ECTOPLASMIA - CLTS 17

O trânsito estava lento e preguiçoso. Eu também estava lento e preguiçoso. Em meia hora teria que ministrar uma aula sobre métodos e técnicas de pesquisa em neurociência cognitiva e comportamento e, confesso, havia certa má vontade em fazer isso. O que eu gostaria mesmo nesse momento era estar deitado em uma rede sem nada mais para fazer além de escutar uma boa música.

O sinal fechou e minha vontade de voltar para casa só fazia aumentar.

“Tio Alex, vai demorar muito prá sair a broca, tô morrendo de fome?". Essa frase surgiu de imediato em minha mente quando aquela figura esquálida atravessou a rua bem em frente ao meu carro. A mesma silhueta, o mesmo andar arrastado com as pernas meio arqueadas de eras atrás. A imagem de um monte de adolescentes barulhentos e suados fazendo algazarra na hora do almoço, o porão abafado onde ficávamos, pareceram coisas saídas de outro mundo.

Em um átimo de segundo antigas lembranças emergiram e só despertei quando alguém buzinou atrás de mim apressando-me.

Quando olhei pelo retrovisor ele já tinha sumido.

Tinha por apelido Meia-noite e havia sido um dos muitos adolescentes que eram atendidos na “Casa André Luiz”, um lugar onde trabalhei por quase dois anos. Não consigo lembrar se alguma vez eu soube seu nome verdadeiro. Para todos nós ele era o Meia-noite e pronto.

*****

O que vou lhes contar aconteceu há muitos anos atrás. Foi pouco tempo depois do falecimento de meu pai, morto a tiros em um bar de periferia. As bebedeiras dele e as humilhações que passávamos haviam ficado para trás. Sempre quis que ele sumisse da minha vida, mas não queria que fosse daquela maneira. Terminou que a morte dele trouxe alívio, mas também uma ambiguidade de sentimentos. Sempre me questionei porque não o ajudei a superar o inferno etílico em que vivia. Sua morte violenta afastou para sempre qualquer possibilidade de redenção.

Naquela época eu tinha 22 anos de idade e gostava de me imaginar como o menino prodígio da psicologia, puro devaneio, já que para o resto dos colegas de curso eu era só mais um CDF que passava horas metido entre os livros ou fuçando tudo aquilo que tivesse relação com os temas que discutíamos em sala de aula. Mais uns meses e eu terminaria o curso aí era só me preparar para um mestrado e depois, quem sabe, um doutorado. Tudo parecia encaminhar-se do jeito que eu havia planejado.

Eu havia conseguido uma vaga para trabalhar como educador social de rua. O salário era um pouco mais que o mínimo, mas pelo menos eu teria dinheiro para pagar minhas passagens de ônibus e até poderia ajudar com alguma coisa em casa. O trabalho era em uma instituição espírita e consistia em coordenar oficinas de confecção de produtos feitos com madeira leve e vime. Seis horas diárias com adolescentes cujas idades variavam de onze a dezessete anos. O detalhe é que esses garotos estavam todos naquilo que a gente chamava na época de “situação social de risco”. Furtos, roubos, violência, uso de drogas, pobreza, famílias desestruturadas, e outras mazelas, frutos das contradições sociais, compunham o dia-a-dia deles.

Tive dificuldades logo no início. Não era tarefa das mais fáceis lidar com um monte de adolescentes, mas algum tempo depois já estava bem ambientado, dominando o jeito deles se expressarem e entendendo a dinâmica social em que estavam inseridos. Aquilo tudo foi um grande aprendizado para mim. Hoje percebo o quanto foi importante para minha formação pessoal e profissional os momentos vivenciados com aqueles adolescentes.

Eu trabalhava junto com outro educador em um cotidiano com mais de quarenta adolescentes. Nosso dia-a-dia era composto por oficinas, atividades de educação e lazer. Acredito que nunca joguei tanto futebol e participei de tanta gincana na vida como naquela época. Com o passar do tempo nós terminamos por estabelecer com os meninos uma relação que era um misto de hierarquia e amizade

Estávamos em mais um dia junto com os garotos quando algo muito estranho ocorreu com um deles.

