pelo picadeiro, ecoando entre as lonas. Magnus K. tampara novamente a caixa.

Com um sorriso nos lábios e os olhos verdes refletindo um vermelho fogo, o ilusionista apontou para a segunda caixa. Dissera algo que Amélia não entendeu direito devido ao burburinho dos espectadores. Era uma caixa menor, demasiadamente menor e, num gesto rápido, foi revelado o que se escondia. Era uma homem. "Ou talvez uma criança?" - pensou Amélia. Com uma cartola, o pequeno homem parecia uma versão menor do apresentador. Ele foi para frente se aproximando do público e, com suas diminuídas mãos, retirou três bolas da cartola e começou a fazer malabarismo.

A plateia aplaudia. O anão agradeceu e retornou para a caixa. Então Mister Magnus K. se aproximou da caixa dupla, uma música triste no piano começara a ser tocada. O vermelho brasa ascendeu nos olhos do ilusionista. Quando puxou o pano, as pessoas fizeram um "oh..." bem grande que ecoou no tom alto da melodia. Saiu duas meninas, unidas pelas cabeças, duas gêmeas xifópagos. As pessoas gargalhavam após o espanto. Amélia, perplexa, apenas observava com uma lágrima a escorrer pelo olho esquerdo, seus lábios apenas balbuciaram "...minhas meninas...". Sentou-se meio tonta, uma mescla de alegria, por vê-las novamente pois não acreditara que elas sobreviveriam, e tristeza, porque o sofrimento delas estava sendo usado para alegria dos outros.

Utilizando os braços da cadeira como apoio, ergueu-se tentando se recompor. No ritmo da melancólica música, as meninas dançavam de mãos dadas em forma de um "A", aos decibéis dum coral uníssono odioso de risos e vozes. Dedos apontados, deboche, gargalhadas e ofensas, tudo sob uma luz fraca e o chão tremia, as coisas se moviam girando e a luz ficando cada vez mais fraca e até se apagarem... sem forças, Amélia se sentou desmaiando na cadeira.

Acordou com um cutucão no braço.

- Moça? Acorda! Já acabou, vamos? se levanta! Tá na hora de ir embora. - o anão a puxava do assento.

- Acabou?

- Sim, agora somente amanhã à noite. - o anão respondeu com um sorriso infantil, embora possuía um olhar de perversidade. Amélia saiu lentamente, com a cabeça baixa segurando a bolsa com as duas mãos. Pensava consigo apenas uma coisa: "preciso tirar as meninas daqui".

******

A 5ª Avenida era cercada de pequenos prédios que, em comum, abrigavam os principais bancos da cidade. Por isso também era conhecida como a Avenida dos Bancos. Amélia saíra de um deles quando encontrou um menino de rua. Havia retirado parte do dinheiro que juntara na poupança. Ofereceu meio dólar para que o menino marcasse um encontro dela com Bob, o líder da gangue de trombadinhas que agia na região. Ele entrou num beco e depois retornou, avisou-a de que era para ela estar ali novamente perto das 18 horas.

O tempo passou voando e Amélia já o aguardava uma hora antes do combinado. Quando deu o horário ele surgiu. Deveria ter uns quinze anos no máximo, estava usando um chapéu cinza. Contou para ele o seu objetivo: raptar as meninas do circo, o combinado era que pagaria a metade adiantado e, quando ele estivesse com as meninas, que as levasse até a Catedral, onde receberia o resto do pagamento. Depois as levaria para um rancho afastado da cidade, Amélia já acertara a situação com o dono do rancho, pagaria uma quantia mensal para que ele cuidasse das meninas. Bob aceitou a proposta e no domingo seguinte executariam o plano.

No domingo Amélia não foi ao Circo, mas sim à igreja. Na Catedral, sentou-se na primeira fileira de bancos, trazia um rosário consigo, rezara uma, duas, três, perdeu a conta de tantas vezes que pediu proteção. No relógio indicava que o espetáculo estaria por encerrar, então logo Bob iria pegar as crianças. Olhou a imagem Daquele que foi o mais humilhado pendurada no alto da parede, isso a encheu de esperança.

Já era de madrugada quando Bob e mais quatro meninos entraram. Ele segurava a mão de uma das meninas as conduzindo. Amélia estava aliviada.

- Bom trabalho - disse retirando da bolsa o restante do pagamento - agora precisam levá-las para o rancho.

- Sim - respondeu ele contando o dinheiro - já estamos indo - surgiu ao fundo o som de passos na Catedral e quando Amélia olhou para a entrada viu o anão do circo se aproximando, atrás dele vinha o ilusionista com o andar leve.

- Bom trabalho, Bob.

- Podemos ir?

- Não, fiquem, nos façam companhia. - o ilusionista se aproximou de Amélia, a examinou de baixo para cima.

- Por quê? - perguntou Magnus K. enquanto o anão se afastava e, com um pulo, subiu no banco se deitando de barriga para cima. Amélia também se distanciou.

- Por quê? - voltou a perguntar - Se quisesse tê-las, era só oferecer um preço. Elas não me fariam falta. Consigo coisa melhor, não é mesmo, Max?

- Não tenho dúvidas, meu senhor. - respondeu o anão olhando a batalha divina representada nos vitrais da Catedral. Lá, as criaturas celestiais venciam os seres das trevas. O anão sorriu debochando.

- Como ousa tentar me enganar? Logo eu que sou um ilusionista, enganador dos enganadores! - os olhos dele brilhavam como uma floresta em chamas - tens muita sorte em eu não revidar tamanha petulância!

- O que poderia fazer? Não há dor maior do que a que eu sinto... - Os olhos de Amélia duelaram com os do ilusionista que acendiam um vermelho brasa em verde ainda mais forte.

- Nunca duvide da capacidade em surpreender do mal... - o ilusionista lhe virou as costas.

O anão se levantou e conduziu as meninas atrás de Mr. Magnus K., que partiram da igreja calmamente. O novo amanhecer chegou aos poucos e alguns raios de sol surgiram entre as frestas. Na porta de entrada, o ilusionista parou na contraluz e abriu, a luz da aurora abraçou-lhes deixando apenas visíveis os contornos das silhuetas. Então foi neste instante que Amélia percebeu que Magnus K. era o único que não tinha sombra.

A luz do luar rasgava o véu escuro da noite fria, uma fina camada de neve caía do céu se acumulando na madeira da janela. Lá dentro do quarto, Amélia olhou profundamente para a escrivania e não acreditou no que via. Ao lado da prateleira de prata estava o jornal. Leu a data em voz alta, "não era possível" - pensou enquanto revirara o lixo aonde o tinha jogado. Escutava vozes que ficaram mais altas quando se aproximaram, ouviu o tom rouco como um som gutural animalesco, e então ele entrou no quarto.

Kin Jong iI
Enviado por Kin Jong iI em 23/11/2021
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