FADÁRIO - CLTS 17

As folhas espalhadas por todos os lados escritas à mão e a pena ao lado do lap top quebrado evidenciavam o quão conservador era o escritor. O corpo sem marcas além do sangue que escorria pela boca encharcando o colarinho da camisa de linho do alinhado paletó deixava o ambiente com tons duvidosos. A velha máquina de escrever mostrava a falta de algumas letras, dava sinal que dali é que saíam os esboços para as inúmeras obras escritas pelo agora finado escritor Astolfo Kriguer de 71 anos.

O delegado Otto chegara às nove horas na casa do importante e renomado escritor. Estava em casa, pretendia arranjar alguma desculpa para não ter de ir para o trabalho, no entanto, ao receber um telefonema da delegacia, vestiu-se rapidamente, enrolou um cachecol no pescoço antes de cobrir o restante do corpo com um pesado sobretudo de lã e foi imediatamente até o local do incidente. Com o coração palpitante e tomado de um tremor nervoso, preferiu deixar o carro na garagem e ir caminhando. Era a segunda vez que entrava naquele escritório.

O lugar já estava isolado com fitas zebradas, o corpo circulado com giz e as possíveis provas estavam etiquetadas e numeradas. Silenciosamente analisava as marcas, procurando achar respostas contundentes que determinassem a razão da morte. Otto era um homem alto de rosto magro e olheiras escuras, que nessa manhã estavam demasiadamente profundas. Murmurava qualquer coisa sem sentido por entre os dentes reconhecendo que, às vezes, os seus pensamentos se confundiam e, por esse motivo, se sentia ridículo.

O abajur piscava caído ao lado do corpo esticado com o braço direito em cima do assento da cadeira de rodas, as cortinas bailavam com o vento que passava pela pequena fresta da janela fazendo com que os gerânios balançassem no vaso sobre a mesa ovalada e a cara de desespero do morto foram as primeiras visões do delegado.

— Foi uma moça que disse trabalhar com ele que avisou o acontecido. — Disse um dos policiais peritos. — Entrou gritando na delegacia.

O delegado não sabia da existência dessa moça, o escritor se gabava que depois da perda precoce da esposa, e mesmo sem poder levantar-se da cadeira, fazia tudo sozinho. Na contracapa de todos os seus livros ele a homenageava. Morrera de câncer dois anos depois que se casaram. Ambos tinham 29 anos e ele estava entrando numa das principais criações, o livro de estreia.

— Há quanto tempo ela trabalhava nessa casa? Ela disse alguma coisa? — Questionou o delegado. — Há quanto tempo vocês estão aqui? O que descobriram? Alguma pista? — Otto retirava o sobretudo, desenrolava o cachecol e o seu rosto estampava um semblante exausto e preocupado. O calor do ambiente contrastava com a neve que caía lá fora.

— Ela não conseguiu falar muito, estava transtornada. – Continuou o perito. — Apenas disse que encontrou o Sr. Kriguer morto assim que chegou para trabalhar.

— Onde ela está neste momento, preciso falar com ela. — Questionou desconfiado o delegado.

O olhar de Otto procurava culpados, assassinos, possível suicídio ou algum fato que concluísse a investigação. O que o escritor já havia escrito, com certeza garantiria alguns desafetos. Livros semestrais, artigos e notas diárias para o jornal da cidade estampavam no olhar dos políticos e demais autoridades as suas incompetências. Além disso, nunca saía daquele escritório, seu vício pelas letras o mantinha ali. A gigante biblioteca organizada por ordem alfabética de escritores estava lotada e os livros sem lugar empilhavam mesas e cadeiras do ambiente.

— Ficou na delegacia, irá nos aguardar... — Antes de terminar a frase, o policial avistou um porta-retrato e foi na direção da imagem. — Ela devia ser importante para o defunto, olha a foto dela aqui. — Finalizou o policial.

Nesse momento, o delegado tornava-se mais inquieto, apertava os livros, um a um, sacudia a cabeça procurando entradas secretas para mundos estranhos de escritores perturbados. Achava-se ridículo fazendo isso, porém, continuava. Nunca perdoara Astolfo pelo artigo contra a delegacia. Depois que escreveu que o dinheiro para a segurança da cidade era jogado fora, pois nunca resolviam caso algum, o governador fora pessoalmente visitar os policiais, demitindo ou transferindo imediatamente metade da delegacia. Era verdade, Otto investigara muitos furtos e latrocínios, mas pareciam ter sido executados por fantasmas. Nem ao menos suspeitos haviam sido presos.