Os meninos estavam almoçando quando de repente um adolescente, que deveria ter uns quinze anos aproximadamente, e que atendia pelo apelido de Meia-noite, deixa subitamente de almoçar e fica estático à frente do seu prato. Os outros garotos nos alertaram para isso. Fomos até ele e percebemos que este não esboçava a menor reação, não apresentava resposta nenhuma a nossa presença. Chamávamos seu nome, mexíamos em seus braços e nada. Ele permanecia estático e com o olhar vidrado, como se olhasse para algo além de nós. Os demais garotos começavam a ficar inquietos. Nossas tentativas de despertá-lo se mostraram infrutíferas.

- Tio Alex, ele tá doido? – Perguntou um dos meninos mais jovens do grupo e que tinha um apelido engraçado: Chinelo

- Chinelo, eu não tenho a menor ideia do que está acontecendo com ele - Respondi com uma certa dose de impaciência na voz.

- Tio, ele deve é tá cheio de pasta velha e cola de sapateiro. Ele usa direto esses bagulho. - Um menino muito branco e com o rosto cheio de espinhas falou isso enquanto dava um risinho.

Meia-noite começou a apresentar tremores generalizados pelo corpo e dessa forma terminamos acionando o 192. Quando a equipe de emergência chegou verificaram logo a pressão arterial, pulsação, saturação e resposta pupilar, perguntaram se havia um histórico de etilismo, drogadição ou transtorno mental.

- Olha, amigo, esse menino não tem nada. Pode até ser que ele tenha alguma coisa que não sabemos o que é, mas acho que doença do corpo ele não tem. – O enfermeiro falou isso e chamou-me para um canto mais afastado dos demais meninos que faziam um círculo em volta do garoto.

- Cara, vai por mim, isso é coisa espiritual.

- Ah, para com isso! Você está de brincadeira comigo. Ele tem alguma coisa sim e é uma doença qualquer e não esse negócio de espírito. Esse menino usa pasta de coca e cheira cola, não poderia ser isso?

-Não, não é nada disso. Não é droga, epilepsia, nem outra coisa. Já vi casos assim antes. O que esse menino tem não é doença e sim coisa espiritual.

Achei tudo uma tremenda bobagem o que o enfermeiro havia me dito. Imagine se agora eu tivesse que ver alma penada em tudo quanto é moleque?

Poucos minutos depois que a equipe do 192 foi embora o garoto voltou ao normal e, estranhamente, não se lembrava de nada.

Vários dias passaram, os meninos continuavam com suas atividades de trabalho, lazer e educação. Tudo seguia seu curso normal até que novamente outro episódio aconteceu. Dessa vez foi algo diferente. Diferente e assustador.

Estávamos assistindo a um filme quando Meia-noite se levanta subitamente, anda uns poucos metros e cai ao chão. Foi uma correria tremenda e uma gritaria muito grande entre os meninos. Muitos haviam presenciado o evento anterior e visto o quanto tínhamos ficado assustados Estabeleceu-se entre eles um princípio de pânico, com alguns dizendo que Meia-noite estava possuído.

Lucas, o outro educador que trabalhava comigo, ajudou-me a retirar os demais garotos da sala. Sozinhos, com Meia-noite caído, observamos, com um temor crescente, o que acontecia com ele: de sua boca saia uma substância esbranquiçada, com um aspecto esponjoso.

Ainda hoje passados tantos anos desde aquele dia, chego quase a sentir novamente o tremor que o medo me causou quando vimos que a substância que saia da boca de Meia-noite parecia formar um pequeno rosto. Lembro-me que ficamos em silêncio olhando para aquilo. Lucas deu um passo para ficar atrás de mim. Acho que nós dois pensamos em dar o fora dali, mas terminamos controlando o medo e permanecemos em silêncio observando o que se desenrolava.

Logo abaixo do queixo de Meia-noite havia se formado algo que não tinha como dizer que não era um rosto. Dava para ver perfeitamente os olhos, a testa, o nariz e uma boca que parecia aberta como se estivesse a gritar ou a tentar falar alguma coisa. Confesso que era apavorante ver aquilo: um garoto inconsciente no chão com uma coisa esbranquiçada saindo de sua boca e formando um rosto. Eu nunca tinha visto nada parecido com aquilo na vida antes.

- Alex, que porra é essa que está saindo dele? Você acha que é um tipo diferente de vômito? Um vômito de epilepsia? Cara, o que é isso, pelo amor de Deus? – Era nítido o pavor na voz de meu colega de trabalho.

- Não sei que merda é essa, mas sei que nenhum vômito iria fazer o molde de um rosto...

- Vai, cara, me diz o que é isso? É um tipo de feitiço? – Um exasperado Lucas perguntava-me com os olhos quase saltando das órbitas.

- Que feitiço já? Tá ficando doido também? Acho que isso não é nenhum tipo de doença, nem feitiço... Não sei lhe dizer o que é...

Agachei-me para ver mais de perto. O medo era grande, mas a curiosidade também era.

- O que tu tá fazendo? Não toca nessa merda, tu não sabe o que é isso, vai que...

- Calma, cacete! Sou lá maluco de tocar nisso? Não parece ter cheiro, parece que pulsa...

- Mas que merda! Tu vai querer cheirar isso também?

- Puta que pariu! Juro que nunca vi nada parecido com isso – Falei levantando-me rapidamente.

Aquilo tudo não durou mais do que dez minutos. A substância esponjosa logo foi se desfazendo. Quando Meia-noite voltou a si ele não se lembrava de absolutamente nada. Estava fraco, com muita sede e tinha certa dificuldade para andar, dizendo-se cansado e com o pensamento lento.

Naquela noite foi difícil conciliar o sono. Toda hora a imagem do pequeno rosto esponjoso invadia minha mente. Eu sempre achei que aquele arremedo de face mostrava algum tipo de sofrimento, muitas vezes me pegava achando que era como se ela quisesse falar alguma coisa... Alguma coisa para mim.

Lembro que terminei dormindo com a luz acesa. Fiquei imaginando que a escuridão faria algo se materializar e me causaria algum mal. Com certeza resquício de um dos inúmeros medos infantis que atravessam a nossa subjetividade, é o que eu diria hoje.

*****

O terceiro episódio envolvendo Meia-noite aconteceu durante uma das oficinas. Ele manuseava um pirógrafo para desenhar em uma pequena bandeja de madeira quando simplesmente largou tudo e ficou estático. Os outros meninos simplesmente saíram correndo, ninguém queria ficar perto dele.

Alguém rapidamente acionou a direção da instituição. Surgiram duas pessoas que eu nunca tinha visto antes e iniciaram uma espécie de intervenção junto ao menino. Eu soube depois que eles eram chamados de doutrinadores.

Fiquei em um canto observando toda a ação. Recordo que a figura do doutrinador alternava momentos em que ficava orando em cima de Meia-noite e outros em que intimava de maneira dura, para que aquele espírito se manifestasse e abandonasse o mal que fazia àquele adolescente. Com horror percebi que da boca de Meia-noite saia novamente uma substância estranha. Era difícil não se impressionar com aquilo tudo. Hoje, provavelmente, colheria um pedaço daquilo e levaria para uma análise bioquímica, mas ali naquele momento o que eu mais queria mesmo era que aquela coisa não formasse um rosto.

Não adiantou. Em pouco tempo um pequeno rosto se formou. Era o mesmo rosto de antes. A mesma expressão de dor como se quisesse falar alguma coisa. É muito difícil descrever o horror que eu sentia naquele momento. Um misto de sensações invadiu-me: medo misturado com ansiedade, estranhamento, tristeza, impotência.

Até hoje eu acho que aquilo olhava para mim...

*****

Meia-noite foi retirado do convívio com os demais garotos. Soube posteriormente que passou a fazer uma espécie de desenvolvimento de sua mediunidade com a supervisão e orientação de várias pessoas da doutrina espírita.

Um ano depois eu terminei o curso e larguei o trabalho com os meninos de rua. Nunca mais soube nada sobre aquele garoto até o dia em que ele atravessou o sinal em frente ao meu carro.

Naqueles dias eu não tinha maturidade pessoal e nem intelectiva para entender o fenômeno que se desenrolou perante meus olhos. Hoje talvez eu interpretasse como uma mera expressão de nosso antropomorfismo, como um embuste muito bem armado ou ainda como a sintomatologia de um transtorno mental qualquer.

Independente do que eu possa hoje pensar aquele fato marcou-me muito. Nunca disse para ninguém, e até evito pensar sobre isso, mas acho que aquele rosto formado se parecia muito com o do meu pai.

* Ectoplasmia: seria o ato de exteriorização de uma espécie de energia espiritual pelos médiuns.

** Ectoplasma: substância fluídica exteriorizada pelos médiuns, sendo normalmente excretada pelos orifícios do corpo (ouvidos, narinas, boca, olhos, etc.).

*** Antropomorfismo: ato de atribuir forma, características ou comportamentos humanos a seres inanimados ou a seres vivos que não são humanos.

TEMA: Fantasmas

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 03/12/2021
Reeditado em 08/12/2021
Código do texto: T7399249
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