O delegado virou-se para o policial e esticou a mão para que lhe fosse entregue o retrato, teve certeza que nunca a havia visto. O policial entregou também as anotações dos peritos a Otto.

— Chegamos a menos de meia hora, os fotógrafos já concluíram o trabalho de imagens e nós já estamos prontos para liberar o corpo, parece ter sido parada cardíaca. Aguardamos suas ordens para limpar essa bagunça. — Concluiu o policial.

Os pensamentos tomavam conta do cérebro de Otto, que se desconcentrava lendo as capas de livros de autoria do morto, sem soltar a foto da até então única suspeita. Lia o título e mirava os olhos esbugalhados de Astolfo. As unhas faltantes e os dedos tortos geravam dúvidas de uma possível briga ou tentativa de defesa em luta corporal, mas também poderiam evidenciar a tentativa de levantar-se do chão pós-queda ou simplesmente autoagressão. Isso tudo estava nas anotações do policial perito.

O silêncio da sala fora interrompido pela fala do legista:

— Podemos levar o corpo, delegado?

Otto meneou a cabeça negativamente, olhava os quatro cantos do escritório de paredes escuras como se buscasse alguma luz, pretendia desmentir o artigo escrito pelo morto, dessa vez chegaria a uma conclusão.

A cena que era vista, deixava a clara impressão de parada cardíaca, não havia sinais de arrombamento ou assalto. Apenas as lesões nas mãos diziam o contrário. De qualquer maneira, Otto precisava que o ambiente permanecesse intocado.

Procurava algo que os peritos não haviam achado, talvez, uma conversa mal sucedida, alguma ameaça ou até envenenamento mostravam a necessidade de autópsia, no entanto, o delegado necessitava enxergar todos os elementos com o corpo ali presente.

— Peço que se retirem daqui. Preciso pensar. — O delegado mantinha um semblante duvidoso.

— Temos que levá-lo, delegado. — Sugeriu o legista.

— Preciso de mais tempo. — Disse Otto.

— Bem, se o senhor se responsabiliza. — Finalizou o legista.

— Fechem a porta e aguardem na sala. — Ordenou o delegado.

Antes que todos saíssem, Otto questionou:

— Vocês estão sentindo esse cheiro de queimado?

Apenas menearam a cabeça negativamente, nuca entendiam as perguntas do delegado.

Todos saíram imediatamente, o silêncio naquela sala só era quebrado pelo barulho da cortina que roçava na no vaso de flores. Otto retirou o braço de Astolfo da cadeira, sentou-se e girou as rodas com as mãos até à escrivaninha, como se fosse escrever, mas na verdade tentava imaginar uma cena para um relatório final. Soltou o porta-retrato, abriu o computador e tentou ligá-lo. Inutilmente.

Levantou-se e foi em direção à velha máquina de escrever, essa sim, muito utilizada, as letras estavam apagadas e uns botões estavam quebrados em meio à máquina. A tinta seca sujava a folha que nela estava.

Otto abriu novamente as gavetas, lendo as folhas escritas, contos, poesias e tudo mais que odiava. Sua vida não era um livro aberto, era extremamente fechado em relação a si mesmo, apenas Astolfo havia entrado em seu psicológico, escrevendo sobre os crimes não resolvidos e prometendo lançar sua última história, que se chamaria “Um delegado”.

Esse antigo desafeto nunca fora interrogado, nunca se tornara um suspeito, mesmo que parecesse conhecer os detalhes de cada crime ocorrido na cidade. No entanto, a cadeira de rodas e o medo de sair à rua o impossibilitavam de ser um assassino. Destruía o moral da polícia sem sair de casa.

A situação da polícia com a comunidade era cada vez mais delicada e os moradores evitavam sair às ruas a noite. Havia um ou mais criminosos que estavam à solta, mas nem um suspeito.

Otto caminhava em volta do corpo, fazia perguntas mentais, revisava cada milímetro do corpo de Astolfo, cada detalhe do escritório. Olhou a janela, muito alto para alguém escalar e entrar por ela, além dos cacos de vidro presos no muro, a cerca elétrica estava intacta. Leu pela quinta vez as anotações que fizera ao chegar, nenhuma das portas tinha marcas de arrombamento e o sistema de alarme foi liberado pela secretária.

A foto da moça voltara com força e ele novamente mirou o rosto daquela mulher, pegou novamente o porta-retrato e abriu a parte traseira. Assim que retirou a foto, bateram na porta. De imediato, colocou a foto no bolso traseiro da calça.

— Delegado, está tudo certo aí, o senhor está se sentindo bem?

— Sim. — Respondeu secamente enquanto enxugava a testa e o pescoço com as mangas da camisa.

Todos conheciam os métodos nada ortodoxos de Otto, mas dessa vez ele passara dos limites. A tarde chegou e a temperatura baixou mais, no entanto Otto sentia o ambiente cada vez mais abafado e sufocante. Quando a noite se anunciava o delegado afrouxou a gravata e foi até a porta.

— Vou ficar aqui essa noite, vocês estão liberados.

Todos estavam exaustos, não questionaram a ordem.

— Mantenham a moça na delegacia e a interroguem novamente. — Deu a ordem, fechou a porta e voltou à sua análise.

Otto estava exausto e faminto, mas preferiu não sair antes de chegar a uma conclusão. Precisava de um resultado contundente e um culpado. Voltou aos livros de autoria do defunto, retirava da prateleira, mirava a capa e o devolvia. Após folhear alguns, percebeu que um deles estava em branco, apenas a capa estava escrita, e era o seu nome posicionado bem no centro. Abriu o livro mais uma vez e voltou a revisar as páginas. Até que, uma voz fez seu corpo congelar.

— Ora, ora, delegado Otto. Já estava cansado de ficar naquela posição.

Otto virou-se e Astolfo levantava-se com dificuldade. O delegado retirou a arma do coldre e mirou a cabeça do defunto.

— Eu sabia que havia algo de errado. — Disse o delegado, e continuou. — O senhor pode ficar em pé?

— Sempre! Linda minha esposa, concorda? — Respondeu e questionou, o escritor. — Coloque o livro no lugar, ainda não o escrevi.

— O que vai escrever? Não permitirei que invada minha vida.

— Não há mais o que fazer, tentei lhe salvar. Abaixe essa arma, eu já estou morto, certo?

O delegado fechou os olhos tentando recobrar sua sanidade, precisava de um desfecho, precisava prender alguém, porém, todos aqueles livros em volta pareciam fechar algum ponto de sua mente, trazendo à tona a sua total incompetência em desvendar os casos. Atordoado em suas ideias, já não sabia o que era real ou imaginação.

Abriu os olhos, virou o corpo na direção da prateleira, guardou a arma na cintura e devolveu o livro no local de onde havia tirado.

Caminhou até a janela, sentia um calor descontrolado, abriu os vidros e pôs o braço para fora. Flocos de neve caíam em sua mão, derretiam e escorriam como lágrimas pelos dedos. Fechou os vidros e a cortina.

As luzes apagaram deixando apenas uma piscante luz vermelha que saía do meio dos livros. Virou-se para Astolfo, mas não enxergava nada. Tirou o celular do bolso e iluminou o corpo que permanecia deitado na mesma posição. O delegado sentiu uma forte vertigem e teve que se segurar na prateleira, foi quando uma passagem secreta se abriu à sua frente. As luzes do escritório voltaram a acender, o delegado olhou em direção à abertura que lembrava as trevas, em um breu completo.

Novamente o corpo do escritor levantou-se, dessa vez em silêncio. Andou até a janela, abriu o vidro, passou a seu lado e entrou no corredor escuro.

Apenas o barulho da cortina quebrava o silêncio total. Otto mirou seu celular e o seguiu. Astolfo parou e disse:

— Você mata e eu escrevo.

— Não matei ninguém. — Disse o delegado.

— Todos esses crimes não solucionados e sem qualquer suspeito... Matou sim.

— O que está dizendo? Fiz de tudo para achar o culpado.

— Você é o culpado. Minha última história o salvaria do que está por vir.

— Mas o que é tudo isso, por que está tão calor?

No término da pergunta, aquele corredor ficou quente com luz fraca e vermelha. O delegado se viu em frente a pessoas desfiguradas, com pedaços de ferro em suas mãos. Tentou correr em direção ao escritório, mas o caminho de volta não existia mais. Aquelas mãos fétidas agarravam seu corpo e o puxavam, ele lutava, mas quando se soltava de um, outro o puxava. Eram muitos sufocando-o contra o chão. Sussurravam em seu ouvido chamando-o de assassino e ladrão.

O delegado rastejou em direção a um foco de luz branca. Ao chegar, percebeu ser um vidro que lhe mostrava a rua da frente da casa do escritor morto, parecia mais alto do que a janela do escritório. Várias viaturas e ambulâncias com as luzes dos giroflex acesas, policiais apontando armas e posicionados para abater algo ou alguém. Gritou, bateu no vidro, mas ninguém olhou em sua direção. Percebeu uma movimentação diferente e avistou um homem saindo da casa. Era ele mesmo. Andava com as mãos para cima em direção à viatura. Logo depois, quatro policiais saíram carregando uma maca com o corpo do escritor.

— ELE NÃO ESTÁ MORTO. — Gritava desesperado.

Levou a mão ao peito, soltou um grito abafado de angústia e tombou no chão. Sentia que puxavam sua pele, seu sangue escorria pelas pernas e costas. Dedos podres entravam em sua boca e seus pés queimavam, fazendo-o gemer. Flashes de lembranças atingiram sua mente, a noite anterior voltava à sua cabeça, a insônia, a visita ao escritor, as pancadas dadas com o lap top nas mãos de Astolfo, a tortura desferida, retirando suas unhas para que lhe fossem entregues as histórias que teriam sido escritas sobre ele. Tudo voltava como um redemoinho.

— EU NÃO O MATEI! — Gritou, enquanto via o rosto do escritor passar em sua frente.

Voltou sua atenção para a janela. Perto da ambulância, estava a moça da foto, sozinha e chorando muito. Depois que colocaram o corpo do escritor no carro fúnebre, ela saiu a passos lentos na direção contraria da aglomeração. Olhou o carro preto sair, colocou as mãos no rosto, virou para a direção do delegado e apontou o dedo em sua direção. Um de seus olhos já estava fora da cabeça, mas ele não sentia dor. Aquelas pessoas ou o que quer que fossem saíram de cima de seu corpo. O delegado passou a mão no vidro embaçado e viu a secretária virar seu olhar para os policiais, nesse exato momento, se viu retirando a arma da cintura, encostando-a na cabeça e atirando. Seu corpo caiu desfalecido. As lágrimas não escorreram, ele se viu morrer, viu como aconteceu.

A mulher o abanava e gargalhava. Otto se lembrou de todos os pequenos e grandes delitos que cometera, era seu vício. O livro não estava em branco, ele que não conseguiu ler, apenas matou o autor quando foi chamado para conhecer a obra. Astolfo Kriguer, infartou no momento em que o delegado quebrou seus dedos com o computador. Talvez não fosse sua intenção, mas foi a solução.

A moça apontou novamente para seu corpo caído no meio da rua, deu alguns passos e sumiu. Otto esticou seu braço até o bolso, a ponta dos dedos com os ossos já expostos dificultava a intenção de pegar a foto. Com muita insistência, conseguiu rasgar o bolso e cravar a ponta de um dos dedos na imagem. Trouxe até os seus olhos e após ver o rosto da mulher, concluiu que era a mesma que estava lá embaixo. Virou o retrato e leu a frase: “Minha eterna esposa, fora tão cedo”. Foi puxado com agressividade por alguns metros, seu corpo começou a arder e queimar, o que restava dos dedos caíam e seu pescoço ficou mole.

Levantaram-no e o colocaram em frente à criatura vermelha que não precisou ser apresentada. Suas lágrimas evaporavam no calor e a foto queimou entre o que restava de seus dedos. Ele fez força para manter a cabeça erguida, mas foi inútil, novamente fora coberto por corpos fétidos e podres que o açoitaram com correntes quentes e riram de felicidade a cada estalar do chicote que parecia não ter data para acabar.

Tema: Fantasmas